A abertura valorativa do conceito de família e o reconhecimento das famílias paralelas

AutorFernando Rodrigues Martins
Páginas103-138

Page 103

Ver Nota1

1 Introdução: constitucionalizando o óbvio

A Constituição Federal de 1988 modiicou profundamente o cenário jurídico nacional, postando-se como principal fonte formal2voltada ao projeto de vida da atual sociedade liberto-solidária e projetando-se no que respeita ao âmbito jurídico privado3. Opondo ao regime ditatorial e opressor anterior, permitiu-se

Page 104

ir além da chamada liberdade negativa para entreter em funções inéditas e propositivas, abrindo espaço disciplinar e regulamentar à inúmeras situações fático-jurídicas antes não observadas. Percebe-se a revalorização da teoria da norma, tanto no já repisado aspecto qualitativo (princípios e regras)4como no aspecto funcional (do dever-ser ao dever-fazer)5.

Grosso modo, duas características podem ser facilmente identiicadas: notabilizando-se em acompanhar as demais constituições mundiais e declarações sociais de direitos humanos, nossa Constituição redeiniu conteúdos de base na transformação comunitária (no plano dos valores); e necessitando, em razão disso, cumprir a carga normativa tocada, constituiu inédito recorte metodológico (no plano de distribuição dos processos gerais-constitucionais).

Para a primeira característica, dispara-se a conclusão antecipada de que os critérios constitucionais (valores)6foram dirigidos à promoção da pessoa (cariz huma-

Page 105

nitário) sem que houvesse desprezo às manifestações normativas biocêntricas (meio ambiente). Lúcida a compreensão de que “o Estado social da democracia distingue-se, em suma, do Estado social dos sistemas totalitários por oferecer, concomitantemente, na sua feição jurídico-constitucional, a garantia tutelar dos direitos da personalidade”7.

Daí coberto de razão aquele que professa: ‘Estado-meio; pessoa-im’8.

Já o segundo traço reporta-se ao recorte metodológico. A Constituição contemporânea abandonou a clássica visão representativa de carta programática de Estado para, a partir de estratégicos elementos e faces (organizacionais, limitativos, socioideológicos, estabilizantes e de aplicabilidade), apresentar-se como resposta apta às necessidades básicas da população, até porque o grande desaio constitucional não se prende tão somente à fundamentabilidade de direitos, senão na garantia de efetividade dos mesmos9.

Pois bem. A abordagem constitucional às iguras privadas, antes apenas condicionadas ao mundo dos códigos10e legislações extravagantes, foi extremamente sentida e ensejadora do dever de proteção do Estado11. Como averbado, a Constituição, sendo projeto e promessa de vida para milhões de pessoas, não se ateve tão somente às questões público-estatais e de competência orgânico-administra-

Page 106

tiva, ao contrário e, sobretudo, passou a regular temas de direito privado, essen-ciais à melhoria da compreensão e aplicação da ordem jurídica justa.

A Constituição Federal, mediante extensa valorização normativa de temas cotidianos respeitantes ao direito privado, acabou por qualiicá-los fundamentalmente. Basta dedilhar o Texto Maior para atentamente se deparar com: direitos da personalidade (honra, nome, imagem, liberdade, identidade, vida privada, intimidade); direito dos contratos (defesa do consumidor, livre iniciativa, ato jurídico perfeito, abuso do poder econômico, atividade publicitária, distribuição e comércio de substâncias nocivas e perigosas); direito da responsabilidade civil (dano material e extrapatrimonial aos direitos da personalidade, responsabilidade civil por danos nucleares, responsabilidade civil por dano ao meio ambiente, responsabilidade civil objetiva do Estado e responsabilidade civil preventiva); direito das empresas (proteção às empresas de pequeno porte); direito das propriedades (garantia desse direito e função social transcendente rural e urbana, perdimento por desapropriação, utilização pelo poder público, impenhorabilidade das pequenas propriedades, bens públicos, aquisição por estrangeiros, a usucapião, limitação da propriedade face ao meio ambiente etc.); direito das sucessões (garantia do direito de herdar, bem como a sucessão de estrangeiros). E evidente que o direito das famílias não icou incólume à mesma revalorização.

Advirta-se que justamente na América Latina se fez mais comum esta estratégia de constitucionalizar direitos, especialmente de ordem privada12, a considerar que até a década de 70 a grande maioria dos países latino-americanos era governada sob o mando de regimes totalitários ou militares. A causa subjacente, pois, residia na necessidade de democratização não apenas do sistema político e das respectivas representações populares, senão de outros sistemas sociais, dentre eles o direito.

Eis a constitucionalização do óbvio, porquanto a inserção de valores demo-cráticos na órbita normativa logicamente não poderia referir apenas a temas de direito público (Direito do Estado, competência, atribuição, gestão, atividades etc.), senão investir também sobre questões de natureza privada, mesmo porque arbítrio e sujeição não se davam apenas nas relações de subordinação, mas igualmente naquelas relações compreendidas como de coordenação ou de recíproca

Page 107

delimitação13. A democratização do direito de família sepultou no jazigo da memória do Estado liberal aquelas situações de antanho marcadas pela plena desigualdade: o pai patrão, o marido cabeça de casal, o ilho procriador e a ilha casta.

O Estado na versão democrática (Estado ‘democrático’ de direito) diferencia-se signiicativamente da igura do Estado de Direito. Enquanto o segundo tem por inalidade a conformação social mediante regras (caracterizadas por previsão e generalização) com aprofundado culto ao monismo normativo cuja criação decorre do monopólio e legitimação dos ‘representantes’ estatais, o primeiro qualiica-se pela igualdade substancial, reconhecimento da incompletude do ordenamento e, via de consequência, pelo positivismo valorado por princípios de acendrado conteúdo moral (pós-positivismo), com nítido objetivo na ixação de um direito cúmplice da transformação da sociedade (solidário e responsivo) que, aliás, tem na população o grande ator legislativo14.

A par desta constitucionalização, especialmente de temas de direito privado, decorreu concomitante na dogmática constitucional – a partir da célebre decisão do caso Lüth – a observação de que direitos fundamentais já não mais guardavam como sinônimo a faculdade de o respectivo titular dele se valer (direito público subjetivo)15, mas essencialmente o dever prévio de proteção pelo Estado (real destinatário), considerando a inerente dimensão objetiva (ou ordem objetiva de valores)16.

Page 108

Tal evolução paradigmática posta-se como verdadeiro bastião na revitalização do direito privado, especialmente no tocante ao direito das famílias.

2 Da constituição evolutiva da família para as famílias constitucionais em evolução

Até o triunfo da família monogâmica – diga-se, emoldurada inicialmente pelo modelo matrimonial e por preceitos de indissolubilidade e perpetuidade, independentemente da plena realização dos membros que a compõem – outras projeções foram observadas e investigadas sociologicamente.

Sumariamente, em evolução temporal, pode-se dizer: i) tribos, delineadas pelo comércio sexual promíscuo; ii) família consanguínea (com início de ixação de parentescos por gerações, contudo à exceção de contato entre pai e ilho, as demais situações carnais eram possíveis); iii) família punaluana (com o progresso de exclusão das relações sexuais entre irmãos; iv) família sindiásmica (par heterossexual convivente, inicialmente caracterizado pela poliandria e mais tarde pela poligamia); e v) família monogâmica (com solidez maior aos laços conjugais, já que não podem ser rompidos pela vontade das partes)17. Não há dúvidas, pois, que a origem da família é tão longínqua quanto à formação do Estado e da sociedade.

A família monogâmica irma-se com status jurídico e estabelecimento de premissas normativas, no entanto, apenas com o advento da ideologia do Estado de Direito (e deste modo, individualista), muito bem representada no Code de Napoleon, prevalecendo, em continuidade, até os presentes dias. Alie-se que o mesmo corpo legislativo proveu de efeitos civis os casamentos religiosos até então mais usuais (na conhecida modalidade posse de estado de casados)18com escopo justamente de evitar que, frente ao sistema jurídico, as pessoas estivessem reunidas por concubinato. Aqui se observa nítida conluência entre preceitos de

Page 109

natureza religiosa e de natureza jurídica: com destaque à simetria entre culpa e pecado no âmbito familiar19.

Tal modalidade, a despeito de representar estrutura ultrapassada quando cotejada às perspectivas pós-modernas, é até hoje tomada de exclusividade por dogmáticas conservadoras (jurídicas, religiosas, políticas, sociais, culturais etc.) que a compreendem como entidade imutável, não cindível, intocável, exigente de plena proteção, mesmo que indiferente à felicidade dos componentes. A família monogâmica, pois, encarnou a cognoscibilidade das pessoas-membros no viés isiológico e não pragmático20.

O Estado de direito liberal se, de um lado, produziu efeito conformador e estabilizante da entidade familiar (constituída unicamente por marido, mulher e ilhos), de outro lado, também foi responsável por discriminações e ignomínias. Com arrimo ideológico ainado à noção de idelidade à lei, própria da ascensão da burguesia, a igualdade havida na época tinha apenas serventia ‘populista’ (formal), desprovida de critérios compensatórios e...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT