A perspectiva deontológica de direitos sociais: dois exemplos de persistência de uma mentalidade anterior à Constituição de 1988

AutorPaulo Henrique Blair de Oliveira e Noemia Porto
Páginas231-247

Page 231

Ver notas 1 y 2

1. Introdução

Os tratamentos jurisprudenciais conferidos aos trabalhadores públicos, quanto à nulidade da contratação sem concurso, e ao número limite dos dirigentes sindicais detentores de estabilidade, traduzem oportunidades de análise de como o tribunal superior aplica garantias fundamentais da Constituição de 1988, cuja dimensão assumida é a democrática de direito (art. 1º).

A promulgação da Constituição trouxe para o âmbito da competência material da Justiça do Trabalho o julgamento de litígios envolvendo trabalhadores públicos não regidos pelos chamados regimes estatutários, consoante a redação que àquele tempo já constava do seu art. 114. O advento da Constituição também significou mudança em outro aspecto salutar para o mundo do trabalho. Trata-se da livre organização e atuação das entidades sindicais, vale dizer, sem a ingerência do Estado. Tanto a alteração de competência material referida, quanto a nova proposta em torno dos sindicatos, propiciam uma oportunidade de observação quanto às persistências e às mudanças nos discursos judiciais endereçados ao tratamento de tais temas.

Mudanças constitucionais, como as acima mencionadas, ainda que em temas diversos relacionados ao mundo do trabalho, constituem possibilidades de análise dos movimentos e das dificuldades de compreensão e de interpretação judiciárias quanto à coerência no trato dos direitos fundamentais enquanto direitos das pessoas trabalhadoras.

O presente artigo objetiva analisar parte desses movimentos, indagando em que medida existem indicativos de que a jurisdição trabalhista especializada tenha dado aos temas do trabalho público e da organização sindical uma interpretação condizente com o marco, afirmado nessa Constituição, do Estado Democrático de Direito; ou se vem reproduzindo uma forma de pensar anterior, deixando de lado a consideração de um novo horizonte principiológico, que se extrai dos direitos e das garantias fundamentais, igualmente presente na Constituição.

Para que essa tarefa seja possível nos limites desse texto, foi inicialmente selecionado um aspecto do tratamento jurisprudencial dado pelo TST ao trabalho público: como repercutem na relação de trabalho os requisitos que a Constituição considera necessários para o ingresso de um trabalhador não estatutário nos quadros do poder público. O tratamento jurisprudencial consolidado , no particular, acha-se expresso na Súmula n. 363 do TST:

Súmula n. 363. CONTRATO NULO. EFEITOS. A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS.

Page 232

Quanto à questão sindical, o art. 522 da CLT prevê que "a administração dos sindicatos será exercida por uma diretoria constituída, no máximo, de sete e, no mínimo, de três membros, eleitos esses órgãos pela assembleia geral". O Supremo Tribunal Federal firmou precedente quanto à compatibilidade do dispositivo com o novo Texto, e o Tribunal Superior do Trabalho, na mesma trilha, editou a Súmula n. 369 que, no item II, reconhece o fenômeno da recepção, especificamente para admitir que este é o número limite para definição da estabilidade provisória decorrente do exercício de mandato sindical. Acaso o estatuto preveja número superior de dirigentes, apenas sete, observada a hierarquia, são beneficiários da garantia da estabilidade, podendo o empregador, no uso do seu poder potestativo, dispensar os remanescentes.

No caso do trabalho público, a restrição no âmbito de análise é justificada por expressar um recorte em momento fundamental da temporalidade em que uma relação jurídica está inserida (particularmente uma relação contratual de trabalho), qual seja, o seu início (a admissão do trabalhador público). Na hipótese, é certo que também são comuns na Justiça do Trabalho ações de trabalhadores contratados, sem a observância do requisito do ingresso mediante concurso público, pela Administração Direta, suas autarquias e fundações públicas. Nesses casos, o tratamento conferido tem sido o mesmo da Súmula n. 363 do TST. Ocorre que paira séria controvérsia sobre se estaria compreendida na competência material da Justiça do Trabalho declarar a irregularidade da contratação de funcionários pela Administração Direta, suas autarquias e fundações públicas, e mesmo se o tratamento adequado seria considerá-los - já que não se inseriram no regime do estatuto, porquanto não prestaram concurso público - na lógica do regime geral trabalhista. A discussão diz respeito ao alcance do decidido pelo STF na ADI n. 3.395-DF. Todavia, independentemente da questão da competência, que não constitui exatamente o objeto da presente análise, releva notar que a Súmula n. 363 do TST permanece como importante marco na compreensão dos efeitos do contrato nulo firmado com a Administração Pública.

