Higiene e Segurança no Trabalho

AutorEvaristo de Moraes Filho - Antonio Carlos Flores de Moraes
Ocupação do AutorProfessor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Páginas389-408

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1. Ordem social do trabalho - O descompasso entre o desenvolvimento tecnológico e o nível de consciência do homem vem sacrificando milhões de trabalhadores e ameaçando a própria sobrevivência na Terra.

Se antes a preocupação com o ambiente de trabalho era assunto restrito a sindicatos, profissionais trabalhistas e patrões, atinge agora toda a comunidade mundial, desde que a poluição oriunda da industrialização deixou de se limitar aos locais de produção e estendeu-se por todo o meio ambiente, dando origem a uma cadeia de destruição de longo alcance.

Até meados do século XX, o desenvolvimento da industrialização e o consumismo desenfreado foram almejados pelas nações, como o caminho que levaria a humanidade ao paraíso. Os grandes centros de consumo eram admirados e invejados como fortalezas inabaláveis. Em consequência, a ordem geral era a de fabricar, cada vez mais, a qualquer custo, seja com o sacrifício do operário, seja com a destruição das fontes de riqueza. E o custo foi alto demais.

Hoje, sabemos que as riquezas naturais não são inesgotáveis. A crise do petróleo balançou o mundo na metade do século XX, fazendo o homem refletir na hipótese de sua extinção. Os grandes centros de consumo transformaram-se, também, nos grandes centros de poluição e violência.

Segundo o filósofo e historiador Roger Garaudy, nós nos arrogamos o direito de esgotar em uma única geração energias de recursos guardados durante milhões de anos nas entranhas do planeta Terra. Como exemplo, cita:

A extração do carvão nas minas data de oitocentos anos, mas a metade desse carvão foi extraída durante os últimos trinta anos. Desde as origens da humanidade se extrai petróleo bruto, mas a metade desse petróleo foi extraída no curso dos dez últimos anos.

Um terço das árvores existentes em 1882 (cerca de 2 bilhões de hectares) foi destruído em 1952... a cada minuto o homem destrói 20 hectares de florestas no mundo. A pasta de papel necessária para a publicação de New York Times de domingo, com seus 80% de publicidade, exige o corte de 15 hectares de floresta canadense, e a dos outros números, 6 hectares.1

Laura Conti2 adverte quanto à crescente concentração de poluentes como mercúrio, chumbo, PVC, DDT, entre outros, nas águas dos rios e dos mares, extinguindo espécies vegetais e animais. Segundo a autora, o homem, consumidor tanto das águas como dos animais e vegetais poluídos, é vítima de intoxicações, cânceres e outros tipos de doenças fatais.

De outro lado, estatísticas procedidas nas fábricas são assustadoras. Em estudo realizado com trabalhadores americanos expostos ao asbesto (amianto), o câncer foi responsável por 40% da causa

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mortis, e estima-se que 20% do total desses trabalhadores adquirirão câncer de pulmão.3

Em São Paulo, dentre 5 mil casos de acidentes e doenças do trabalho, verificou-se 3.016 casos de epondilopatias, 778 de traumatismos em geral, 386 de tuberculose, além de outras doenças.4

Centenas de estatísticas realizadas em ambientes de trabalho nos deixariam perplexos. Sendo o trabalhador também um habitante deste planeta, duplamente ele é atingido. Como cidadão comum, sofre as consequências da degradação do meio ambiente; no local de trabalho, as condições de vida são ainda mais desfavoráveis porque não raro lida diretamente com os agentes poluidores.

O trabalhador brasileiro não é diferente dos demais, embora procurem convencer-nos do contrário. O que os diferencia são suas condições de nutrição, salário, ambiente, higiene e segurança no trabalho, às vezes similares às condições do trabalhador europeu do século XIX.

A situação do nosso trabalhador é mais absurda se analisada à luz da Constituição Federal e da legislação trabalhista, ambas garantindo dignidade e proteção ao trabalhador. Verifica-se, portanto, que temos aqui, além do descompasso entre o desenvolvimento tecnológico e o nível de consciência do homem, outro descompasso - entre a lei e a realidade.

Os princípios consagrados na Constituição de 1988 foram conquistados por meio de reivindicações dos próprios trabalhadores, apoiados por intelectuais e pela Igreja.

Em 1905, Evaristo de Moraes5 escrevia sobre a responsabilidade dos patrões para com os operários, em casos de acidentes de trabalho e doenças. Já naquela época sustentava ele caber ao patrão não só o pagamento do salário ao trabalhador, mas, implicitamente, garanti-lo contra possíveis acidentes.

