Introdução

AutorRenato de Almeida Oliveira Muçouçah
Ocupação do AutorProfessor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Páginas25-35

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Os movimentos operários europeus, historicamente, exerceram grande influência sobre a luta pelos direitos humanos e a definição destes, “numa época em que o próprio conceito destes direitos estava passando por mudanças bastante profundas”1; ainda no século XIX, a maior contribuição de tais movimentos aos direitos humanos “foi demonstrar que eles exigiam uma grande amplitude e que tinham de ser efetivos na prática tanto quanto no papel”2. A dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito e quintessência do conjunto de direitos e garantias da pessoa humana, num sentido bastante lato, reclama não pela simples continuidade existencial dos seres humanos, mas prima, isto sim, pela dignidade desta. Como salienta Enoque Ribeiro dos Santos, o desrespeito reiterado desta dignidade engendrou a consciência de que se deve preservá-la a qualquer custo, somente sendo possível compreendê-la e a definir em face das violações contra ela já praticadas3.

O conceito de dignidade da pessoa humana, embora não seja uma criação da Carta Magna de 1988, é por ela protegido, sendo-lhe atribuído, pois, o valor supremo de alicerce da ordem jurídica democrática4. E, como corolário, podemos desdobrar seu substrato material em princípios jurídicos de igualdade, de integridade física e moral (psicofísica) e de solidariedade.

Tal princípio deita raízes na ética kantiana, de fundamento moral, precisamente na máxima que determina aos homens, como seres racionais — e, portanto, sujeitos do discurso e da ação — a não reduzirem seus pares à condição de objeto. Como princípio absoluto, a dignidade da pessoa humana norteia as ações e as obriga em

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todas as esferas da vida do indivíduo e da coletividade e, por esta razão, também deve ser respeitada dentro dos ambientes de trabalho (assim entendido como o conjunto das condições externas e internas do local de trabalho e sua conexão com a saúde dos trabalhadores).

O simples produtivismo, calcado na irracionalidade do modo de exploração capitalista, não só desafia a natureza por dilapidá-la, promovendo uma crise ecológica que forja a cena mundial, mas também propicia o mau uso da força de trabalho, pondo em xeque a saúde psicofísica dos trabalhadores5, e, desta feita, as suas próprias vidas. Por ser o ambiente de trabalho um local onde o empregado desenvolve grande parte de sua vida e de sua personalidade, um local marcado por trocas e fusões de experiências pessoais e interpessoais, o seu desequilíbrio afetará, indubitavelmente, a qualidade de vida do ser humano nele envolvido, pela conexão óbvia existente em tal interação6.

A própria Ordem Constitucional não está fundada no trabalho humano, mas na sua valorização, de tal sorte que se houver trabalho humano, porém sem respeito ao aludido fundamento, a Ordem será tida como ilegítima7. E um trabalho desenvolvido sem a busca pela promoção da dignidade humana não retrata, certamente, a valorização desta atividade, encarado o meio ambiente do trabalho na perspectiva dos direitos humanos e o Direito do Trabalho como emancipador das potencialidades e riquezas humanas. No entanto o ato de trabalhar, já no primeiro texto bíblico citado como o Excelso castigo dado aos homens, possuía desde sua origem uma valoração negativa, sendo visto como atividade servil e indigna.

Aliás — e isto é central para a identificação do problema — a visão do trabalho como algo opressivo e degradante, segundo Wilson Hilário Borges, contribuiu para que a ciência buscasse desenvolver, no trabalho, especializações funcionais e técnicas de aumento produtivo, investindo, todavia, “muito pouco na busca de uma harmonização do homem no seu trabalho”8 com o fito de tornar tal atividade um processo de humanização do indivíduo. O homem, neste processo global, é designado tão só como o “fator humano”9 da produção, havendo referências a ele apenas quanto a questões de comportamento, como falhas e erros, negligenciando-se aspectos éticos e políticos. O mundo do trabalho, no entanto, não é somente da técnica (dos dados objetivos e instrumentais); é permeado pelo social (relações de cooperação e compreensão) e pela subjetividade (mobilização, investimento pessoal, cognição, imaginação), sendo todos estes elementos necessários para que seja realizada a produção.