No que toca à questão sindical, a estabilidade do dirigente prevista na Constituição representa elemento importante no arcabouço de proteção contra atos e práticas antissindicais, porquanto pretende cumprir a finalidade de protegê-lo de eventuais represálias do empregador em função do exercício de sua função como representante eleito dos trabalhadores.3 Por isso, sobressai importante decisão judicial consolidada que limita a estabilidade a certo e determinado número de dirigentes. Aliás, é bom lembrar que os direitos fundamentais sociais trabalhistas, como ocorre com os demais direitos fundamentais, são resultado de intensa luta social, motivo pelo qual é relevante notar a proteção jurídica que é endereçada aos líderes sindicais.

Ambos os recortes, entendidos como entendimentos jurisprudenciais selecionados, possuem coincidência salutar. Nota-se nas alterações constitucionais dos casos uma pretensão de mudança discursiva pragmática, mas que, no entanto, parece encontrar resistência na elaboração jurisprudencial sobre elas. São eles, então, exemplos e possibilidades de análise indiciária, cuja investigação pode revelar como essa resistência opera.

O constitucionalismo da atualidade procura se assentar de forma cotidiana sobre uma ordem jurídica baseada em princípios, altamente dependente da prática interpretativa, voltada à singularidade do presente, e que projeta constantemente a tensão entre liberdade e igualdade4.

Por isso mesmo, o fio condutor da análise partirá da compreensão de que processos judiciais são encadeamentos narrativos estruturalmente assemelhados àqueles produzidos literariamente5. Essa perspectiva viabiliza investigar como mudanças ou permanências semânticas podem expressar, desconstru ir e reconstruir sentidos que são dados aos direitos fundamentais. A linguagem não é somente produto de uma narrativa, mas também é conformadora de outras tantas. Quando há desconstrução/reconstrução de discursos, o que se apresenta como texto ganha intertextualidade, capaz não apenas de expressar uma pragmática social, mas também de mudá-la.

Os textos em geral, e o texto jurídico em particular, não possuem um conteúdo a priori, natural; não são um dado, mas um construto. Finalizados pelo autor, os textos entram no círculo hermenêutico. Mesmo no caso dos direitos

Page 233

fundamentais, embora não se possa considerar amplitude que comporte uma l inguagem arbitrária sobre seu conteúdo, abrem espaço de contingência completamente indeterminado e requerem decisões construídas através de procedimentos.

Exatamente por isso, os vínculos concretos da Constituição são sobretudo vínculos organizacionais6, o que faz destacável, e permanentemente investigável, o compromisso, ou não, dos tribunais com os valores homogeneizados como direitos fundamentais.

A circularidade presente nos elementos autor, texto e interpretação não constitui uma prisão argumentativa. Ao contrário, permite compreender parte do modo como discursos judiciais - e um campo de significados do qual esses discursos lançam mão - convivem de forma tensionada. A seletividade operacional que resulta dessa tensão é a própria memória do direito, quanto ao sentido daquelas garantias que denominamos fundamentais, cuja função, sob a perspectiva sistêmica, é temporalizar o que, de outro modo, seria um presente contínuo7, incapaz de uma construção de sentidos relevantes precisamente por não distinguir entre o que é relevante e o que não é. Em última análise, essa seletividade constrói a única realidade existente do ponto de vista interno a um sistema: a memória desse próprio sistema8.

O pressuposto teórico utilizado para a presente reflexão, portanto, é o de que a memória é parte importante do sistema, quer seja ele jurídico ou outro qualquer. O direito possui uma memória assim como os sistemas em geral que processam sentido9, a qual é ativada por meio de uma seletividade hermenêutica.

A expectativa nutrida nessa introdução é que a análise desses elementos semânticos possa contribuir como fios de tapeçaria cujo significado não é apreensível senão a certa distância, mas cuja investigação somente é factível nos fragmentos de suas várias linhas10.

2. A observação diacrônica da semântica

Por que razão recorrer a uma análise diacrônica da semântica utilizada em textos de jurisprudência quando a pretensão é somente confrontá-los com a Constituição? Esse confronto não está acessível a priori, por meio de um simples cotejo de textos? Pelo menos dois motivos podem ser postos, já de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT