A ação civil pública - demandas individuais repetitivas - técnica de julgamento dos casos repetitivos do CPC

AutorMarcelo Abelha Rodrigues
Páginas471-505
CAPÍTULO 15
A AÇÃO CIVIL PÚBLICA –
DEMANDAS INDIVIDUAIS REPETITIVAS –
TÉCNICA DE JULGAMENTO DOS CASOS
REPETITIVOS DO CPC
1. SOCIEDADE DE MASSA, LITIGIOSIDADE DE MASSA E DEMANDAS
INDIVIDUAIS REPETITIVAS
A sociedade que domina o mundo capitalista, do qual, aliás, o Brasil faz parte como
país emergente e com enorme potencial consumista, é marcada pelas transformações
sociais, políticas, administrativas, econômicas e científ‌icas decorrentes do que se resol-
veu alcunhar de 3ª Revolução Industrial.
Não há um consenso entre os sociólogos e estudiosos sobre quando teria iniciado
a terceira revolução industrial, se em seguida à segunda guerra mundial ou se a partir
dos anos 70 a partir dos fenômenos da (1) explosão demográf‌ica populacional mun-
dial combinada com as (2) inovações tecnológicas e científ‌icas (como a robótica e a
biotecnologia) que passaram a se inserir e atuar nos meios de produção, no mercado de
consumo e na forma de ser, agir e pensar da sociedade. 1
Seja por intermédio dos vaticínios de José Ortega y Gasset2, Herbert Marcuse3 ou
ainda da Kulturindustrie de Theodor Adorno e Max Horkheimer4 é impossível não reco-
nhecer que a sociedade de massa desse mundo capitalista que vivemos é dominado pelos:
1. Sobre o tema ver por todos Zygmunt Bauman. Work, Consumerism And the New Poor. UK. 2004, p. 28. CASTELLS, Manuel. A
sociedade em rede. 17. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2016, 93 e ss.
2. É simplesmente espetacular a descrição do “homem massa” identif‌icado por Gasset que hoje cai como uma luva no perf‌il do ser
humano fruto de uma cultura de massa, in verbis: “Triunfa hoje sobre toda a área continental uma forma de homogeneidade que
ameaça consumir completamente aquele tesouro. Onde quer que tenha surgido o homem-massa de que este volume se ocupa,
um tipo de homem feito de pressa, montado tão somente numas quantas e pobres abstrações e que, por isso mesmo, é idêntico
em qualquer parte da Europa. A ele se deve o triste aspecto de asf‌ixiante monotonia que vai tomando a vida em todo o continente.
Esse homem-massa é o homem previamente despojado de sua própria história, sem entranhas de passado e, por isso mesmo,
dócil a todas as disciplinas chamadas “internacionais”. Mais do que um homem, é apenas uma carcaça de homem constituído
por meros idola fori; carece de um “dentro”, de uma intimidade sua, inexorável e inalienável, de um eu que não se possa revogar.
Daí estar sempre em disponibilidade para f‌ingir ser qualquer coisa. Tem só apetites, crê que só tem direitos e não crê que tem
obrigações: é o homem sem nobreza que obriga – sine nobilitate – snob”. ORTEGA Y GASSET, Jose. La rebelion de las massas.
http://www.cisc.org.br/portal/biblioteca/rebeliaodasmassas.pdf, acessado em 29.06.2016, p. 08 e 09.
3. O polêmico professor Herbert Marcuse foi certeiro na sua obra One-Dimensional Man: Studies in the Ideology of Advanced
Industrial Society, vertida para o português sob o nome Ideologia da Sociedade Industrial, ao identif‌icar com quase meio século
de antecedência qual o modelo totalitarista de sociedade do mundo regido pelo domínio econômico do capitalismo que retira da
sociedade a liberdade individual na medida que cria uma sociedade unipessoal. Vale a citação: Auschwitz continua assombrando
não a memória, mas as realizações do homem; os voos espaciais; os foguetes e teleguiados, o “subsolo tipo labirinto em algum
ponto do bar; as belas fábricas eletrônicas, limpas higiênicas, com canteiros de f‌lores, o gás venenoso que não é realmente nocivo
às criaturas, o secretismo de que todos de nós participamos. Esse é o cenário em que ocorrem as grandes realizações humanas
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AÇÃO CIVIL PÚBLICA E MEIO AMBIENTE • MARCELO ABELHA RODRIGUES
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Meios de comunicação de massa;4
Invenções tecnológicas;
Lepidez inf‌indável de informações aos quais somos bombardeados em nossos
gadgets e instrumentos de trabalho;
Globalização e aproximação das pessoas no universo virtual;
Indiferença de limites geográf‌icos e políticos;
Superf‌icialidade e efemeridade das relações interpessoais;
Neutralidade crítica das pessoas em assuntos que dizem respeito à cidadania;
Padronização cultural de sabores, gostos, desejos, modos de ser, vestir, fazer e
viver;
Inteligência artif‌icial;
Alteração da noção de tempo pelas inovações tecnológicas
Criação de necessidades supérf‌luas;
Criação de meios e técnicas globais eletrônicas de dependência das pessoas
O f‌im da privacidade em prol de benefícios tecnológicos;
A dependência de serviços de massa, essenciais ou não, concentrado na mão de
poucos titulares do poder econômico;
O uso do lazer tecnológico como método de dependência e alienação social e
cultural;
A despersonif‌icação do indivíduo que passa a ser um número e uma senha num
universo de usuários, consumidores, expectadores;
A Reif‌icação do ser e personif‌icação da coisa;
A Música descartável;
A Substituição do conhecimento vertical pelo horizontal;
A Eliminação das diferenças regionais e exterminação das características étnicas
que marcam um país;
Estandardização dos conceitos culturais (mainstream) como língua, moda,
música e artes em geral etc.;
Complexidade e interpenetração das relações sociais.
em ciência, medicina e tecnologia; os esforços para salvar a vida são a única promessa no desastre (...)”. MARCUSE, Herbert. A
ideologia da sociedade industrial. Trad. Giasone Rebuá. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969, p. 227.