As mesmas ideias foram fortalecidas, em nível mundial, pela Igreja Católica. A Constituição Pastoral Rerum Novarum colocou o trabalho humano em grau de superioridade em relação aos demais elementos da vida econômica, na produção e no comércio de bens ou na prestação de serviços. Considerando o trabalho de enorme relevância na formação do caráter do homem, na transformação da natureza e, enfim, na multiplicação do patrimônio da família humana, aconselha a Rerum Novarum:

... tudo isso a favor da obrigação moral de unir a laboriosidade como virtude com a ordem social do trabalho, o que há de permitir ao homem tornar-se mais homem no trabalho, e não já degradar-se por causa do trabalho, desgastando não apenas as forças físicas (o que, pelo menos até certo ponto, é inevitável), mas sobretudo menoscabando a dignidade e subjetividade que lhe são próprias.6

A legislação brasileira evoluiu de conformidade com a filosofia aconselhada pela Igreja, culminando com a Constituição de 1988, ao garantir aos trabalhadores: educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção contra acidentes, etc.

O século XX foi caracterizado no Brasil pela negação de ser concedida educação, saúde, lazer e segurança à maioria dos operários brasileiros, chegando ao ponto de ser dado a alguns tratamento desumano, como os boias-frias e plantadores de cana. É a dissensão entre a lei e a realidade que parece aprofundar-se na medida de nossas conquistas. Será que no século XXI o Estado brasileiro irá cumprir a lei?

2. A sociedade brasileira - Muito se tem estudado acerca do caráter do povo brasileiro, em especial com relação ao seu comportamento social. Em nossa formação, Oliveira Viana considerava que os colonizadores usavam "da terra não como senhores, mas como usufrutuários, só para desfrutarem e a deixarem destruída".7

Evaristo de Moraes Filho registrou o aspecto isolacionista do povo brasileiro, afirmando:

Desde os tempos coloniais, como que vive o brasileiro, separado um do outro, em verdadeiro atomicismo social. Salvo raras manifestações de filantropia, de festividades periódicas, não se aproximam as pessoas, voluntariamente, para um convívio contínuo, para a constituição de um colégio

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institucional, independente de suas próprias vidas individuais.8

Tal isolamento agrava a tendência autônoma e patrimonialista do Estado nacional, porque a socie-dade passa a aceitar o mito de que o governo pode resolver todos os problemas. É um círculo vicioso e formado. Aos governantes não interessa incentivar a participação da sociedade porque é mais cômodo governar células isoladas. O povo, por força de suas próprias características e estimulado por elementos de alienação colocados fartamente à sua disposição, é facilmente levado a permanecer não participativo.

Temos, em consequência, uma sociedade regida por uma legislação avançadíssima no que se refere a direitos sociais, vivendo, em muitos aspectos, como se estivesse na Idade Média ou no famoso Oeste Americano do século XIX.

Essa realidade é sentida principalmente nas áreas de saúde, educação e segurança. Antes, portanto, de partirmos para novas conquistas, é necessário buscarmos o caminho da mobilização da sociedade com o objetivo de exigir os direitos já conquistados.

À medida que nos aprofundarmos no estudo das normas reguladoras da higiene e segurança, como em outras partes do direito trabalhista, chegaremos à mesma conclusão: é preciso que o brasileiro passe a exigir do Estado os seus direitos e um posicionamento de acordo com os interesses da sociedade. E, para isso, é primordial que se torne participativo. Caso contrário, continuaremos "fazendo de conta" que temos direitos.

3. A Constituição Federal - A Carta Magna consagra o princípio de que a ordem econômica está fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, e tendo por finalidade assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social.

Com idêntica filosofia foram estabelecidas na Constituição normas autoexecutáveis, regulando os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, entre as quais, algumas referentes à higiene e segurança do trabalho, que serão objeto de análise neste capítulo.

Observa-se, no art. 7º, a valorização do trabalho humano, nas seguintes determinações:

- redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio das normas de saúde, higiene e segurança (XXII);

- obrigatoriedade de adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas (XXIII);

- garantia de seguro contra acidente de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização que está obrigado quando incorrer em dolo ou culpa (XXVIII);

- proibição a menores de 18 anos de trabalho noturno, perigoso ou insalubre (XXXIII).

No capítulo de Seguridade Social, foram estabelecidas regras destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, previdência e assistência social, em respeito à norma programática contida no art. 193, de que "a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo, o bem-estar e a justiça sociais".

Em seguida, o art. 196 determina que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas, e, na seção específica da Previdência Social, está previsto que os planos desta atenderão, entre outras ocorrências, a cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte, incluídos os resultantes de acidentes do trabalho, velhice e reclusão (art. 201, I).

No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (art. 10, II, a), é vedada a dispensa arbitrária de eleito para o cargo de direção da...

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