Abortamento (Art. 124)

AutorFrancisco Dirceu Barros
Ocupação do AutorProcurador-Geral de Justiça
Páginas713-744
Tratado Doutrinário de Direito Penal
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Art. 124
1. Conceito de abortamento
É a interrupção da gravidez com a consequente
morte do produto da concepção.1347
Para Giuseppe Maggiore1348, “é a interrupção
violenta e ilegítima da gravidez, mediante a ocisão
de um feto imaturo, dentro ou fora do útero materno”.
Aníbal Bruno1349, por sua vez, preleciona que:
“Segundo se admite geralmente, provocar aborto é
interromper o processo  siológico da gestação, com
a consequente morte do feto. Tem-se admitido muitas
vezes o aborto ou como a expulsão prematura do
feto, ou como a interrupção do processo de gestação.
Mas nem um nem outro desses fatos bastará isolad a-
mente para caracterizá-lo.”.
Entendo, e esta é a posição dominante, que há
uma impropriedade técnica da terminologia “crime
de aborto”, o crime seria o de “abortamento”. Abor-
tamento é a conduta dolosa e criminosa direcionada
ao resultado, que é o aborto.
2. Início e término da proteção pelo tipo
penal de aborto
Com a didática e clareza sempre louváveis, Rogério
Greco1350 traz à baila importante raciocínio demarca-
tório sobre o início e o término da proteção do tipo
penal de aborto, ou de abortamento para mais tecni -
camente dizer, senão vejamos: “A vida tem início a
partir da concepção ou fecundação, isto é, desde
o momento no qual o óvulo feminino é fecundado
pelo espermatozoide masculino. Contudo, para  ns
1347 Nesse sentido: RJTJSP, 37:234.
1348 MAGGIORE, Giuseppe. Díritto penale. Parte geral. 3. ed.
Bologna: Nicola Zanichelli, 1948. v. 1, 1. li, p. 613.
1349 BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 160.
1350 GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 11ª edição.
Página 526. Niterói: Editora Ímpetus, 2017.
de proteção por intermédio da lei penal, a vida só
terá relevância após a nidação, que diz respeito à
implantação do óvulo já fecundado no útero mater-
no, o que ocorre 14 (quatorze) dias após a fecun-
dação. Assim, enquanto não houver a nidação não
haverá possibilidade de proteção a ser realizada por
meio da lei penal. Dessa forma, afastamos de nos-
so raciocínio inúmeras discussões relativas ao uso
de dispositivos ou substâncias que seriam conside-
radas abortivas, mas que não têm o condão de re-
percutir juridicamente, pelo fato de não permitirem,
justamente, a implantação do óvulo já fecundado no
útero materno. Da mesma forma, não se con gurará
aborto na hipótese de gravidez ectópica, quando o
óvulo fecundado não consegue chegar até o útero,
mas se desenvolve fora dele. É o mesmo caso da
gravidez tubária, na qual o ovo se desenvolve nas
Trompas de Falópio. Se a vida, para ns de proteção
pelo tipo penal que prevê o delito de aborto, tem iní-
cio a partir da nidação, o termo ad quem para essa
especí ca proteção se encerra com o início do parto.
Portanto, o início do parto faz com que seja encerra-
da a possibilidade de realização do aborto, passan-
do a morte do nascente a ser considerada homicídio
ou infanticídio, dependendo do caso concreto.”
RESUMO PRÁTICO
Abortamento: é a conduta (crime) direcionada
ao aborto.
Aborto: é o resultado do abortamento.
POSIÇÃO DIVERGENTE
Mougenot1351 diz:
1351 No sentido do texto: BONFIM, Edílson Mougenot. Direito
Penal. v. 2. São Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 26.
Capítulo 4
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Francisco Dirceu Barros
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Noronha defende ser mais correta a denomina-
ção abortamento, deixando a primeira expressão
para designar o produto morto ou expelido. Arruda
Miranda, contudo, lembra que, “bem analisados os
fatos, verica-se que a palavra abortamento é mais
adequada ao “ato de abortar”, porém, como o “crime
de aborto” pode ocorrer sem o abortamento, isto é,
sem a expulsão do ovo ou do feto do útero materno,
parece mais lógico carmos com a expressão tradi-
cional”.1352
SÍNTESE DIDÁTICA
Terminologia usada pela maioria da doutrina =
abortamento.
Terminologia usada pelo Código Penal = aborto.
Terminologia usada nos concursos = aborto e
abortamento.
Mirabete1353 adota o seguinte conceito: Aborto
é a interrupção da gravidez com a destruição do
produto da concepção.
Paulo José da Costa Jr., baseado em Florian,
conceitua o aborto da seguinte forma: “Entende-se
por aborto (de abortus, privação de nascimento) a
interrupção voluntária da gravidez com a morte do
produto da concepção”.
No mesmo sentido, Tardieu: “expulsão prematura e
violentamente provocada do produto da concepção,
independentemente das circunstâncias de idade,
viabilidade e mesmo de formação regular”.
3. Análise didática dos tipos penais
3.1. As espécies de abortamentos
Os abortos podem ser:
a) NATURAL: é a interrupção espontânea da gravi-
dez, não constitui crime.
b) ACIDENTAL: é a interrupção da gravidez por
acidente, não constitui crime.
c) LEGAL OU PERMITIDO: que se divide em:
c.1. os admitidos por parte da doutrina e jurispru-
dência;
c.2. os admitidos por lei.
d) CRIMINOSOS: são os não admitidos em lei.
1352 “O crime de aborto”. In Estudos de Direito em homenagem a
Nelson Hungria. Rio de Janeiro: Forense, 1962, p. 207-208.
1353 Op. cit. p. 73.
c.1. abortamentos doutrinários
I – Eugenésico ou eugênico:
Conceito: é o aborto permitido para impedir a
continuação da gravidez quando há a possibilidade
de que a criança nasça com taras hereditárias (físi-
cas ou psíquicas).
Sobre o aborto eugênico, Nucci apresenta ex-
pressiva contribuição: algumas decisões de Juízes
têm autorizado abortos de fetos que tenham graves
anomalias, inviabilizando, segundo a medicina atual,
a sua vida futura. Seriam crianças que fatalmente
morreriam logo ao nascer ou pouco tempo depois.
Assim, baseando-se no fato de que algumas mães,
descobrindo tal fato, não se conformam com a gesta-
ção de um ser completamente inviável, abrevia-se o
sofrimento e autoriza-se o aborto. O Juiz invoca, por
vezes, a tese da inexigibilidade de conduta diversa,
por vezes a própria interpretação da norma penal
que protege a “vida humana” e não a falsa existên-
cia, pois o feto só está “vivo” por conta do organismo
materno que o sustenta. A tese da inexigibilidade,
nesse caso, teria dois enfoques: o da mãe, não su-
portando gerar e carregar no ventre uma criança de
vida inviável; o do médico, julgando salvar a geni-
tora do forte abalo psicológico que vem sofrendo. A
medicina, por ter meios atualmente de detectar tais
anomalias gravíssimas, propicia uma avaliação ju-
dicial antes impossível. Até este ponto, cremos ser
razoável a invocação da tese de ser inexigível a mu-
lher carregar por meses um ser que, logo ao nascer,
perecerá. Mas não se pode dar margem a abusos,
estendendo o conceito de anomalia para abranger
fetos que irão constituir seres humanos defeituosos
ou até monstruosos. Anal, nessa situação, o direito
não autoriza o aborto.
Minha posição: vejo com preocupação essa
criação doutrinária, entendendo que o mesmo só
pode ser utilizado se car comprovado que a criança
não tem a menor possibilidade de sobreviver em vir-
tude da doença hereditária. Ao contrário, estaríamos
praticando a eugenia negativa, e usando o aborto
para selecionar seres humanos e violando frontal-
mente a Constituição Federal, que veda expressa-
mente qualquer tipo de discriminação.
Ficamos felizes em saber que o maior jurista bra-
sileiro pensava da mesma forma. Nélson Hungria,
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armava: “O Código não incluiu, entre os casos de
aborto legal, o chamado aborto eugenésico, que,
segundo o projeto dinamarquês de 1936, deve ser
permitido quando existe perigo certo de que o lho,
em razão de predisposição hereditária, padecerá de
enfermidade mental, imbecilidade ou outra grave
perturbação psíquica, epilepsia ou perigosa e incu-
rável enfermidade corporal. Andou acertadamente o
nosso legislador em repelir a legitimidade do aborto
eugenésico, que não passa de uma das muitas trou-
vailles dessa pretensiosa charlatanice que dá pelo
nome de eugenia. Consiste esta num amontoado de
hipóteses e conjecturas, sem nenhuma sólida base
cientíca. Nenhuma prova irrefutável pode ela for-
necer no sentido da previsão de que um feto será,
fatalmente, um produto degenerado.”
