Arranjos institucionais e estrutura sindical: o que há de novo no sistema jurídico sindical brasileiro?

AutorSayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva
Páginas258-286

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Ver nota 1

1. Introdução

O sistema sindical brasileiro permanece em contínuo processo de reforma normativa. Embora a Reforma Sindical permaneça no reino da utopia desejada por estudiosos do mundo do trabalho, juristas, economistas e sociólogos, diante dos continuados fracassos dos projetos totalizantes de mudança da estrutura sindical brasileira,2 as regras e os procedimentos de registro permanecem sendo alterados de modo assistemático por um conjunto de atores institucionais,3 que estabelecem mutações nos arranjos institucionais relativos à organização sindical brasileira. Enquanto não é possível observar um desenho institucional ótimo fundado na autonomia e na liberdade sindical - que pressupõe uma concordância entre a liberdade de criar e manter uma entidade e a liberdade para a ação efetiva -, o objetivo deste ensaio é compreender a atividade de redesenho do sistema jurídico sindical, com o estudo das regras heterônomas e de decisões judiciais proferidas.

Para tanto, em um primeiro momento, apresentar-se-á o arranjo institucional corporativo constituído na década de 1930 e mantido praticamente intacto durante sessenta e cinco anos de nossa história, seus institutos e categorias jurídicas centrais (seção 02). Os impasses organizacionais e os resultados da dinâmica decisória vivenciada nos primeiros vinte anos da Constituição cidadã (1988-2008) que definem nosso arranjo institucional se encontram4 na seção subsequente, com enfoque nas atuações administrativa (3.1); jurisdicional (3.2) e legislativa (3.3).

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Para refletir sobre as permanências e continuidades na estrutura sindical brasileira, na seção 04 será apresentado o resultado específico da pesquisa realizada para este artigo. Em síntese, espera-se contribuir com uma reflexão em torno dos impasses decisórios, bem como apresentar os novos condicionamentos procedimentais que modelam a criação e a vida das entidades sindicais, e que definem parte do cenário em que os atores sindicais agem, interagem, moldam suas preferências, definem suas ações, dentre as opções e arranjos instituídos. Não se desconhece a capacidade de ação e renovação da ação sindical, a partir das escolhas ideológicas e políticas dos sujeitos e correntes sindicais, que podem inovar autonomamente a ordem estabelecida. Todavia, a interação entre arranjos normativos, condicionamentos heterônomos, comportamento dos atores e suas capacidades institucionais é decisiva para compreender a conformação do sujeito sindical neste início de século. Afinal, as instituições importam.

2. Arranjo institucional corporativo

"Realmente, o pensamento central que a inspira e orienta [a nossa política sindical], ao criar essa vasta rede de organizações sindicais, dentro da qual vivem e se articulam os trabalhadores de todo o país, não é preparar o clima para as lutas sociais." (VIANNA, Oliveira. Direito do trabalho e democracia social: o problema da incorporação do trabalhador no Estado. 1951, p. 83.)

A engenharia institucional aplicável ao sistema sindical brasileiro foi delineada na longa Era Vargas, tendo suas diretrizes constitucionais apresentadas na Carta outorgada de 1937, a Polaca, cujas feições corporativistas5 foram inspiradas na Carta del Lavoro.6

Sua modelagem foi conformada com a Lei Orgânica de Sindicalização Nacional - LOSN (Decreto-lei n. 1.402, de 1939), de autoria de Oliveira Viana. Tal Lei Orgânica de Sindicalização Nacional e sua legislação complementar são apresentadas e estudadas, em confronto com o regime corporativo italiano, por seu artífice, em "Problemas de Direito Sindical"7, sendo certo que dentre os objetivos do arranjo institucional delineado estava o de suprimir toda e qualquer autonomia e espontaneidade da estrutura sindical, de modo que: toda a vida das associações passaria "a gravitar em torno do Ministério do Trabalho: nele nascerão, com ele crescerão; ao lado dele se desenvolverão; nele se extinguirão," conforme anunciado na exposição de motivos da regra8.

A configuração do sistema se completaria por meio de outros dispositivos legais: o Decreto-lei n. 2.377, de 1940, sobre o pagamento das contribuições sindicais obrigatórias, e o Decreto-lei n. 2.381, de 1940, que aprovou o quadro das atividades e profissões e as diretrizes para o enquadramento sindical, bem como fixou a contribuição para as

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entidades sindicais de grau superior. A LOSN e os Decretos-leis ns. 2.377 e 2.381 foram compilados para dar origem ao Título V da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT.9

O Título V da Consolidação das Leis do Trabalho exigia a constituição de uma associação profissional anterior ao sindicato e admitiu a existência de três entidades sindicais: o sindicato propriamente dito, a federação e a confederação sindical. A estrutura sindical seguiu uma organização vertical, fundada no conceito de categoria, definida previamente a partir de um sistema de enquadramento legal.

