Abuso das relações contratuais de longo prazo e seus efeitos anticoncorrenciais: conduta exclusionária ao acesso de essential facility (concessão de malha ferroviária)

AutorGilberto Bercovici
Páginas535-567
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ABUSO DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS
DE LONGO PRAZO E SEUS EFEITOS
ANTICONCORRENCIAIS: CONDUTA
EXCLUSIONÁRIA AO ACESSO DE
ESSENTIAL FACILITY
(CONCESSÃO DE MALHA FERROVIÁRIA)
CONSULTA
A empresa X (“Consulente”), por intermédio de seu ilustre ad-
vogado, honra-me com a presente consulta para elaboração de parecer
jurídico sobre a repercussão, no âmbito do direito concorrencial, da
relação contratual firmada em 05 de Março de 2009 entre o Grupo Y e
a empresa Z, objeto de ato de concentração notificado ao CADE –
Conselho Administrativo de Defesa Econômica.
A Consulente atua no mercado de logística de graneis sólidos no
Estado de São Paulo, contratando fretes para produtores de açúcar e
grãos, desde a região produtora até o ponto de destino, majoritariamen-
te para exportação em terminais portuários. É consumidora, portanto,
dos modais de transporte de graneis sólidos. Relata que, por conta do
exercício abusivo das prerrogativas contratuais conferidas à empresa Z
face ao Grupo Y, os concorrentes do mercado logístico de açúcar
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GILBERTO BERCOVICI
experimentam sensível acréscimo no valor dos fretes disponíveis e im-
possibilidade de acesso à malha ferroviária outorgada em concessão ao
Grupo Y, absorvida pela demanda da empresa Z. Resultado: o fecha-
mento do mercado de transporte ferroviário de açúcar.
O propósito negocial descrito pelas partes contratantes estabele-
ceria efetiva parceria de resultados pró-competitivos: os investimentos
feitos pela empresa Z na ampliação da malha sob concessão do Grupo
Y e equipamentos ferroviários capacitariam tanto a empresa Z quanto
o Grupo Y a expandirem sua capacidade logística, viabilizada por estrei-
ta colaboração entre as partes na operacionalização do projeto.
Os contratos de longo prazo, no entanto, podem ter seu propó-
sito inicial afastado pelo oportunismo e exercício abusivo de uma das
partes, alterando essencialmente o resultado econômico do negócio. O
desequilíbrio da relação contratual extrapola, assim, os limites da relação
privada bilateral e afeta negativamente as condições de concorrência do
mercado, exigindo a intervenção das autoridades de defesa da concor-
rência contra as infrações da ordem econômica resultantes.
É a hipótese que se apresenta nesta consulta, em que se formulam
os seguintes quesitos:
1. A relação contratual privada entre o Grupo Y e a empresa Z
afeta a natureza jurídica da concessão pública de que a infraestrutura
ferroviária em comento é objeto?
2. O exercício das prerrogativas contratuais da empresa Z, no
âmbito da execução dos contratos de longo prazo com o Grupo Y,
constitui abuso de dominação na esfera concorrencial, autorizando a
intervenção do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência?
3. A malha ferroviária outorgada em concessão ao Grupo Y cons-
titui uma essential facility para a disciplina concorrencial?
A resposta aos quesitos será (a) precedida pela contextualização
das atividades empresariais do ramo logístico e de infraestrutura e do
regime de concessão de serviço público aplicado ao sistema de transpor-
te ferroviário.
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ABUSO DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS DE LONGO PRAZO E SEUS...
A argumentação em seguida analisa as (b) condutas adotadas pela
empresa Z no contexto específico da execução de contratos de longo
prazo, e os efeitos decorrentes da modificação de cláusulas essenciais à
manutenção do equilíbrio contratual entre as partes, e que produzem
efeitos anticompetitivos no mercado relevante equiparáveis à exclusivi-
dade, bem como (c) a aplicabilidade da doutrina das “essential facilities”
ao caso apresentado pela Consulente.
PARECER
1. INFRAESTRUTURA E SERVIÇO PÚBLICO DE
TRANSPORTE FERROVIÁRIO
Em decorrência da função central que desempenham na socieda-
de, as ações de infraestrutura apresentam alta complexidade em sua
concepção, implantação e operação. Os economistas logo identificaram
que os modelos gerais de elaboração de projetos, avaliação de riscos,
estimativa de custos, formas de financiamento e formação de preços eram
insuficientes para lidar com a complexidade de empreendimentos de
infraestrutura.1 A mesma necessidade de se ajustar o instrumental teóri-
co convencional às exigências diferenciadas dos negócios complexos de
infraestrutura verifica-se no campo do direito, tanto para o desenho
contratual das operações, quanto para a interpretação dos negócios ju-
rídicos que as viabilizam.
A regulação do setor ferroviário deveria ser feita no bojo de um
modelo de regulação do setor de transportes em sua integralidade, pois
os diferentes modais que o integram (rodoviário, ferroviário, aquaviário)
convergem para uma mesma funcionalidade e oferecem o mesmo bem
(a circulação de pessoas e mercadorias), razão pela qual há quem defen-
da um modelo de regulação global e unitária para o setor de transportes.
1 FREY, René L.”Infrastruktur” In: ALBERS, Willi & ZOTTMANN, Anton (orgs.).
Handwörterbuch der Wirtschaftswissenschaft. Stuttgart/Tübingen/Göttingen: Gustav Fischer/
Mohr Siebeck/Vandenhoeck & Ruprecht, 1978. Vol. 4, pp. 207-211.

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