Fundamentos e Formação Histórica do Direito do Trabalho

AutorEvaristo de Moraes Filho - Antonio Carlos Flores de Moraes
Ocupação do AutorProfessor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Páginas65-75

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1. Causas sociais e ideológicas do surgimento do direito do trabalho - O direito do trabalho é um produto típico do século XIX. Somente nesse século surgiram as condições sociais que tornaram possível o seu aparecimento, como um ramo novo da comum ciência jurídica, com características próprias e autonomia doutrinária. É exagero - e talvez erro de perspectiva histórica1 - alguém atribuir a sua origem à Antigui-dade greco-romana. E isso porque esse novo ramo do direito é o resultado, o produto direto da técnica moderna, da industrialização desses últimos tempos. Só com a máquina é que apareceram os problemas humanos e sociais que deixaram de encontrar solução nos quadros do direito clássico. Alguma coisa faltava para a completa adaptação do indivíduo ao mundo moderno. Fazia-se mister uma profunda alteração na mentalidade dos homens que dispunham da função diretiva da sociedade capitalista.

Os motivos que levaram o Estado a dar esse passo decisivo na história dos destinos humanos podem ser sumariados, didaticamente, da seguinte maneira: 1) os vícios e as consequências da liberdade econômica e do liberalismo político; 2) o maquinismo; 3) a concentração de massas humanas e de capitais; 4) as lutas de classes, as consequentes rebeliões sociais; 5) os livres acordos entre grupos profissionais; 6) a encíclica papal Rerum Novarum; 7) a guerra (1914/1918). Vamos, agora, analisar rapidamente, um por um, esses tópicos.2

2. Os vícios da liberdade econômica e do liberalismo jurídico - Com a implantação do regime da livre concorrência, que se refletia no campo do direito, verificou-se ao cabo de poucos anos que aumentava o número de miseráveis, de empobrecidos, de pessoas sem posses, enquanto crescia, por igual, a fortuna na mão de poucos proprietários. Não sendo iguais as oportunidades na sociedade liberal, cada vez crescia mais a desigualdade social entre pobres e ricos. A realidade, logo depois de 1789, desmentia a otimista filosofia revolucionária de que os homens, livres, logo seriam ricos e prósperos. Le Chapelier, por exemplo, ao escrever a fundamentação da célebre lei (1791) que lhe tomou o nome, afirmava: "Compete às convenções livres de indivíduo a indivíduo fixar jornada para cada operário. Compete, em seguida, ao operário manter a convenção que fez com quem o ocupa". E mais, escrevia Troplong, o grande comentarista do Código Civil: "Deixai o homem diante das necessidades, sem outra esperança além de sua própria coragem para vencer a adversidade; ele fará prodígios de zelo, de trabalho, de perseverança".

Isso seria verdadeiro entre seres iguais, de forças idênticas. Logo se desfez o esquema teórico, diante da desigualdade das vontades do credor e do devedor no negócio contratual. Como lembra Ripert, a diferença entre as necessidades é então a única causa de troca econômica. A igualdade que impera no contrato, porém, é puramente teórica. E

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conclui: "É uma igualdade civil, isto é, de condição jurídica, mas não uma igualdade de forças. O erro do liberalismo em sua própria doutrina é de dizer que todo o contrato se forma e se executa sob o regime da liberdade. Se os dois contratantes não estão em igualdade de forças, o mais poderoso encontra no contrato uma vitória muito fácil".

Sem falar nos reformadores sociais declarados, de todos os matizes (sindicalistas, socialistas, utópicos ou marxistas, solidaristas, fabianistas, etc.), reconheceram os próprios juristas do último quarto do século passado que os princípios do Código Civil de 1804 precisavam ser modificados, colocando-se a lei mais de acordo com a nova realidade social. De delito (questão social, questão de polícia), caminhou- se para o direito tutelar, não mais repressivo, como frisa o professor Morellet.3

3. O maquinismo - Com o aparecimento do maquinismo na produção econômica, ficou o homem como relegado a plano secundário, como se tivesse perdido o seu primitivo papel na economia. Essa se desumanizava, nascia o império das máquinas. Não era a pessoa humana o que mais importava, já que passava a ser mera guardiã e assistente do aparelho mecânico. Com a máquina, aumentava-se a produção e reduzia-se o braço operário, com desemprego e exploração da mão de obra feminina e infantil. A esse respeito, lê-se o seguinte em Joseph Charmont: "A lei mais antiga, a de 1841, fixou timidamente essa idade mínima em oito anos. Essa medida pareceria hoje miserável. Quando em 1868 Jules Simon publicou seu livro ‘Ouvrier de huit ans’, o título por si só já era um apelo à compaixão da opinião pública".