POSIÇÃO DIVERGENTE
Em contrário, sustentando a plena viabilidade do
aborto eugênico, Alberto Silva Franco: “O aborto
eugênico tem por fundamento o interesse social na
qualidade de vida independente de todo ser huma-
no, e não o interesse em assegurar a existência de
qualquer um desses seres e em quaisquer condi-
ções. O aborto eugênico traduz-se, como as demais
hipóteses do sistema de indicações, em causa ex-
cludente de ilicitude.”1354 Citando Ripollés, rearma o
ilustre penalista supracitado, que o reconhecimento
da indicação eugênica visa a garantir a todo nasci-
turo o desenvolvimento de uma vida sã e normal, de
forma que resulte aceitável eliminar seres humanos
com uma ínma qualidade de vida. Seriam três os
requisitos especícos para a indicação eugênica: a)
presunção de que o feto nascerá com graves en-
fermidades físicas ou psíquicas; b) o prazo para a
realização do aborto eugênico; c) parecer de dois
especialistas. O prazo seria de vinte e duas sema-
nas. Finaliza armando que a inclusão do aborto
eugênico na Reforma Penal brasileira é de absoluta
pertinência.1355
CURIOSIDADE INTERESSANTE
Os juristas que defendem o abortamento eugê-
nico não informam aos leitores que a origem dele
foi justamente em época de um Estado totalitário
1354 Aborto por indicação eugênica, p. 27.
1355 Cf. Franco, Alberto da Silva. “Aborto por indicação eugêni ca”,
in Estudos Jurídicos em Homenagem a Pimentel, Manuel
Pedro. RT, 1992, 80-108.
no qual os direitos humanos foram, de forma lega-
lizada, frontalmente violados. Falamos do Estado
idealizado por Hitler, pois, na Alemanha, a Lei de
14 de julho de 1933 instituiu o aborto eugenésico e
destinava-se a evitar uma descendência anormal. O
fundamento essencial repousava nos “tribunais de
saúde”. Foi o doutrinamento da “eugenia negativa”,
visava selecionar a raça humana e, por tal teoria,
que tinha como principal aliada o aborto eugenésico,
nenhum deciente físico tinha condição de sobreviver.
O FUNDAMENTO DO ABORTO EUGENÉSICO
O professor Paulo José da Costa Jr1356arma
que em São Paulo fundamentam as aludidas deci-
sões os seguintes argumentos, basicamente:
1. Não é qualquer anomalia do feto que dá ensejo
à autorização judicial para o abortamento. So-
mente as anomalias do feto que inviabilizem
sua vida extrauterina poderão motivar tal
autorização.
2. O diagnóstico da anomalia deverá ser inquestio -
nável.
3. Ao lado da inviabilidade da vida extrauterina do
feto, deve ser considerado o dano psicológico
para a gestante, decorrente de uma gravidez
cujo feto não apresentará sobrevida.
Continua o renomado autor: De se destacar
ainda que nas decisões que deferiram pedido para
realização do aborto eugênico, duas ordens de ra-
ciocínio podem ser identicadas.
A primeira delas sustenta que o pedido de au-
torização do aborto eugênico não encontra acolhi-
da expressa em nossa legislação, mas deverá ser
deferido diante da inviabilidade da vida extrauterina
do feto e dos danos psicológicos à gestante, não se
podendo censurar o comportamento por inexigibili-
dade da conduta conforme o dever. Outra corrente
sustenta que o dano psicológico à gestante, desde
que comprovado, acarreta risco à saúde da mesma,
inserindo a hipótese no aborto necessário.
Por m, nas decisões denegatórias da autoriza-
ção, sustenta-se a impossibilidade jurídica do pedi-
do, uma vez que o aborto eugênico não encontra
guarida na legislação penal brasileira.
1356 Artigo publicado na RJ nº 229 – NOV/1996, p. 27.
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