Acórdão nº RHC 23500 / SP de T5 - QUINTA TURMA

Data05 Maio 2011
Número do processoRHC 23500 / SP
ÓrgãoQuinta Turma (Superior Tribunal de Justiça do Brasil)

RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 23.500 - SP (2008⁄0092455-0)

RELATOR : MINISTRO JORGE MUSSI
RECORRENTE : SÉRGIO SCABORA
ADVOGADO : ROGÉRIO DELPHINO DE BRITTO CATANESE E OUTRO(S)
RECORRIDO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

EMENTA

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. USO DE DOCUMENTO IDEOLOGICAMENTE FALSIFICADO E PECULATO (ARTIGOS 304 E 312, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL). CARTÕES DE PONTO SUPOSTAMENTE FALSIFICADOS UTILIZADOS EM PROCESSO TRABALHISTA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.

  1. O uso de documento ideologicamente falso em processo trabalhista extrapola a simples esfera de interesses individuais dos litigantes, pois evidencia a intenção de induzir em erro a Justiça do Trabalho.

  2. No caso dos autos, ao valer-se de cartões de ponto em tese ideologicamente falsificados perante a Justiça Trabalhista para obter verbas que foram consideradas improcedentes, o recorrente ofendeu diretamente a prestação jurisdicional, ou seja, serviço público federal, motivo pelo qual compete à Justiça Federal, nos termos do artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal, processar e julgar o delito de uso de documento falso. Doutrina. Precedentes.

    EFEITOS DO RECONHECIMENTO DA INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. ANULAÇÃO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA PROFERIDA PELO JUÍZO INCOMPETENTE. POSSIBILIDADE DE RATIFICAÇÃO DOS ATOS PROCESSUAIS ANTERIORES.

  3. Conquanto o tema ainda enseje certa controvérsia, prevalece o entendimento de que, constatada a incompetência absoluta, os autos devem ser remetidos ao Juízo competente, que pode ratificar ou não os atos já praticados, nos termos do artigo 567 do Código de Processo Penal, e 113, § 2º, do Código de Processo Civil. Doutrina. Precedentes.

  4. Na hipótese em exame, já foi proferida sentença condenatória pelo Juízo absolutamente incompetente, no que se refere a delito de uso de documento falso, pelo que se impõe a anulação tão somente do édito repressivo quanto ao ponto, facultando-se a ratificação, pela Justiça Federal, dos demais atos processuais anteriormente praticados, inclusive os decisórios não referentes ao mérito da causa.

  5. Anulada a condenação no que tange ao ilícito de falso, resta prejudicado o exame da alegação de ausência de perícia nos cartões de ponto, pois caberá à autoridade judiciária federal confirmar ou não os atos previamente realizados no feito, ou seja, somente se poderá vislumbrar alguma ilegalidade a ser reparada se houver a validação, pelo Juízo competente, de tudo quanto foi feito no processo até então.

    INEXISTÊNCIA DE CONEXÃO ENTRE OS CRIMES DE FALSO E DE PECULATO. NÃO INCIDÊNCIA DA SÚMULA 122 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL PARA PROCESSAR E JULGAR O PACIENTE NO QUE SE REFERE AO DELITO PREVISTO NO ARTIGO 312 DO CÓDIGO PENAL.

  6. Muito embora o enunciado da Súmula 122 deste Superior Tribunal de Justiça estabeleça que "compete à Justiça Federal o processo e o julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, 'a', do Código de Processo Penal", o certo é que no caso em apreço não se pode falar que os delitos em tese praticados pelo paciente sejam conexos, não se enquadram em nenhuma das hipóteses de conexão previstas no artigo 76 do Código de Processo Penal.

  7. Assim, não há quaisquer motivos que justifiquem a competência da Justiça Federal para apreciar o crime de peculato em tese cometido pelo recorrente, cujo exame permanece na esfera da Justiça Estadual.

    PECULATO-APROPRIAÇÃO (ARTIGO 312, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL). ACUSADO QUE TERIA SE APROPRIADO DE CARTÕES DE PONTO PERTENCENTES À AUTARQUIA MUNICIPAL DA QUAL ERA SUPERINTENDENTE. AUSÊNCIA DE VALOR PATRIMONIAL DOS BENS SUPOSTAMENTE APROPRIADOS. NECESSIDADE DE QUE A COISA OBJETO DO PECULATO TENHA EXPRESSÃO ECONÔMICA. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUÇÃO CRIMINAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. RECURSO PROVIDO.

  8. O crime de peculato-apropriação encontra-se disposto no caput do artigo 312 do Código Penal, verbis: "apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa."

  9. Conquanto a moralidade administrativa também seja tutelada no peculato, nele se exige que a Administração Pública sofra algum dano patrimonial.

  10. Tal como como nos crimes contra o patrimônio, o objeto jurídico do delito contido no artigo 312 do Código Penal deve ter expressão econômica, ou seja, a coisa móvel, assim como o dinheiro e o valor, precisa ter significação patrimonial.

  11. Isso porque o que diferencia o peculato dos ilícitos patrimoniais previstos no Código Penal é o fato de que nele o delito é praticado por funcionário público, prevalecendo-se de suas funções, e em violação a um dever de fidelidade que existe entre ele e o órgão ao qual está vinculado.

  12. Desse modo, embora o peculato tutele a moralidade administrativa, não se pode olvidar que mantém sua natureza patrimonial, distinguindo-se dos crimes contra o patrimônio em razão da qualidade do sujeito ativo, do título da posse e da pluralidade de condutas, razão pela qual nele também se exige que o objeto material tenha expressão econômica, sob pena de atipicidade da conduta.

  13. Na hipótese vertente, o recorrente foi condenado porque teria se apropriado de cartões de ponto de autarquia da qual era superintendente. No entanto, os mencionados comprovantes de horário não possuem, em si, qualquer significação econômica, sendo desprovidos de valor patrimonial, não podendo, assim, ser objeto do crime de peculato-apropriação.

  14. Desse modo, vislumbra-se a ausência de justa causa para a ação penal no que se refere ao crime previsto no caput do artigo 312 do Código Penal, pelo que se impõe o trancamento da ação penal quanto ao ponto.

  15. Recurso provido para, reconhecendo a competência da Justiça Federal para processar e julgar o crime de uso de documento falso, anular a sentença condenatória proferida pelo Juízo Estadual, facultando-se a ratificação dos atos processuais anteriormente praticados, bem como para trancar a ação penal no tocante ao crime de peculato-apropriação, ante a ausência de justa causa para a persecução penal.

    ACÓRDÃO

    Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ⁄RJ), G.D., Laurita Vaz e Napoleão Nunes Maia Filho votaram com o Sr. Ministro Relator.

    SUSTENTOU ORALMENTE: DR. ADIB KASSOUF SAD (P⁄ RECTE)

    Brasília (DF), 05 de maio de 2011. (Data do Julgamento).

    MINISTRO JORGE MUSSI

    Relator

    RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 23.500 - SP (2008⁄0092455-0)

    RECORRENTE : SÉRGIO SCABORA
    ADVOGADO : ROGÉRIO DELPHINO DE BRITTO CATANESE E OUTRO(S)
    RECORRIDO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

    RELATÓRIO

    O EXMO. SR. MINISTRO JORGE MUSSI (Relator): Trata-se de recurso ordinário em habeas corpus interposto por S.S., contra acórdão proferido pela 15ª Câmara do 7º Grupo da Seção Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que denegou a ordem nos autos do HC n. 1.124.822.3⁄9-00, mantendo a condenação do paciente à pena de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de reclusão, em regime semiaberto, além do pagamento de 31 (trinta e um) dias-multa, pela suposta prática dos delitos previstos nos artigos 304 e 312, caput, do Código Penal.

    Segundo consta dos autos, o paciente foi denunciado e posteriormente condenado porque teria usado cartões de ponto ideologicamente falsos nos autos de reclamação trabalhista, além de ter se apropriado, em proveito próprio, de bem móvel de que tinha a posse em razão do cargo, já que teria subtraído os documentos comprobatórios de seu horário de trabalho da autarquia municipal em que exercia a função de superintendente.

    Alega o recorrente a incompetência da Justiça Estadual para processá-lo e julgá-lo, uma vez que o suposto uso de documento ideologicamente falso teria ocorrido nos autos de ação trabalhista ajuizada perante Vara do Trabalho, vinculada ao Tribunal Regional do Trabalho, o que atrairia a competência da Justiça Federal para apreciar o feito.

    Sustenta que a ação penal em tela seria absolutamente nula em face da inequívoca deficiência de defesa, já que o advogado que o patrocinou durante o processo não teria se manifestado acerca da impugnação do Ministério Público à oitiva de uma testemunha e não teria acompanhado a audiência de inquirição de pessoa arrolada pelo acusado, além de ter apresentado alegações finais em descompasso com o teor dos fatos narrados na denúncia, e de ter oferecido recurso de apelação intempestivamente.

    Defende a existência de mácula no processo em face da inobservância do disposto no artigo 514 do Código de Processo Penal, que prevê o oferecimento de defesa preliminar nos crimes de responsabilidade praticados por funcionários públicos.

    Afirma que não se teria demonstrado o suposto objeto do peculato, tampouco o valor do prejuízo em tese acarretado, e que, na espécie, deveria incidir o princípio da insignificância.

    Argumenta que não teria sido realizada a perícia dos cartões de ponto, e que tal prova seria indispensável para a comprovação do delito de falsidade ideológica.

    Aponta que o defensor teria sido intimado da sentença condenatória antes do próprio acusado, o que configuraria nulidade.

    Assevera que não haveria provas da prática de conduta típica e antijurídica, o que revelaria a necessidade de absolvição, que o crime de falsidade deveria ser absorvido pelo de falsidade, e que a pena-base teria sido ilegalmente fixada acima do mínimo legal, pois inexistentes quaisquer justificativas para a majoração da reprimenda.

    Requer o provimento do recurso para se seja declarada a nulidade do processo ou, alternativamente, para que seja reduzida a sanção imposta ao recorrente.

    Contra-arrazoada a...

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