Aborto, racismo e violencia: reflexoes a partir do feminismo negro/Abortion, racism and violence: reflections from the perspective of Black Feminism.

AutorLima, Nathália Diórgenes Ferreira
CargoREVISTA EM PAUTA

Introducao

O racismo brasileiro e um sistema complexo de dominacao metamorfoseado ao longo da formacao social e historica do pais. De acordo com Avtar Brah (2006, p. 344), "cada racismo tem uma historia particular. Surgiu no contexto de um conjunto especifico de circunstancias economicas, politicas e culturais, foi produzido e reproduzido atraves de mecanismos especificos e assumiu diferentes formas em diferentes situacoes". Assim, o embranquecimento e a concepcao que particulariza o pensamento racial brasileiro (GUIMARAES, 1999). A partir de 1930, as elites dominantes construiram um discurso de negacao sistematica das diferencas raciais. A ideologia da mesticagem nos mergulhou em um racismo violento e nada sutil, que minou a identidade racial da populacao e que perpetua enormes desigualdades raciais.

No que concerne ao conceito moderno de racismo, alinhamonos ao pensamento de Guimaraes (1999) e Gonzalez (1982a). Para Guimaraes (1999), o racismo denota tres dimensoes: uma concepcao de racas biologicas; uma atitude moral, em que se trata diferentemente membros de diferentes racas; e uma estruturada desigualdade social entre racas. Esses tres eixos conformam o racismo como fenomeno complexo; ademais, politizam esse processo, retirando-lhe o carater comportamental que foi dado pelo conceito de cor e revestindo-lhe de sistematicidade e estrutura. Portanto, nao seria a harmonia racial, mas sim o racismo (sistematicamente negado) como estruturante das relacoes sociais, a caracteristica indelevel da nossa identidade nacional.

O racismo e "uma construcao ideologica cujas praticas se caracterizam nos diferentes processos de discriminacao racial. Um discurso de exclusao, interpretado e reinterpretado de acordo com os interesses de quem dele se beneficia" (GONZALEZ, 1982a, p. 94-95). A importancia da categoria raca se impoe a partir da necessidade de denunciarmos o mito da democracia racial e as tentativas de embranquecimento da populacao negra brasileira. Resgatar nossas origens, lingua, costumes e culturas diz respeito a valorar um povo historicamente massacrado pelo escravismo colonial. Negar a categoria raca significa negar a construcao discursiva dos sujeitos negros, bem como potencializar o racismo brasileiro, com a sua aversao aos conflitos e diferencas - aquele racismo arraigado nas instituicoes, relacoes sociais e movimentos.

O debate sobre aborto, por sua vez, tambem e polissemico e controverso. O aborto desperta quase sempre uma verborragia passional que associa zigoto, embriao e feto a bebes e criancas nascidas com vida, portanto, sujeitos de direitos. No Brasil, esse debate se localizou com mais frequencia nos embates no Congresso Nacional. Porem, nos ultimos anos, ultrapassou os muros das casas legislativas na chamada Primavera Feminista, momento em que diversas mulheres tomaram as ruas em 2015 contra o Projeto de Lei n. 5069, do ex-deputado federal Eduardo Cunha.

No Brasil, o aborto e crime em quase todas as situacoes, exceto no caso de risco de vida para a mulher, estupro e anencefalia fetal. Este ultimo permissivo foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, apos oito audiencias publicas e intenso debate com instituicoes contrarias e a favor da interrupcao neste caso. O resultado foi favoravel, mas acirrou ainda mais a disputa politica em torno do aborto no pais.

A despeito das polemicas que envolvem o tema do aborto, o fato e que a intensiva criminalizacao da pratica impacta consideravelmente a vida reprodutiva das mulheres negras. Isso porque o racismo e as relacoes patriarcais se articulam construindo um contexto especifico de desigualdades, omissoes e vulnerabilidade para mulheres negras e pobres que precisam recorrer ao aborto clandestino.

Esse artigo faz parte e e um desdobramento de pesquisa de mestrado (1) cujo objetivo foi analisar os itinerarios abortivos de mulheres jovens de uma capital do Nordeste brasileiro. Para tal, entrevistamos dez mulheres negras e brancas, de classe media e de classes populares, que recorreram ao aborto ilegal utilizando diversos metodos. Devido as dificuldades de se realizar pesquisas sobre aborto no Brasil, as jovens foram contactadas atraves de uma rede de contatos entre movimentos populares e feministas, e as entrevistas foram realizadas em locais e horarios que elas escolheram. Apresentamos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) explicando os objetivos da pesquisa, bem como a responsabilidade com o sigilo e a possibilidade de a entrevista ser encerrada no momento em que as interlocutoras considerarem conveniente.

No decorrer da pesquisa de campo, o racismo irrompeu como um determinante das situacoes de aborto. Raca e classe constituiram categorias centrais para compreender a pratica do aborto, bem como a vida reprodutiva das jovens. Nesse sentido, o texto que aqui apresentamos tem como objetivo discutir o entrelacamento entre racismo e aborto em contextos de pobreza, a partir da analise de duas historias em especial: de Alice e de Nega, nomes ficticios de duas jovens negras, com baixa escolaridade e perifericas.

Para compreender a articulacao entre racismo e aborto partiremos do feminismo negro como um campo teorico-politico amplo e plural. A critica do feminismo negro parte da experiencia concreta das mulheres e de uma logica nao universalizante. Trata-se de uma critica radical ao racismo e ao sexismo embaracados no capitalismo colonial (CURIEL, 2007).

No que tange a vida reprodutiva, as mulheres pretas recebem menos orientacoes durante o pre-natal sobre o inicio do trabalho de parto e possiveis complicacoes; alem disso, recebem menos anestesia local quando a episotomia e realizada (LEAL et al., 2017). A mortalidade materna entre mulheres negras e 2,5% maior do que entre as brancas (LEAL et al., 2017), sendo o aborto a quinta causa deste tipo de morte no Brasil (OPAS, 2018). Em pesquisa realizada em Pernambuco, as mulheres negras representaram 83,2% do total dos obitos de gravidas ou puerperas por causas externas: homicidios, suicidios e acidentes (NASCIMENTO et al., 2018).

Dessa forma, os altos indices de morte e sofrimento das mulheres negras no que tange a vida reprodutiva apontam para a urgencia da racializacao do campo dos direitos reprodutivos das mulheres.

Situando o feminismo negro

E a partir da compreensao do racismo como um sistema de diferenciacao social hierarquizado, bem como o encontro deste com o sexismo, que sera desenvolvido o feminismo negro como potencia teorica e politica. O capitalismo global, aquele que nasce a partir das chamadas grandes navegacoes, abre um novo momento historico para o Ocidente: a modernidade. A construcao do mundo moderno so foi possivel com o colonialismo, que, de acordo com Grosfoguel e Bernardino-Costa (2016), foi a condicao para a formacao da Europa. Para tanto, utilizaram-se a raca e o racismo como principios organizadores do novo padrao de acumulacao capitalista, agora em escala mundial, e das relacoes de poder do sistemamundo.

O colonialismo, ainda de acordo com o autor, requereu a invencao de um discurso colonial, que por sua vez criou um "outro" (e outra) subalternizado, desprovido de historia, cultura e autodeterminacao. O projeto colonizador ergueu o discurso colonial como arma principal para escravizar nacoes inteiras em Africa, America e Asia. Para potencializar a exploracao das Americas, tais sujeitos formularam um sistema complexo de captura e trafico de homens e mulheres da Africa para o trabalho compulsorio no novo territorio. A diaspora negra obrigou homens e mulheres de grande parte do Continente Africano a reconstruir suas vidas longe de suas origens e sob a egide da opressao e exploracao. Assim, esse sujeito colonizado construiu formas de viver, mas, sobretudo, de resistir a logica da subalternizacao. O feminismo negro e a compreensao desse processo de opressao no qual as experiencias de mulheres negras foram construidas.

O feminismo se impoe, nas sociedades ocidentais, como um movimento politico e teorico de enfrentamento a condicao de subordinacao que as mulheres de diversos paises compartilhavam. Ao tencionar a politica de identidade sexual e problematizar sistemas tao caros as sociedades modernas, como o patriarcado, o movimento feminista causa um deslocamento acerca da naturalizacao que justifica hierarquias sociais. Dessa maneira, o feminismo colocou em xeque seculos de esforcos politicos, cientificos, economicos e sociais que conformavam um lugar subalterno para as mulheres no mundo. Insistiu no discurso de que existira uma opressao de genero que as mulheres compartilhavam e que era considerada o marcador social determinante das relacoes sociais, bem como o ponto de partida das analises dos diversos feminismos.

A partir dessa concepcao, a experiencia das mulheres brancas foi universalizada, secundarizando as estruturas de classe e raca. A decada de 1970 se configura como um tempo politico rico para o feminismo...

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