O Aborto e o NCLA: O Caso Boliviano/The abortion and the NLAC: the Bolivian case.

AutorFerraz, Hamilton Goncalves

Introducao

Poucos temas no Direito sao tao intensamente disputados e debatidos quanto a legalizacao e descriminalizacao da interrupcao voluntaria da gravidez--ou, simplesmente, aborto. A ambivalencia da discussao e latente: se, por um lado, se tem a impressao de haver certo esgotamento e repeticao das argumentacoes favoraveis ou contrarias, por outro, o tema parece se encontrar em permanente estado de urgencia, demandando sempre novos estudos, argumentos e contribuicoes.

Sendo um tema tao controvertido, seja na academia, nas ruas, no parlamento, nos templos religiosos ou mesmo em reunioes sociais, e necessario um posicionamento previo em relacao a seguinte indagacao: se os limites da vida e a interrupcao da gravidez sao assuntos que ocupam principalmente a arena publica e politica, ha legitimidade e capacidade institucional de analise, discussao e decisao por parte do Judiciario? Nao seria este um debate mais adequado as tribunas e palanques do Congresso Nacional do que aos bancos e mesas de magistrados?

E verdade que, em tese, em Estados que se pretendem democraticos, e a lei (elaborada por representantes do povo) que costuma definir os marcos temporais, as hipoteses e a regulamentacao juridica da interrupcao voluntaria da gravidez--e e necessario que assim continue sendo. Entretanto, o idealismo do modelo e desafiado por uma realidade conflitiva, contraditoria, desigual e excludente. Como frequentemente ocorre quando direitos fundamentais sao confiados exclusivamente as leis, as imperfeicoes e vicios destas poem aqueles em constante risco de ofensa e desrespeito. Dai, portanto, a necessidade, legitimidade e responsabilidade de juizes e tribunais em uma democracia constitucional no exercicio da jurisdicao constitucional: resguardar direitos fundamentais, fazendo-o, nao raramente, de forma contra-hegemonica.

Dito isso, o presente trabalho consiste em um estudo de caso, elaborado a partir de pesquisa teorica documental, bibliografica e jurisprudencial acerca da Sentenca Constitucional Plurinacional 0206/2014, oriunda do Tribunal Plurinacional da Bolivia, que analisou a constitucionalidade de uma serie de dispositivos do Codigo Penal boliviano que afetavam direitos das mulheres--dentre os quais, a autonomia reprodutiva, o direito ao proprio corpo e, consequentemente, a interrupcao voluntaria da gravidez. Tendo em vista que a Bolivia e um dos polos de referencia do chamado "Novo Constitucionalismo Latino-americano", modelo constitucional inovador e com aspectos e caracteristicas proprias, intenta-se verificar se houve influencia deste modelo na fundamentacao e no dispositivo do referido julgado. Visa-se analisar, tambem, qual foi o peso deste novo paradigma na garantia e no reconhecimento judicial dos direitos das mulheres em casos de interrupcao voluntaria da gravidez, e se e possivel extrair licoes para o contexto brasileiro.

Para tanto, em um primeiro momento, sera feita analise a respeito do chamado "Novo Constitucionalismo Latino-americano" (NCLA), referencial teorico adotado neste trabalho; apos, serao realizadas breves consideracoes sobre o debate da legalizacao da interrupcao voluntaria de gravidez; na sequencia, apresenta-se o caso levado a Corte boliviana e, a titulo conclusivo, busca-se responder as perguntas inicialmente formuladas.

  1. Breves Linhas Sobre o Novo Constitucionalismo Latino-Americano

    O NCLA e considerado, de acordo com Ana Micaela Alterio (2014), uma corrente constitucional em construcao doutrinaria. Suas bases seriam os movimentos sociais populares constituintes e as de paises da America Latina. (1) Os problemas centrais para o NCLA sao, na visao da autora, a marginalizacao politico-social de certos grupos--em especial, dos povos originarios (2)--e a desigualdade social resultante da adocao de politicas neoliberais. Em sua percepcao, o NCLA pretende ser plenamente normativo e constituir um Estado Constitucional, tendo por principal objetivo a constitucionalizacao do ordenamento juridico. Importa notar como o NCLA supera o conceito de constituicao como limitadora do poder constituido e avanca na definicao desta como formula democratica onde o poder constituinte expressa sua vontade.

    Alterio analisa os modelos de constitucionalismo (no caso, neoconstitucionalismo, constitucionalismo popular e NCLA) em cinco aspectos: (a) pretensoes normativas; (b) modelos de legitimidade democratica; (c) institucionalizacao do controle de constitucionalidade proposto por cada teoria; (d) teorias da democracia em cada modelo; e, por fim, (e) relacoes entre direito constitucional e politica.