4. Kulturindustrie (indústria cultural) foi a expressão cunhada pelos notáveis f‌ilósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer da
escola de Frankfurt para substituir a expressão inicialmente empregada denominada de cultura de massa (A indústria cultural – o
iluminismo como mistif‌icação das massas. In: Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 7 e ss.). Estes notáveis
f‌ilósofos evidenciaram que numa sociedade de massa capitalista a indústria cultural é um fator de aniquilação da arte e da cultura
crítica transformando-os em métodos de dominação social na medida em que são utilizadas para o f‌im comercial e mercadológico
onde o indivíduo é um ser padrão, impessoal, domesticado para desejar produtos escolhidos pelos meios de produção. Não seria
o produto fabricado para a pessoa, mas a pessoa fabricada para o produto. As estratégias de marketing, as técnicas de divulgação
e comunicação de massa, a indústria do bem-estar, e as revoluções tecnológicas são usadas pela sociedade capitalista para criar
modelos padrões de pessoas e consumidores para produtos (inclusive a arte) que ela deseja que sejam desejados, cobiçados e
adquiridos.
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CAPítUlo 15 • ACP – dEmANdAS REPEtItIVAS – JUlgAmENto doS CASoS REPEtItIVoS
Ora, todos estes aspectos econômicos, políticos, sociais e científ‌icos, e, tantos ou-
tros que marcam a sociedade industrial capitalista, nos obriga a reconhecer que há no
Brasil e nos países industriais em geral, um modelo de sociedade onde o tipo predomi-
nante de conf‌litos de interesses não é mais, def‌initivamente, v.g., aquele, perdoe-nos a
palavra, “modelo romântico” de conf‌lito que envolve um vizinho A, José da Silva, e um
vizinho B, João de Oliveira, pelo fato de que um deles tenha construído sua casa além
dos limites permitidos pela lei.
Não estou dizendo que isso não exista mais, não é isso... mas o “grosso” dos con-
f‌litos de interesses envolvendo, por exemplo, as disputas de posse resultam de invasões
coletivas, movimentos de ocupação, grilagem coletiva, ocupação de espaços públicos,
e, principalmente, os danos individuais de massa resultantes de um mesmo ato-fato
ilícito tipo.
Enf‌im, não apenas o retrato do conf‌lito mudou, mas também os seus personagens
mudaram. Há um outro tipo de “autor” e “réu” numa sociedade de massa. Há casos em
que nem autor e nem réu existem no sentido adversarial que conhecemos.5
Essa constatação sobre a alteração dos conf‌litos e dos seus contendores não implica,
aqui, em nenhuma posição crítica (positiva ou negativa) deste modelo social mantido
pela sociedade industrial. Este não é o espaço – e nem pretensão teríamos para tanto –
para apontar os defeitos, as virtudes, as ref‌lexões sobre este modelo de sociedade... a tal
sociedade líquida de amores líquidos e modernidade líquida de que muito bem falou
Zygmunt Bauman.
Faça você mesmo uma investigação para identicar o tipo de conito mais comum hoje em dia. Uma vez
que tenha identicado o tipo de conito irá identicar também o tipo de interesse ou situação jurídica
envolvida. Procure na sua família e ou busque saber entre os seus vizinhos se eles possuem demandas
judiciais. O resultado mais comum será, invariavelmente, conitos de família e conitos consumeristas.
Nestes você perceberá que os tipos de conito se repetem, inclusive o mesmo réu, bem como os argumen-
tos, as questões debatidas e os problemas que deram origem às demandas. Estes conitos (contra bancos,
poder público, escolas, concessionárias de telefonia, internet e tv) são a grande massa de conitos do
nosso país. A “regra” numa sociedade de massa são, com o perdão da obviedade, os “conitos de massa”,
e as “exceções” são os conitos individuais envolvendo situações jurídicas particulares apenas daqueles
litigantes individualizados.
Trata-se de reconhecer uma revelação óbvia, mas que é determinante para iden-
tif‌icarmos quem é, como é e o que quer o jurisdicionado de hoje, bem como qual o tipo de
conf‌lito de interesses predominante na sociedade industrial ou sociedade em rede como
também ela é chamada6.
E, observe-se que não será incomum, antes o contrário, dada a alta complexidade das relações interpessoais
neste modelo de sociedade, que estejam em contenda múltiplos conitos de interesses de natureza coletiva
ou não, ou seja, é bem possível que em torno de um mesmo conito utuem vários interesses antagônicos,
sejam eles transindividuais (difusos, coletivos ou individuais homogêneos) ou individuais (heterogêneos).
5. FERRARO, Marcella Pereira. Do processo bipolar a um processo coletivo-estrutural. Dissertação de Mestrado UFPR, dispo-
nível em: http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/39322/R%20-%20D%20-%20MARCELLA%20PEREIRA%20
FERRARO.pdf?sequence=2, consultado em 10.02.2017.; Sérgio Cruz Arenhart. “Processos estruturais no direito brasileiro:
ref‌lexões a partir do caso da ACP do carvão”, in: Revista de Processo Comparado (RPC) v. 1, n. 2, p. 211-229, jul./dez. São
Paulo: Ed. RT, 2015.
6. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 17. ed. São Paulo: Paz e Terra. 2016, p. 18.
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