Direitos fundamentais à proteção da subjetividade no trabalho e emancipação coletiva

AutorRenata Queiroz Dutra
Páginas212-230

Page 212

Ver notas 1 y 2

1. Introdução

Os contornos dos direitos sociais relacionam-se à "questão social", aqui compreendida como as complexas relações desenvolvidas a partir da existência de uma classe de cidadãos livres que vive da alienação do seu trabalho aos detentores dos meios de produção.

Nesse contexto, a afirmação e a evolução histórica dos direitos sociais constitui um "contramovimento" 3 assecuratório do patamar mínimo de direitos aos trabalhadores em face dos mecanismos produtivos do capitalismo, que se desenvolve e se reinventa na sociedade.

Desse modo, a leitura dos direitos sociais, hoje, depende da análise da nova face do capitalismo, à luz da reestruturação produtiva responsável pela ascensão do modelo toyotista de produção, que tem por característica uma apropriação e um controle mais intensos da subjetividade e do tempo dos trabalhadores, com concomitante e paradoxal afrouxamento dos vínculos de afirmação individual e coletiva construídos a partir do trabalho.

Com vistas a contribuir no debate acerca da efetividade dos direitos sociais e partindo da estreita vinculação desses direitos com as políticas públicas essenciais, dentre as quais se incluem as medidas de garantia dos direitos trabalhistas, esse ensaio persegue uma releitura do rol de direitos fundamentais sociais da Constituição de 1988, vislumbrando o reconhecimento, a partir do Texto Constitucional, de um complexo de direitos sociais relacionados à subjetividade dos trabalhadores, que viabilize a proteção da sua dignidade contra as novas formas de exploração engendradas pelo capital.

O trabalho busca apontar os fundamentos constitucionais para a afirmação da identidade social dos trabalhadores e da sua emancipação coletiva, com respaldo no fortalecimento dos vínculos de pertencimento e solidariedade e na possibilidade de agregação das organizações coletivas dos trabalhadores em torno de pautas comuns dentro do complexo e heterogêneo mundo do trabalho.

O estudo se atém às premissas da reestruturação produtiva pós-fordista e da persistência da centralidade do trabalho, considerando a afirmação de identidades individuais e coletivas sólidas como fonte de reconhecimento e inserção social.

2. A centralidade do trabalho e sua imprescindibilidade à afirmação de identidades individuais e coletivas

O debate em torno da centralidade do trabalho na sociedade capitalista, após a mais recente reestruturação produtiva, é decisivo para a análise da questão.

Page 213

A reestruturação do modelo produtivo, que se caracterizou pela transição para o padrão toyotista, acarretou a fragmentação, complexificação e heterogeneização da classe trabalhadora4.

Dentre os diversos fatores envolvidos no processo, a grande crise vivenciada pelo capitalismo na década de 1970, o advento da Terceira Revolução Tecnológica5, a crise do Estado Social, a larga substituição do trabalho humano pela mecanização e o crescimento do setor de serviços em detrimento do setor industrial compuseram o cenário, cujas consequências foram o aumento do desemprego estrutural e a desvalorização do trabalho humano (condições salariais e, sobretudo, condições de contratação, prevalecendo as formas precárias), numa decorrência direta da demanda por flexibilidade e desregulamentação. O fenômeno contou ainda com a incisiva colaboração do discurso neoliberal.

Esse panorama, contudo, não autoriza corroborar a crença, alardeada por muitos doutrinadores das ciências sociais, no sentido de que o trabalho teria perdido sua centralidade.

Ricardo Antunes é incisivo ao refutar tal compreensão: a fragmentação, complexificação e heterogeneização da classe trabalhadora (fenômeno que responde às mudanças pelas quais o capitalismo tem passado) não representam o fim do trabalho, nem mesmo a perda da sua centralidade. O recuo do "trabalho vivo" em favor do "trabalho morto" vem acompanhado pela intensificação da exploração do "trabalho vivo", de modo a explicar que, em verdade, os trabalhadores não são cada vez menos necessários: ao contrário, assiste-se a uma intensificação e sofisticação da exploração do trabalho daqueles que continuam empregados como forma de seguir aumentando a produtividade na mesma proporção em que cresce o desemprego estrutural6.