    O modelo de legitimidade do NCLA seria um modelo procedimentalista debil, no qual o poder constituinte revolucionario se incumbiria da reconstrucao do Estado, nao se diluindo uma vez cumprida sua missao. Seu arranjo institucional seria de constitucionalismo forte, nao elitista, no qual se preve uma constituicao rigida, com forte judicial review, e se atribui forte protagonismo a participacao popular, que vai muito alem da eleicao de representantes. O modelo passa a refletir instancias cidadas de controle da gestao publica e reconhecer formas de democracia comunitaria desenvolvida pelos povos originarios, alem de mecanismos informais de participacao, como o direito de resistencia. O NCLA passaria, assim, a refletir a vontade de refundar o legado constitucional em chave republicana democratica, com o objetivo de dar resposta a algum dos principais desafios que o seculo XXI coloca na regiao.

    Dessa forma, para o poder constituinte originario nao existiriam espacos vedados nem ambitos indecidiveis (o que se exemplifica no caso da participacao/eleicao de juizes pelos cidadaos, caso da Bolivia). Sao visualizadas novas funcoes e poderes do Estado (saindo do modelo liberal classico de tres poderes), tudo isso em constituicoes dirigistas e de governo economico.

    Sobre a teoria da democracia empregada no NCLA, observa-se a adocao de uma democracia participativa, incluidos mecanismos de democracia direta. Seria, nas palavras de Alterio, uma democracia radical, agonista, combinada com modelos de democracia deliberativa. Ha um dificil equilibrio entre as ideias substancialistas e procedimentais para sustentar a legitimidade, apesar de se falar, ainda, em uma "democracia intercultural". O risco do modelo e o de enveredar para uma democracia populista, ou de "cesarismo democratico", com reforco a tendencias autoritarias na regiao, convertendo a democracia participativa em mera ilusao.

    Por fim, entre direito e politica verifica-se uma forte relacao, na qual a dimensao juridica da Constituicao se combina com sua legitimidade democratica. Ha, assim, um evidente predominio do politico sobre o juridico.

    Buscando inspiracao na analise de Siddharta Legale (2016), o NCLA parece decorrer mais da atuacao de movimentos sociais na America Latina do que de teorizacoes acabadas oriundas da academia. Legale analisa o NCLA por tres marcos: historico, filosofico e sociologico.

    Por marco historico, sao apontadas as transformacoes decorrentes dos movimentos sociais que culminaram na aprovacao de novas Constituicoes do Brasil de 1988, Colombia de 1991, Venezuela de 1999, Equador de 2008 e Bolivia de 2009 (3), todas analiticas, ferteis em direitos e reconhecimento de minorias, como os povos originarios.

    Como marco filosofico, o NCLA estaria apoiado na reivindicacao de um processo descolonizador, descrito a partir da epistemologia do Sul, ou filosofia da libertacao (4). Por essa razao, busca inspiracao em conceitos e visoes de mundo de povos originarios.

    O marco sociologico, por fim, seria resultado da dinamica dos movimentos sociais na America Latina em defesa de maior pluralismo cultural, economico e social como forma de que o Estado seja plurinacional (ou plurietnico).

  2. O Debate da Interrupcao Voluntaria da Gravidez: Consideracoes Preliminares

    Apesar de nao ser o objeto do trabalho, convem dedicar algumas paginas ao debate da criminalizacao do aborto. Para que o presente estudo se mantenha nos limites de seu objeto, a abordagem se iniciara a partir de breves consideracoes criminologicas, demarcando-se posicao no debate feminista da interrupcao voluntaria da gravidez; na sequencia, apresentam-se notas historicas sobre o bem juridico ofendido pelo delito de aborto; apos, um breve painel do debate contemporaneo, identificando direitos e interesses em jogo; e, por fim, sera feito um levantamento dos principais casos e decisoes judiciais em materia de direito a vida e interrupcao voluntaria da gravidez.

    Justifica-se esta forma de enquadramento do problema por ser o objeto do trabalho uma decisao judicial de uma Suprema Corte Constitucional--o que faz com que a discussao, argumentos e nossa aproximacao sofram certas modificacoes e restricoes, em funcao dos atores envolvidos, seus discursos, e de sua legitimidade e capacidade institucional.

    Em varios paises, e verdade que a questao conseguiu (ou vem conseguindo) equacionamento na esfera politica em sede legislativa. (5) Porem, neste trabalho, priorizase a investigacao dos momentos historicos em que a arena e deslocada para o Judiciario ou instancias com competencia decisoria, como as Cortes Internacionais de Direitos Humanos e demais orgaos de protecao e implementacao de tratados internacionais, analisando suas manifestacoes e decisoes ante a demanda por sopensando entre protecao a vida do feto e os direitos fundamentais das mulheres.

    2.1 Breves Notas Sobre Criminologia Critica Feminista

    Sabe-se que a construcao dos saberes guarda, em si, teorias de genero e de raca pressupostas. Se nas primeiras analises atinentes ao comportamento humano nunca se falou a respeito de raca ou genero, isso nao significa que esses marcadores nao interagissem com os fenomenos analisados--significa, sim, que o individuo padrao para as investigacoes realizadas se supunha universal quando, na verdade, era o unico que detinha voz politica. Criterios como neutralidade e objetividade, assim, foram cunhados por atores...

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