Com os desempregados, as crises econômicas, os acidentes mecânicos do trabalho, tudo isso trazia inquietação ao lar operário e à própria segurança da sociedade. Requeria-se e amadurecia a intervenção do Estado, justificava-se uma legislação especial de proteção e de tutela aos mais fracos, vítimas agora não só dos que dispunham dos meios de produção, como igualmente desses próprios meios diretamente: que lhes multilavam o corpo, dispersavam-lhes a família, enfraqueciam-lhes a prole, colocavam-nos na rua, sem emprego. Nas palavras de Mumford, as máquinas passaram a ter uma existência independente, em função da força motriz também independente, com operação semiautomática, fora de quem delas se utilizava.4

4. Concentração de massas humanas e de capitais - Com o uso da máquina, puderam os industriais concentrar grandes massas humanas em grandes locais de trabalho, nas fábricas, nas usinas. Pela divisão técnica do trabalho, exigem as máquinas o trabalho coletivo ou cooperativo de muitas pessoas. De outro lado, para poder explorar essas grandes fábricas, fazia-se mister a concentração de grandes capitais nas mãos de poucos. Nascia a grande indústria e o poder econômico nela concentrado.

Ressalta desses simples enunciados a conclusão lógica de como tais fatos vinham facilitar o surgimento do direito do trabalho. Com a coletivização do trabalho, a feudalização industrial, foram enormes as repercussões no seio da sociedade, alterando profundamente toda a estrutura social. De outro lado, essa aproximação das massas humanas facilitou a própria organização coletiva das reivindicações operárias, dando-lhes uma certa consciência de classe. Constituía-se definitivamente o grupo social econômico, quer seja o sindicato, quer seja a empresa.

5. Luta de classes e revoluções - Tiveram igualmente uma forte parcela na gênese do direito do trabalho as lutas sociais que se desenrolaram durante o século XIX. Os luditas, os cartistas, na Inglaterra, as revoluções de 1848 e 1871, na França, a revolução de 1848, na Alemanha, representaram muito no despertar do Estado para a intervenção e regulamentação na vida econômica.

Com essas lutas sociais, agitações, paradas de trabalho, prisões, mortes, desordens de toda ordem, voltou-se o Estado para a nova realidade social. Nesta, cresciam as novas ideologias de protesto e de contestação por meio do "Manifesto Comunista" (1848) e das Internacionais que daí resultaram. A partir daí, com sentido revolucionário ou simplesmente reformista, não parou mais a reivindicação dos trabalhadores por melhores condições de vida. Só se dá conta disso quem compara as condições daquela época com as atualmente existentes no neocapitalismo ou no Estado social de direito. O que para Marx,

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por exemplo, era atualmente revolucionário constitui hoje banalidade: limitação da duração do trabalho; descanso semanal; férias anuais remuneradas; seguro contra acidente, velhice, enfermidade, incapacidade; salário mínimo e profissional, e assim por diante.5

6. Livres acordos entre o capital e o trabalho - E dessas agitações, enquanto o Estado não se decidia a intervir, enquanto não se modificava a mentalidade das classes dirigentes, iam os operários e patrões ultimando entre si verdadeiras convenções coletivas de trabalho. Eram acordos coletivos que surgiam espontaneamente, fora da legislação do Estado, trazendo paz, pelo menos momentaneamente, para as classes produtoras.

Constituindo verdadeiros costumes industriais, espontâneos, acabaram por regular a vida entre os interessados (patrões e operários), ao mesmo tempo em que foram reconhecidos pelo Estado e passaram a ser integrados à legislação oficial. Com razão, escreve Sinzheimer: "Notamos que os grupos de trabalhadores não eliminaram da empresa a relação de subordinação: mas lhe tiraram o caráter de criação unilateral. Das normas referentes à dominação saíram, dessa maneira, normas contratuais do direito não estatal do trabalho. A um exame sumário, nota-se, com efeito, que o direito coletivo revelou-se por ter saído diretamente do jogo das forças sociais, e não de uma autorização legal. As normas regulamentadoras das convenções coletivas nasceram de fontes estranhas à lei." Era a esse direito social (Gurvitch), vivo (Ehrlich), que Maxime Leroy chamou de costume operário. Nas palavras do sempre saudoso Perez Botija: "De maneira espontânea, umas vezes; através de sui generis processos coativos, outras; ia surgindo na rua, na oficina, na fábrica, na usina, um direito novo, que, por ser emanação direta da sociedade, alguns autores chamaram de Direito social".6

7. As encíclicas papais - De outro lado, já agora no plano espiritual, aparecia um documento da maior importância para a final constituição do direito do trabalho: a Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, datada de 15.5.1891. Reconhecia a Igreja a tremenda injustiça social dos nossos dias, acabando por aceitar e recomendar a intervenção estatal na economia como único meio capaz de dar cobro aos abusos do regime. Exigiu toda uma legislação protetora, inclusive um salário justo segundo os melhores ensinamentos dos doutores da Igreja.

Eis um trecho característico, bem denunciador da veemência do documento papal: "De modo geral recordem-se o rico e o patrão que explorar a pobreza e a miséria e especular com indigência, são coisas igualmente reprovadas pelas leis divinas e humanas. É um crime enorme, que brada por vingança ao céu, defraudar o...

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