Abandono afetivo: os limites do direito na coerção de manifestações emocionais humanas

AutorArthur M. Ferreira Neto, Luciana Gemelli Eick
CargoMestre e Doutor em Filosofia pela PUCRS e Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor da Faculdade de Direito da PUCRS e Advogado. Porto Alegre, RS-Brasil, e-mail: aferreiraneto@yahoo.com.br - Especialista em Direito dos Contratos e Responsabilidade Civil pela UNISINOS. Mestranda em Fundamentos ...
Páginas218-264
Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 218-264, jan./jun. 2015
ISSN 2179-345X
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
Revista de
Direito Econômico e
Socioambiental
doi: 10.7213/rev.dir.econ.socioambienta.06.001.AO09
Abandono afetivo: os limites do direito na coerção de
manifestações emocionais humanas
Abandonment affective: the limits of law in the coercion of emo-
tional human expressions
Arthur M. Ferreira Neto[a], Luciana Gemelli Eick[b]
[a] Mestre e Doutor em Filosofia pela PUCRS e Mestre e Doutorando em Direito pela Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor da Faculdade de Direito da PUCRS e Advo-
gado. Porto Alegre, RS-Brasil, e-mail: aferreiraneto@yahoo.com.br
[b] Especialista em Direito dos Contratos e Responsabilidade Civil pela UNISINOS. Mestranda
em Fundamentos Constitucionais do Direito Público e do Direito Privado pela PUCRS. Advo-
gada. Porto Alegre, RS-Brasil, e-mail: lgeick@gmail.com
Resumo
O presente artigo inv estiga o abandono afetivo e suas implicações jurídicas, a partir da
análise crítica do acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº
1.159.242/SP. Nesse contexto, aborda os argumentos jurídicos retratados no julgado para-
digma. A seguir, discute acerca do princípio da dignidade da pessoa humana e a precificação
do afeto, bem como a eficácia social da decisão que pretendeu regular a manifestação do
cuidado afetivo. Ao final, conclui pelo desacerto da decisão quando da análise da negligência
paterna, por tratar a questão como a mera busca do negligenciado pela satisfação pecuniá-
ria, sem qualquer contrapartida sentimental, o que poderia culminar até mesmo para acen-
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tuar o abismo afetivo já existentes, inobstante a louvável tentativa da Corte Superior de
disciplinar tema deveras complexo.
Palavras-chave: Abandono afetivo. Superior Tribunal de Justiça. Indenização. Precificação do
afeto. Negligência.
Abstract
This essay in vestigates affective abandonment and its legal implications from the critical
analysis of the judgment of the Superior Court in Special Appeal No. 1159242/SP. In this
context, discusses the legal arguments portrayed in a comparative case. Then discusses
about the principle of human dignity and the precification of affect a nd social effectiveness
of the d ecision that was intended to regulate the expression of affective care. In the en d, it
concluded that the decision were a mistake when they analyzed the paternal negligence, by
treating the issue as the mere pursuit of neglected by pecuniary satisfaction, without any
sentimental consideration, which could lead even to accentuate the existing emotional
abyss, in spite of the laudable attempt of the Superior Court to discipline theme indeed
complex.
Keywords: Affective abandonment. Superior Court of Justice. Monetary compensation.
Princing of affection. Negligence.
Introdução
O presente artigo tem, como propósito central, averiguar se toda e
qualquer ação tipicamente humana pode ser alvo de controle e regul a-
ção por parte do direito, inclusive aquelas interações humanas que
pressupõem alguma manifestação sensitiva espontânea, com intencio-
nalidade autônoma e sincera do agente, como é o caso do afeto, carinho
e atenção. Dito de outro modo, busca-se nesse estudo analisar se tanto o
legislador, quanto o operador jurídico poderiam, por meio da dimensão
coercitiva do direito, pretender imputar obrigação jurídica que exigiria
o cumprimento de determinadas atitudes afetivas por parte das figuras
parentais em relação aos seus filhos, de modo a impor sanções (i.e., o
pagamento de indenização pecuniária) em caso de não atendimento
satisfatório desse suposto dever jurídico. A relevância e a atualidade
dessa discussão surge em razão do Acórdão proferido pela 3ª Turma do
Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do RESP 1.159.242,
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FERREIRA NETO, A. M.; EICK, L. G.
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dano moral passível de ser regulado pelo Direito e de ser objeto de re-
paração pecuniária por meio de indenização.
Importante ressaltar que não se almeja aqui apresentar tão-
somente comentários ao referido julgado com objetivo de analisar a
retidão das questões técnico-jurídicas enfrentadas no caso, de modo a
averiguar a sua compatibilidade ou não com a dogmática civilista ou
com o próprio Código Civil. Não se visa, portanto, a enfrentar aqui as
considerações pertinentes ao tema da responsabilidade civil em si con-
siderada, de modo que não se busca, neste estudo, reconstruir e reade-
quar os conceitos de culpa, dano, nexo causal etc... Isso porque, confor-
me se pretende demonstrar, as questões envolvendo o suposto dever de
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enfrentadas apenas a partir da ótica civilista, na medida em que esse
debate toca em pressupostos fundamentais da teoria do direito, exigin-
do, pois, seja esclarecida, previamente, a efetiva função coordenadora
do direito e sejam, assim, definidos os verdadeiros limites regulatórios
do direito. Desse modo, o presente estudo assume escopo expressiva-
mente mais amplo, já que se pretende enfrentar a referida questão jurí-
dica a partir da perspectiva da filosofia do direito e da teoria do direito,
com o intuito de se averiguar se, dentre todas as ofensas a bens imateri-
ais (tais como honra, consciência, imagem) que são passíveis de inden i-
zação, a falha em dedicar afeto, carinho, atenção também se encontra
entre esses bens intangíveis que podem ser controlados e coordenados
pela nossa prática jurídica.
Ressalte-se, desde já, que os autores de nenhum modo entendem
como louvável ou digna de elogio a postura de um pai que não demons-
tra afeto ou que não dedica atenção emotiva ao seu filho. Não se preten-
de, pois, por meio deste artigo, elaborar argumentos que servirão de
proteção especial a pais negligentes e omissos em relaç ão a seus filhos.
Os autores, certamente, compartilham da visão comum de que um ind i-
víduo que não demonstra afeto, carinho e atenção para com a sua prole
manifesta alguma espécie de corrupção de caráter e assume atitude
moralmente reprovável, a qual, inclusive, pode se justificar em razão de
inúmeros fatores sociológicos e psicológicos (e.g., algum distúrbio emo-
cional ou até algum transtorno psíquico).

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