Natureza Jurídica do Direito do Trabalho

AutorEvaristo de Moraes Filho - Antonio Carlos Flores de Moraes
Ocupação do AutorProfessor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Páginas103-112

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1. A realidade da divisão entre direito público e direito privado - Por mais discutida e discutível que seja a clássica divisão entre direito público e privado, oriunda da concepção romana, uma coisa permanece fora de dúvida: a sua realidade e importância na ciência jurídica ocidental. Os livros de doutrina ocupam-se do assunto, os ordenamentos jurídicos positivos aceitam a distinção, os tribunais inclinam-se diante da tradicional dicotomia, embora cada vez mais discreta e menos radical.

O romanista Bonfante a admite como absoluta e nítida; e Radbruch, surpreendentemente, a aponta como um verdadeiro a priori dogmático para sistematização jurídica. Apesar do exagero em ambas as posições assumidas, não hesitamos em aceitar provisoriamente essa oposição, como a propõem Crome e Capitant. Corresponde ela às duas principais relações que formam o tecido da vida social: a) relações do indivíduo com o grupo social a que pertence, relações desses diversos grupos entre si; b) relações do indivíduo com seus semelhantes para a satisfação de suas necessidades pessoais.1

2. Importância prática e dificuldade do assunto - O assunto não é simples, reveste-se, na realidade, da maior importância e de não menor dificuldade. Segundo Gurvitch, conseguiu Holliger reunir, em tese de doutoramento, a bagatela de 104 teorias que procuram distinguir o direito público do privado; o que prova a não validade de todas, ou de quase todas, dizemos nós... A matéria é difícil e importante, embora possa parecer bizantina a alguns espíritos mais apressados. Reveste-se de imensa importância teórica e prática, porque, como lembra Chiovenda, a eficácia e a interpretação das normas de direito público e privado são reguladas por princípios diversos. A mesma coisa frisa o professor Riezler, de München, e cita uma decisão do Reichgericht alemão, na qual se reconhece que essa distinção se veio desenvolvendo através de uma longa história e se baseia numa prática jurídica de muitos séculos, não podendo, por isso mesmo, ser suprimida sem dano geral, por constituir o ponto de partida das leis em vigor.

Contudo, não se pode negar a profunda relativi-dade inerente a essa divisão da sistemática jurídica. É de todo impossível conseguir algum tratadista uma classificação material das normas de cada uma das duas espécies do direito. Há matérias que resistem a um enquadramento único e uniforme; outras manifestam-se ambivalentes e ambíguas, verdadeiros institutos fronteiriços. Já o dizia Cogliolo, também romanista: "Esta diferença não é teoricamente fácil de fixar, porque na realidade das coisas os limites são variáveis e sutis. Se, de um lado, se considera o instituto da reivindicatio e, de outro lado, o voto eleitoral, é manifesta a antítese; mas as dificuldades não estão nos pontos extremos, e sim nos confins entre os dois campos".

A rigor, em toda norma jurídica há sempre uma fusão inextrincável de interesse público e privado, res-

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saltando este ou aquele conforme o ângulo de maior incidência do observador. Não é a inserção da norma do direito público ou no direito civil, digamos, que decide, por si só, a sua natureza jurídica. Até autores como Dernburg, pandecistas, construtores da teoria moderna do direito privado romano não podem fugir a essa verdade. Reconhece ele que não se trata, nessa distinção, de cortes intransponíveis, já que o bem dos indivíduos e o da comunidade vivem em perfeita conjunção no mais íntimo processo possível.2

Por tudo isso é que alguns autores apelam para os chamados terrenos intermediários para os direitos mistos. Porque, se não há a menor dúvida de que o direito constitucional, o administrativo, o penal, o internacional pertençam ao direito público, e que o civil, o comercial, o industrial se incluam no direito privado, já o mesmo não pode ser dito quanto ao direito processual civil, ao internacional privado, ao direito agrário e ao próprio direito do trabalho. Em verdade, a arrumação das matérias não é perfeita, há sempre certas disciplinas que se negam a receber uma etiqueta definitiva e inapelável. É curioso como hóspedes inesperados são os novos ramos autônomos do direito, desconhecidos dos romanos, os que perturbam a simetria da divisão, vindo a ser colocados em campos mistos.

É desta ordem a lição de Merkel: "A distinção entre direito público e direito privado não é absoluta. Na regulação das relações privadas, ao lado dos interesses individuais atingidos imediatamente, aparecem sempre, mais ou menos diretamente, de modo mais ou menos sensível, como passivamente interessados, os interesses comuns. Daí: a) o caráter misto de algumas partes do direito; b) a variabilidade dos limites entre o direito privado e o direito público".

Assim concluindo: reconhece-se atualmente a significação meramente pragmática da distinção romana entre direito público e privado. Raros são os defensores de um ponto de vista intransigente e invariável. Sentem os doutrinadores mais recentes que, embora sustentando o critério dicotômico tradicional, muito há que ceder para manter a distinção. Novas técnicas sociais, novas relações, novos tipos de convivência e de interesses solicitam igualmente nova distribuição da matéria jurídica, com profunda revisão dos critérios clássicos.

3. Relatividade da divisão - Historicidade - Direitos mistos - Direito administrativo - Elevou-se à condição de uma das mais intrincadas questões da dogmática jurídica um falso problema, que nunca poderá encontrar solução definitiva no campo da lógica jurídica pura. Esse problema da distinção entre direito público e privado, como a querela da soberania estatal, é uma questão histórica variável de época para época, renovável a cada momento, oriunda de uma certa fase do próprio direito romano. O direito é sempre produto histórico, representando cada sistema jurídico a sua época, constituindo-se assim uma verdadeira morfologia histórica do direito. Ou melhor, nas palavras de Meyer: "Quanto ao seu conteúdo, as prescrições da moral, do costume e do direito dependem do regime social temporariamente existente e das concepções reinantes na comunidade - em outros termos, do estado da civilização - e por conseguinte evoluem e se transformam com ela".3

Variando com a vida social segundo as diversas fases históricas, de civilização e de cultura diferentes, a vida do direito não para jamais, como acentuam Planiol e Ripert, vendo ilusões nos esforços dos legisladores, como Justiniano e como Napoleão, que pretenderam fixá-la em seus códigos rígidos. Sob esse critério, verifica-se então que as relações entre o direito público e o direito privado vêm sofrendo profundas alterações através dos tempos. Matérias que pertenciam a um dos ramos passaram a se enquadrar em outro. Assuntos que pareciam de vital importância para o Estado e sua própria sobrevivência foram deixados ao simples interesse privado dos indivíduos. Exemplo: a religião. Exemplo às avessas, do interesse privado para o público: o trabalho. Ainda em 1824, assim dispunha a Constituição imperial brasileira, art. 5º: "A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo".

A Constituição de 1891 separou a religião do Estado, revogando esse dispositivo e tomando uma

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orientação inteiramente oposta. O trabalho, que não constava do texto de nenhuma das duas, passou a integrá-lo, como direito público constitucional, a partir de 1926, e cada vez crescendo mais em sua extensão até 1988.

Exemplo dessa transformação pode ser encontrado aqui no surgimento do direito administrativo, fruto direto do liberalismo individualista instaurado no mundo ocidental com a Revolução de 1789. A soberania desceu da monarquia para a nação; o poder do Estado passou a ser legítimo somente à medida que respeitasse os interesses dos seus súditos. Com o Estado de direito (Rechtsstaat) constituído naquela época, nasceu também o direito administrativo, como ramo autônomo da ciência jurídica, traçando normas reguladoras do próprio poder estatal, trazendo o arbítrio do governo para o âmbito do direito. Com razões pode escrever H. Berthélemy que "o direito administrativo constituiu-se quase integralmente depois da Revolução Francesa".

Mas, com o correr do século XIX, constituiu-se e cresceu a doutrina do direito público, restabelecendo o equilíbrio perdido e acabando mesmo por dar o predomínio à publicização do direito privado. O século XIX foi um período de extrema mudança econômica e social, passando de um individualismo jurídico à outrance, como destaca Saleilles, para uma organização cada vez mais pronunciada dos direitos coletivos. Transformaram-se as relações entre o direito público e o direito privado, em moldes que vieram a constituir um meio-termo entre a opressão das monarquias absolutas e o liberalismo indivi- dualista da Revolução Francesa.4

4. Possível síntese dos critérios distintivos - Pertence à teoria geral do direito o estudo dos vários critérios da doutrina jurídica no sentido de se encontrar um nítido marco divisório entre o direito público e o direito privado. Desde a conhecida teoria dos interesses protegidos de Ulpiano - Publicum ius est quod ad statum rei romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem -, direito público é o que concerne ao estado romano; privado, o referente ao interesse dos indivíduos, Dig. 1,1,1,2 - não se chegou a um acordo final quanto à validade universal de qualquer delas. Todas são passíveis de crítica.

Fazendo uma síntese das várias teorias oferecidas ao nosso exame, podemos concluir, pragmaticamente, que estas são as notas que comumente acompanham as manifestações dos dois campos do ius publicum e do ius privatum: a) a lei é sempre geral, embora um comando geral se resolva, em realidade, numa soma de comandos individuais; daí não poder existir dúvida de que o argumento da lei pertence aos estudos do...

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