Os direitos fundamentais (sociais) e a assim chamada proibição de retrocesso: contributo para uma discussão

AutorIngo Wolfgang Sarlet
Páginas176-197

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1. O Estado Constitucional, o dever de progressiva realização dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA3) e o "avanço" do Poder Judiciário - aproximação e delimitação do tema

Considerando o quadro normativo constitucional contemporâneo dominante, pelo menos no que diz com a evolução em termos formais (textuais) e quantitativos, é possível endossar a afirmação de Peter Häberle no sentido de que os direitos sociais (aqui compreendidos em sentido amplo, abrangendo a dimensão cultural e ambiental), especialmente em virtude de sua umbilical relação com a dignidade da pessoa humana e a própria democracia, constituem parte integrante de um autêntico Estado (Constitucional) Democrático de Direito,4 à exceção, por evidente, daquilo que se pode designar de um constitucionalismo meramente textual ou aparente, lamentavelmente não raro de ser encontrado5. Com efeito, ainda de acordo com Peter Häberle, ao mesmo tempo em que a dignidade da pessoa humana, na sua condição de "premissa antropológica" do Estado Constitucional e do Direito estatal, implica o dever do Estado de impedir que as pessoas sejam reduzidas à condição de mero objeto no âmbito social, econômico e cultural, o princípio democrático-pluralista, como consequência organizatória da própria dignidade da pessoa humana, assim como os direitos político-participativos que lhe são inerentes, exige um mínimo de direitos sociais, que viabilizem a efetiva participação do cidadão no processo democrático-deliberativo de uma autêntica sociedade aberta6, da mesma forma como - cabe acrescentar - não se pode mais conceber uma existência humana digna sem a garantia de um ambiente ecologicamente equilibrado e saudável e sem que o Estado Democrático de Direito

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seja simultaneamente também um Estado Socioambiental, que tenha como tarefa permanente a proteção e promoção sustentável dos direitos fundamentais em todas as suas múltiplas dimensões.

De outra parte, em instigante e influente ensaio produzido há quase quatro décadas, o mesmo Peter Häberle (antes, portanto, de alguns autores mais recentes, festejados, neste particular sem razão, pela sua originalidade e pioneirismo) sublinha que precisamente o referido vínculo entre dignidade, democracia e os DESCA (entre outros aspectos, importa frisar) evidencia o quanto, em certo sentido, todos os direitos fundamentais são sempre também direitos sociais, visto sempre terem uma dimensão comunitária, mas em especial por serem todos, em maior ou menor medida, dependentes de concretização também por meio de prestações estatais. Ao mesmo tempo, tais vínculos revelam a natureza meramente gradual e relativa das distinções entre os diversos tipos, manifestações e funções de direitos fundamentais, de tal sorte que tais funções e tipologias devem ser compreendidas e concretizadas em conjunto, no sentido de se complementarem e reforçarem mutuamente7. Aliás, é precisamente esta interdependência uma das razões que dão suporte à opção terminológica em prol de um Estado Socioambiental, e que, de outra parte, recomendam a inclusão, no mesmo plano, dos direitos e deveres ambientais (ecológicos) no rol dos direitos econômicos, sociais e culturais, não sendo o nosso propósito adentrar aqui a discussão a respeito da correção de tal opção terminológica e mesmo conceitual. Para salientar ainda mais tal perspectiva, basta, no momento, recordar que mesmo os direitos civis e políticos têm experimentado um processo de releitura e mesmo reconstrução, adquirindo, como de modo sugestivo formulou Vasco Pereira da Silva, uma tintura verde, ecológica8, como bem o demonstram, citando-se apenas alguns exemplos, o reconhecimento de uma função simultaneamente social e ambiental da posse e da propriedade, o direito a informações na esfera ambiental, a noção de uma ecocidadania9, assim como a conexão entre saúde, moradia, trabalho e meio ambiente.