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A violência na execução de atividades laborais, conforme visto, constitui uma das faces mais antigas das relações de trabalho. O assédio moral em tais relações é apenas espécie da violência cotidiana a que são submetidos muitos dos trabalhadores de todo o mundo. Não existe em nosso ordenamento jurídico qualquer previsão específica que esquadrinhe os contornos de tal conceito, e a doutrina e a jurisprudência ainda são tímidas neste sentido; também conhecido como psicoterrorismo, segundo Marie-France Hirigoyen,

[...] o assédio moral no trabalho é definido como qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude...) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho.10O sujeito ativo (assediante) em regra é o empregador ou superior hierárquico que lhe faça as vezes, mas poderá ser também o próprio subordinado; o sujeito passivo desta prática (assediado) geralmente é o empregado, mas também haverá casos em que poderá ser o superior hierárquico. A fim de caracterizar a prática do assédio moral é preciso conduta, comportamento ou atos atentatórios a direitos fundamentais da personalidade humana, reiteração e sistematização do feito, bem como a consciência de assediar do agente, ou, ao menos, ser “previsível seu efeito danoso sobre o ambiente de trabalho e sobre a integridade psicofísica da vítima”11.

Ao menos em princípio, o assédio moral resulta do dano moral, mas é tipificado de um modo menos amplo, pois exige determinado tipo de comportamento12, ou seja, travado de forma reiterada ou sistemática, e que possa tornar insuportável a continuidade do contrato de emprego, a facultar a rescisão indireta do contrato, consoante a dicção do consolidado art. 483, “b”. Entretanto, a subordinação jurídica (e sua face complementar, o poder diretivo do empregador), traço caracterizante e distintivo da relação de emprego, em não raras ocasiões permite que o empregado venha a sofrer assédio moral, sobretudo relacionado à honra e à dignidade, engendrando prejuízos graves, muitos deles definitivos, à sua saúde física e psíquica, bem como ao seu convívio familiar e social e à sua autoestima pessoal e profissional.

Quanto à compreensão desta prática, demos primazia ao estudo do poder diretivo do empregador no desenvolvimento das relações de trabalho por ser este um grande poder a ele conferido pela lei, com o fito de organizar suas atividades no ambiente de execução do trabalho para, assim, esquadrinhar o modus operandi de seus empregados. Na manifestação concreta deste poder, dentro do contexto de uma economia de mercado que busca sempre maior competitividade, não raro

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haverá abusos que não se coadunam com o integral respeito à dignidade humana. O poder diretivo do empregador permite-lhe, a grosso modo, organizar a estrutura e o processo de trabalho adotados no estabelecimento, fixar regras a serem observadas neste âmbito, impor sanções aos empregados por eventual não cumprimento de obrigações contratuais, e, além de tudo, fiscalizar as atividades desenvolvidas.

O poder panóptico conferido ao empregador é, em grande parte, assim propiciado em razão das novas tecnologias implantadas nos locais de trabalho. As empresas em geral trabalham com metas de produção preestabelecidas, cuja execução se destina a todo o grupo de empregados; a dicção do trabalho, bem como de seu processo, incontestavelmente, pertencem à autonomia gerencial do empregador. Ato seguinte, no ambiente de execução do trabalho, via de regra, há uma divisão parcelar das atividades, desenvolvida em equipe, com vistas à consecução da finalidade comum — atingir o cumprimento requerido pelo empregador13. E o poder diretivo patronal, aliado às novas tecnologias, permite com exatidão o controle do cumprimento individual de metas, ou, em outros termos, quanto o...

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