Categoria, segundo definiu Magano, "é um conjunto de pessoas ligadas pela solidariedade resultante da identi-dade de condições de vida, que perseguem interesses comuns"10. No Direito brasileiro, as categorias se aglutinam em torno do exercício de atividades idênticas, mas podem reunir atividades similares e conexas: "Nesse sentido, atividades idênticas são atividades iguais. Similares são atividades que se assemelham, se parecem. Conexas são atividades que, não sendo parecidas ou semelhantes, complementam-se, conectam-se mutuamente."11.

A similaridade ocorre quando presente certa analogia entre as profissões (como ocorre com padeiros e confeiteiros, garçons e camareiros), enquanto na conexidade há uma relação fática entre pessoas ou atividades que concorrem para a mesma finalidade, para a produção de um mesmo bem ou serviço, como ocorre, por exemplo, entre trabalhadores com atividades e profissões distintas que exercem suas tarefas dentro de uma linha de produção.

Na CLT, o conceito de categoria está disciplinado no art. 511: categoria econômica pressupõe o exercício de atividade empresarial idêntica, similar ou conexa (§ 1º, art. 511); categoria profissional pressupõe a similitude de condições de vida - profissão ou trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica, nas atividades econômicas similares ou conexas (§ 2º, art. 511). Consideram-se categorias profissionais diferenciadas aquelas profissões ou funções que se distinguem por terem estatuto profissional especial ou em face de condições de vida singulares (art. 511, § 3º). Assim, para um sindicato se constituir é necessário que aglutine empregadores ou trabalhadores integrantes de uma mesma categoria, não sendo possível a reunião de diversas categorias.12

Como se observa, um aspecto decisivo na formação de um sindicato era a atividade desempenhada pela empresa, já que o enquadramento legal ocorria levando-se em conta a estrutura econômica e o sindicalismo patronal, segundo o plano (e não regra) de paralelismo simétrico. Para impedir o exercício da criatividade dos agentes sociais e econômicos na interpretação do conceito de categoria, o legislador corporativo determinou não só que fosse observada a

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correspondência entre as categorias econômicas e profissionais, como também que tal paralelismo se desse conforme um planejamento prévio, revisto periodicamente pelo Estado, estabelecendo uma modalidade de enquadramento legal.

Enquadramento, na definição de José Francisco Siqueira Neto, é "o procedimento pelo qual se estabelece a separação dos sujeitos na relação sindical - trabalhadores e empregadores -, de acordo com o ramo de atividade produtiva, com a localização territorial, ou ainda, pelos dois aspectos, podendo tal enquadramento ser resultado de cumprimento de disposição legal, ou de manifestação volitiva da própria organização sindical em atinência com seus estatutos"13. A Consolidação das Leis do Trabalho estabeleceu a regra do enquadramento legal, pois ao se organizar uma entidade sindical, sua denominação e representação deveriam obedecer ao Quadro de Atividades e Profissões (anexo à CLT, cf. art. 577), revisto a cada dois anos por uma Comissão de Enquadramento Sindical, órgão administrativo federal a quem competia proceder ao enquadramento, classificar as atividades e profissões e resolver as dúvidas e controvérsias existentes sobre a organização sindical. Ou seja, controle absoluto e total pelo Estado, por meio da Comissão de Enquadramento, do enquadramento coletivo, incompatível com a democracia e a liberdade organizativa.14

A Consolidação das Leis do Trabalho estabelecera um projeto de enquadramento detalhado e sistemático, interpretado e aplicado pelo Ministério do Trabalho e sua Comissão de Enquadramento, por meio de um mecanismo de controle prévio e administrativo. Alguns de seus dispositivos permitiam uma maleabilidade na definição do enquadramento, em especial o parágrafo único do art. 571 e o art. 572 da CLT, que versam sobre o critério de aglutinação das categorias similares e conexas e de dissociação dessas atividades do sindicato principal, desde que a nova entidade "ofereça possibilidade de vida associativa regular e de ação sindical eficiente". De toda sorte, por ato unilateral e discricionário da autoridade administrativa se promovia o enquadramento sindical, com o qual se definiam as atividades econômicas e as profissões (e não funções) que poderiam constituir as unidades mínimas possíveis para o associativismo sindical.

Os sindicatos não poderiam ser criados livremente, como se vê. Mas as...

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