Por outro lado, para além da circunstância, muitas vezes apontada de forma crítica, de que muitas constituições (especialmente de países tidos como periféricos ou em desenvolvimento), dada a amplitude de seu catálogo constitucional de direitos sociais, talvez de fato tenham prometido mais do que o desejável ou mesmo possível de ser cumprido10, aspecto que também diz respeito ao que já se designou de uma banalização da noção de direitos fundamentais (fenômeno que não se manifesta apenas na seara dos direitos sociais)11, há que reconhecer que, transitando do plano textual para o da realidade social, econômica e cultural, a ausência significativa de efetividade do projeto social constitucional para a maioria das populações dos países designados de periféricos ou em desenvolvimento, marcados por níveis importantes de desigualdade e exclusão social, segue sendo um elemento caracterizador de uma face comum negativa. Tal crise, no sentido de uma crise de efetividade, por sua vez, é comum - em maior ou menor escala - a todos os direitos fundamentais, não podendo ser considerada uma espécie de triste privilégio dos direitos sociais, precisamente pela conexão entre os direitos sociais e o gozo efetivo dos assim designados direitos civis e políticos. Com efeito, também a democracia, a cultura e o ambiente se ressentem da fragilidade dos direitos sociais no que concerne à sua realização efetiva pelo menos para a ampla maioria dos cidadãos dos Estados Constitucionais que consagraram o projeto do Estado Socioambiental. Nesta mesma perspectiva, embora não seja nosso propósito desenvolver tal tópico, nunca é demais lembrar o quanto a exclusão social e econômica e a instauração de ambientes caracterizados pelo que Boaventura Santos chamou de "fascismos societais"12, encontram-se vinculados a determinadas opções de política econômica e modelos desenvolvimentistas assumidamente excludentes e responsáveis pelos altos índices de concentração de renda e, portanto, de desigualdades.

Tais considerações, por sua vez, propiciam uma aproximação com o enfoque específico do nosso estudo, visto que também a noção de uma proibição de retrocesso, como se verá, é, em certo sentido, comum a todos os direitos

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fundamentais. De outra parte, considerando que a proibição de retrocesso em matéria de proteção e promoção dos DESCA guarda relação com a previsão expressa de um dever de progressiva realização contido em cláusulas vinculativas de direito internacional (como é o caso do pacto internacional de direitos sociais, econômicos e culturais, de 1966, ratificado pela ampla maioria dos estados latino-americanos, igualmente vinculados pela Convenção Americana de 1969 e pelo Protocolo de São Salvador, que, por sua vez, complementa a Convenção Americana ao dispor sobre os direitos sociais13), poder-se-á afirmar que pelo menos tanto quanto proteger o pouco que há em termos de direitos sociais efetivos, há que priorizar o dever de progressiva implantação de tais direitos e de ampliação de uma cidadania inclusiva. Com efeito, progresso, aqui compreendido na perspectiva de um dever de desenvolvimento sustentável, necessariamente conciliando os eixos econômico, social e ambiental14, segue sendo possivelmente o maior desafio não apenas, mas especialmente para Estados Constitucionais tidos como periféricos ou em fase de desenvolvimento.

De outra parte, independentemente de o quanto os deveres de progressividade (em matéria de direitos sociais) e desenvolvimento possam (ou mesmo devam) ocupar um lugar de destaque, segue sendo necessária uma preocupação permanente com a consolidação e manutenção pelo menos dos níveis de proteção social mínimos, onde e quando alcançados, nas várias esferas da segurança social e da tutela dos direitos sociais compreendidos em toda a sua amplitude, inclusive como condição para a funcionalidade da própria democracia e sobrevivência do Estado Constitucional. Especialmente considerando as sequelas causadas (ainda que não exclusivamente) pelo avanço da globalização econômica - e vinculadas ao ideário habitualmente designado como neoliberal - sobre os direitos humanos e fundamentais15, verifica-se não ser possível simplesmente negligenciar a relevância do reconhecimento de uma proibição de retrocesso como categoria jurídico-constitucional, ainda mais quando a expressiva maioria das reformas que têm sido levadas a efeito em todas as partes do Planeta envolve mudanças no plano das políticas públicas e da legislação. Com efeito, dentre os diversos efeitos perversos da crise e da globalização econômica (embora não se possa imputar à globalização todas as mazelas vivenciadas na esfera social e econômica), situa-se a disseminação de políticas de "flexibilização" e até mesmo supressão de garantias dos trabalhadores (sem falar no crescimento dos níveis de desemprego e índices de subemprego), redução dos níveis de prestação social, desmantelamento dos sistemas públicos de saúde, aumento desproporcional de contribuições sociais por parte dos participantes do sistema de proteção social, incremento da exclusão social e das desigualdades, entre outros aspectos que poderiam ser mencionados.

Por outro lado, pelo menos de acordo com setores importantes da doutrina e alguma jurisprudência, é perceptível que também na ordem jurídico-constitucional brasileira acabou encontrando receptividade o assim designado princípio da proibição...

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