O sistema capitalista se remodela mais uma vez no intuito de reduzir custos produtivos e maximizar os lucros: num movimento que percebe o trabalho humano como qualquer outro fator produtivo material, faz cortes nos quadros de trabalhadores mediante intensificação da exploração dos que persistem trabalhando. Não consegue, contudo, se desfazer do imprescindível labor humano.

De outro lado, o sistema se reinventa utilizando o chamado "tempo livre" dos obreiros em proveito da reprodução capitalista. Faz isso por meio do controle ideológico das massas, construindo uma conjuntura na qual, embora se dispense cada vez mais a mão de obra de trabalhadores, maior é o controle e a difusão dos princípios e valores do sistema produtor de mercadorias, a ponto de que se possa falar que hoje "o trabalho também é o não trabalho" 7.

O mecanismo é complexo: a partir da difusão de valores fundantes do sistema por meio da mídia, da propaganda, da arte e do seu complexo superestrutural, o sistema produtivo tem utilizado o tempo livre dos trabalhadores para a construção subjetiva do perfil de trabalhador que se deseja aproveitar nos processos de produção (competitivo, proativo, preparado para responder com rapidez e agilidade às demandas tecnológicas e comunicacionais do capital). Concomitantemente, a significação do lazer dos trabalhadores é aproximada da noção de consumo. Desse modo, a reprodução capitalista passa a persistir nos momentos de não trabalho e se difunde pela sociedade, por meio das esferas comunicacionais e científicas.

Nesse contexto, a difusão do trabalho e do controle da produção do trabalhador na sociedade atual revela, embora de forma diferenciada dos primeiros momentos da organização capitalista, a intensa relevância do trabalho na sociedade moderna, desconstruindo a ideia de dispensabilidade do trabalho e perda da sua centralidade.

A partir da relevância do trabalho na sociedade capitalista volta a ser afirmada a relevância do trabalho na construção das experiências individuais de cada um dos trabalhadores e na atribuição de sentido à sua existência.

Desse modo, afirma-se como premissa teórica que a crise atual do trabalho decorre mais da falta de sentido do trabalho alienado e precarizado em uma sociedade de consumo do que da perda de relevância ou centralidade desse elemento na vida da classe trabalhadora. A problemática afirmação identitária por meio do trabalho não significa a redução da importância do trabalho dentro da sociedade, mas sim a sua deturpação em razão do avanço do capital sobre a mão de obra de modo a ofendê-la, de diversas maneiras, em sua construção subjetiva.

Page 214

Manuel Castells define identidade como a fonte de significado e experiência8. Entende-a como o "processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter--relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado"9.

O autor diferencia identidade de papel social, esclarecendo que embora possam coincidir, essa coincidência não é necessária, pois os papéis sociais representam funções, ao passo que as identidades organizam significados por meio do processo de individuação pelo qual passam. As identidades constituiriam fontes de significado para os seus próprios atores e, embora se forjem a partir de instituições dominantes, somente assumem a condição de identidades quando os atores sociais as internalizam, construindo seu significado com base nessa internalização10.

Assim, o papel social ocupado pelo trabalhador, por si só, não assegura a construção de uma identidade, embora possa fornecer as principais condições para tanto, numa sociedade salarial. A construção identitária pode ser obstada se o sujeito, para além dos intensos processos de alienação que o capitalismo engendra, não alcança condições mínimas de individuação, reconhecimento e estabelecimento de vínculos sociais a partir do trabalho11.

Essa identidade, que Castells denomina primária, estruturaria as demais identidades construídas a partir das interações coletivas. A identidade, portanto, também revela sua dimensão coletiva. O individualismo, para Castells, é uma forma de identidade coletiva tanto quanto aquelas baseadas em vínculos de solidariedade. O modo pelo qual se constroem as relações coletivas haverá de determinar que espécie de dimensão coletiva da identidade que se forma, mas não a sua negação12.

Partindo da premissa do trabalho como principal fonte de integração e reconhecimento dentro da sociedade salarial13, conclui-se que a afirmação que o indivíduo alcança por meio do trabalho é de viés individual, no sentido onto-lógico da atribuição de significado à sua existência, mas também coletivo, no sentido da construção de um sentimento de pertencimento a coletividades e do estabelecimento de vínculos de solidariedade que permitam o reconhecimento.

Karl Marx, ainda que tenha sustentado que só o trabalho não alienado permite a afirmação da identidade plena da classe trabalhadora, reconhecia a potencialidade do trabalho nesse sentido, mesmo...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT