A Constitucionalização dos Direitos Trabalhistas: Novo Modelo de Normatividade?

AutorTereza Aparecida Asta Gemignani - Daniel Gemignani
Ocupação do AutorDesembargadora do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas - Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Páginas29-46

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"Ontem os Códigos; hoje as Constituições. A revanche da Grécia contra Roma."

Paulo Bonavides

"Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça o voo já está pronto!" João Guimarães Rosa

3.1. Introdução

Escrever sobre a constitucionalização do direito trabalhista, logo após a promulgação de uma Emenda Constitucional de grande envergadura, é tarefa complexa, que desencoraja à primeira vista, pois, além de ter que discorrer sobre as questões envolvidas no calor dos acontecimentos, sem o distanciamento temporal necessário para reflexões mais aprofundadas, exige ponderação e bom-senso para delinear cenários, com as ferramentas de um presente em frenético estado de ebulição.

Mas não vou me furtar a tal desafio.

Não só como forma de contribuir para a reflexão científica, mas principalmente por acreditar que a construção de um novo modelo institucional para o Poder Judiciário exige o encaminhamento do debate para as questões afetas à constitucionalização, com o olhar posto no horizonte do futuro.

No ano de celebração dos 60 anos de inserção da Justiça do Trabalho, como integrante do Poder Judiciário, promovida pela Constituição Federal de 1946, inequívoca a propriedade do tema, numa revista comemorativa dos 20 anos da instalação do Tribunal Regional do Trabalho em Campinas. Com jurisdição ampla, abrangendo diferentes Municípios em que a atividade econômica, urbana e rural apresenta intensa diversidade, abarcando desde os modos mais simples e rudimentares da produção

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de artesanatos e manufaturados até a prestação de serviços e fabricação de produtos de alto valor agregado, destinados à exportação, que em volume significativo são escoados pelo aeroporto internacional da região - Viracopos, bem como transportados via terrestre para abastecer os demais países do sul da América Latina. Assim, situado num dos mais desenvolvidos polos produtivos do país, o Tribunal de Campinas é chamado a administrar a justiça e garantir a segurança jurídica às relações trabalhistas que se desenvolvem num ambiente de significativa complexidade.

Daí a necessidade de reelaborar conceitos e perspectivas, para evitar o risco apontado por Luís Roberto Barroso, ao alertar para "uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que não se inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo".

3.2. Fiat justitia, pereat mundus

Nosso ordenamento jurídico foi edificado como um sistema de normas destinadas a balizar os parâmetros definidores do legal/ilegal.

Nada mais.

Quaisquer outras considerações eram alijadas do debate, sob o argumento de serem incabíveis na esfera do jurídico.

Conceitos como moralidade e eficiência, por exemplo, eram prontamente excluídos.

O primeiro, porque pertencia a uma outra ótica de considerações. O segundo, porque pouco importava. Afinal, para a decisão jurídica bastava que fossem observadas as diretrizes balizadoras do legal/ilegal, sendo desnecessário considerar se, em virtude disso, o mundo poderia perecer, como já sinalizava o famoso provérbio latino.

Tal concepção, aparentemente aceitável quando se tratava de resolver conflitos relacionados a justiça comutativa, entrou em colapso com o estado social.

Com efeito, a ampliação da atuação estatal, adotada com o escopo de gerir e implementar políticas públicas, trouxe para o âmbito do direito questões de justiça distributiva que antes se mantinham apenas na órbita política.

E aí, como aceitar o pereat mundus, que poderia comprometer sua própria existência?

No Brasil, tal discussão se mantém cada vez mais acesa no campo do direito do trabalho. Nascido no imbricamento do direito privado com o direito público, o direito do trabalho sempre foi chamado a enfrentar questões que demandavam a análise destas duas perspectivas.

Temas candentes como emprego, renda, informalidade, critérios de reajuste salarial, atuação de movimento grevista, limites da atuação disciplinar no local de trabalho, condutas de assédio moral e sexual, nem de longe podem ser reduzidos à equação do do ut des que caracteriza a lógica da justiça comutativa.

3.3. Um exemplo concreto

Um exemplo concreto da dificuldade de bem equacionar os problemas na atualidade pode ser demonstrado com a questão das horas extras, suscitada na grande maioria dos conflitos trabalhistas.

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Aparentemente, poderia ser vista apenas como uma questão de justiça comutativa. Aquele que trabalhou tem direito a receber o pagamento respectivo. Se foi pago, deixa de existir o conflito.

Entretanto, o problema é mais amplo.

A reiterada prestação de jornadas extenuantes mina a saúde do trabalhador e o afasta de casa por longos períodos. Mesmo que tal redunde no recebimento de um salário maior no final do mês, há custos e encargos que não podem ser desconsiderados, e que não são suportados só por ele, mas por toda a sociedade.

Assim, num período de médio/longo prazo as vantagens se diluem. Esse trabalhador apresentará muito mais problemas de saúde, maior risco de sofrer acidente no trabalho e, assim, inchar o número dos que permanecem afastados recebendo benefícios previdenciários. Além disso, com a precarização da saúde, suas chances de empregabilidade diminuem, há um inequívoco e concreto risco de redução de seu nível salarial quando entra na fase de alta rotatividade nos empregos, culminando na perda definitiva do posto de trabalho quando atinge a meia-idade, via de regra época em que as despesas da família mais aumentam. Não teve tempo para se dedicar aos filhos quando pequenos, e acaba por oferecer-lhes um exemplo pouco edificante quando estes atingem a adolescência, de modo que não é incomum a desagregação familiar e o alcoolismo, que vai levar a novas doenças, à violência doméstica e ao abandono, ampliando o leque das necessidades exigidas pela atuação estatal.

Por isso, um conflito que aparentemente parece singelo, e restrito ao interesse das duas partes que celebram um contrato de trabalho, na verdade se reveste de muito mais complexidade, interferindo de forma direta na edificação de políticas públicas que exigem critérios de aferição próprios da justiça distributiva.

Neste contexto, o pereat mundus se torna insustentável.

O grande desafio deste início de um novo século, portanto, é construir um novo padrão normativo, que permita conjugar os dois valores, ou seja, fazer justiça e evitar que o mundo pereça na instabilidade trazida pela insegurança jurídica.

A Constituição Federal de 1988 teve o mérito de mostrar esse dilema como uma fratura exposta.

Ao albergar em seu corpo normas de direito trabalhista, e instituí-las como direitos fundamentais no art. 7º, pretendeu demonstrar que ao definir o País como uma República Democrática, fundada no trabalho como valor, não estava apenas adotando um discurso politicamente correto. Fixava normas de conduta para balizar que tipo de atuação os Poderes Públicos deveriam dispensar em relação ao trabalho humano. O tratamento que deve ser conferido a um direito estruturante, ou seja, destinado a fixar os alicerces da sociedade brasileira.

A Emenda Constitucional n. 45/2004 deu um passo a mais neste caminho, ao expressamente incluir no elenco dos direitos fundamentais - inciso LXXVIII no art. 5º - o princípio da eficiência, que anteriormente constava do art. 37 da Lei Maior, deste modo reafirmando a inserção da ideia de eficiência no conceito do jurídico.

O grande desafio, portanto, é manejar os instrumentos jurídicos para fazer valer, conjuntamente, a justiça e a eficiência, como balizadoras da conduta social.

Para tanto, seriam suficientes os critérios estabelecidos nas regras, destinados a delimitar as fronteiras entre o legal e o ilegal?

Parece que não.

Pela simples e boa razão de que nem sempre o legal é eficiente e nem sempre o eficiente é legal.

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3.4. O aumento da complexidade

Além disso, há um inequívoco complicador.

Quando se trata de aferir a implementação de critérios de eficiência, em relações que envolvem justiça comutativa, a avaliação se restringe aos interesses contrapostos que estão implícitos.

No caso dos conflitos trabalhistas, que via de regra também envolvem a aplicação de justiça distributiva, o nível de complexidade aumenta, pois implica em considerar um amplo universo dos que se beneficiam ou não desta eficiência, que pode ser manipulada de forma que, sob o aparente atendimento de interesses públicos ou coletivos, na verdade acabam por atender interesses corporativos e setoriais de quem tem o controle de certos segmentos produtivos da sociedade.

Artigo publicado pelo Jornal O Estado de S. Paulo chama a atenção para a "pressão impiedosa sobre a renda do trabalho" e o consequente "retorno crescente para os donos do capital". O articulista Morgan Stanley33 registra que, embora os níveis de desemprego tenham caído nas economias dos países mais desenvolvidos como Japão, Alemanha e EUA, em nenhum deles ocorreu aumento significativo dos salários, ou da "fatia do trabalho na renda nacional", restando evidente que o inquestionável aumento de produtividade não aumentou a renda, que deveria ter sido destinada a remunerar o trabalho.

Como explicar tal fenômeno num momento em que se intensifica a forma de pagamento por produtividade e a "participação nos lucros e resultados" como modalidades cada vez mais utilizadas nas relações de trabalho?

O resultado revela que, sob o aparente e convincente discurso de possibilitar o recebimento de um salário maior pela produtividade...

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