Ação civil pública - trabalho escravo contemporâneo em atividade de criação de gado bovino

AutorDiego Catelan Sanches
Páginas188-244

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Ver Nota1

EXCELENTISSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A) DO TRABALHO DA VARA DO TRABALHO DE HUMAITÁ/AM

O MINISTÉRIO PUBLICO DO TRABALHO - PROCURADORIA REGIONAL DO TRABALHO DA 11 - REGIÃO, com endereço na cidade de Manaus, na Avenida Mário Ypiranga, 2479, Bairro Flores, CEP: 69.050-030, pelo Procurador do Trabalho que ao final assina vem, respeitosamente perante Vossa Excelência, com fundamento nos arts. 127 e 129, III, CF/88, Q°- VII, 83 e 84 da LC n. 75/93, LACP, CDC e 840 da CLT propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA em face de António Sobrinho de Oliveira, de CPF n. 044.822.712-68, com endereço no município de Manicoré, na

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Linha Vicinal Pito Aceso, km 7, distrito de Santo António do Matupi, CEP: 69.280-000, com coordenadas geográficas no S 07°59.752 e W061°31.974, que também recebe correspondências na Avenida Santos Dumont, n. 633, Auxiliadora, Gabinete do Vereador Anderson Ferreira de Oliveira, CEP: 69.280-000, Manicoré, AM, pelos fundamentos de fato e de direito abaixo aduzidos.

I Dos fatos
1. Da operação do grupo especial de fiscalização móvel para erradicação do trabalho escravo do ministério do trabalho - prisão em flagrante

Em 11.9.2015 o Ministério Público do Trabalho instaurou inquérito civil sob o n. 000873.2015.11.000/7 (doe. 1), após receber um robusto relatório de fiscalização elaborado pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel para Erradicação do Trabalho Escravo (GEFM) do ora Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS) (doe. 2) em razão de operação realizada entre os dias 10 e 20 de março de 2015 na Fazenda Paredão, de propriedade de António Sobrinho de Oliveira, ora réu.

A fiscalização constatou que o réu desenvolve sua atividade de criação de gado bovino para corte mediante exploração da mão de obra em condições de escravidão de 12 (doze) adultos e 1 (uma) criança.

Em razão da operação fiscal, o réu foi preso em flagrante pelo crime de redução à condição análoga à de escravo (art. 149 CP) pelo Delegado da Polícia Federal Dr. Marcus Vinícius Pioli Luiz, sendo conduzido para a sede da Polícia Civil nesta cidade de Humaitá, lavrando-se, na oportunidade, documentação criminal correspondente (doe. 3).

Ainda que detido, o réu contou com o auxílio de seu filho Anderson Ferreira de Oliveira, hoje no exercício da vereança do município de Manicoré, para cumprir com as responsabilidades assumidas durante a inspeção fiscal de formalização dos vínculos de emprego e resgate das vítimas de exploração escrava de seu pai, tais como pagamentos de verbas rescisórias, hospedagem, alimentação e transporte para retorno ao município de Jarú, em Rondônia, local de seu aliciamento.

O Grupo Especial do MTPS formalizou vínculos de emprego e procedeu com as baixas nas CTPS dos trabalhadores resgatados na unidade do Ministério do Trabalho em Humaitá, bem como encaminhou 8 (oito) trabalhadores para o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) de Humaitá. Destes 8 (oito) trabalhadores, 5 (cinco) receberam no próprio dia 18.3.2015 passagens para retorno ao município de Jarú das mãos de Anderson Ferreira de Oliveira.

Em razão dos inúmeros ilícitos constatados, foram lavrados 25 (vinte e cinco) autos de infração, segundo relatório firmado pelo limo. Auditor Fiscal André Esposito Roston (doe. 4).

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Para além dos registros fotográficos que ilustram a formalização e rescisão dos contratos de trabalho (doe. 2) o Ministério Público do Trabalho recebeu as planilhas de cálculos rescisórios elaboradas pelos Auditores Fiscais, respectivos TRCTs, guias de saque de seguro-desemprego, atestados de saúde, cópias das CTPS assinadas e comprovantes de depósito do FGTS (doe. 5), que corroboram a situação de completa informalidade na qual trabalhavam os obreiros escravizados pelo réu.

As condições de trabalho escravocratas ora conhecidas em virtude do brilhante trabalho investigativo da GEFM são repugnantes, aviltam a condição humana e demonstram não haver limites para a ganância de empreendedores clandestinos como o réu.

Prepare o seu coração, para as coisas que eu vou contar, advertia Vandré. Talvez o artista não acreditasse, não quisesse ou nem pudesse acreditar, que ainda há quem seja boi e não consiga se montar.

2. Do trabalho em condições de escravidão Aliciamento - vigilância armada - imposição de condições degradantes e truck system

O enredo desta ação civil pública envolve todo o iter do trabalho escravo que remanesce grassando em nosso país, do aliciamento de força do trabalho em localidades distantes à completa coisificação dos trabalhadores em frentes de trabalho desenvolvidas em localidades ermas, precárias e imundas.

O réu António Sobrinho de Oliveira aliciou, pessoalmente, seus empregados na cidade de Jaru, em Rondônia, mediante oferta de trabalho, transporte e alimentação:

Esclareça-se que a gestão das atividades da Fazenda Paredão é realizada d treta e pessoal mente pelo Sr, António Sobrinho de Oliveira. conhecido como "António do Burro", proprietário da fazenda, tendo sido ele quem contratou, pessoalmente, de modo verbal e informal, todos os trabalhadores encontrados no local.

O primeiro ato é o recrutamento malicioso e fraudulento. Desprovido da Certidão Declaratória de Transportes Terrestres (IN n. 76/2009 do MTPS), o fazendeiro providenciava transporte, alimentação e hospedagem sobre a falsa promessa de emprego e salário.

Contudo, as vítimas jamais recebiam as quantias prometidas pois todas as despesas de seu próprio tráfico eram descontadas pelo patrão, sobrando quantias irrisórias, muito abaixo do salário mínimo vigente no país:

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oportunidades, houve diversos descontos por parte do fazendeiro contratante, dentre eles os relativos à integral idade dos gastos com a alimentaçãa necessária ao trabalho (compras de mantimentos consumidos pelos trabalhadores no curso do serviço), sendo certo que. apus referidas deduções, sobraram para o obreiro na primeira empreita (a de roço) apenas R$350,00 (trezentos e cinquenta reais.) líquidos e, na segunda empreita (a de aplicação de agrotóxicos), R$400,00 (quatrocentos reais). Findos referidos serviços, Jcvelino foi encarregado pelo Sr. António de retornar a Jaru/RO, em 05/03/2015. para arregimentar mais trabalhadores e constituir equipe de trabalho para um novo serviço de roço e limpeza de mato ja acertado com o Sr. António na Fazenda Panedao, sendo novamente trazido ao imóvel rural aos 10/03/2015 pelo referido fazendeiro

[...] que em ambas as oportunidades, houve diversos descontos por parte do fazendeiro contratante, dentre eles os relativos à integralidade dos gastos com hospedagem e com s alimentação necessária ao trabalho (compras de mantimentos consumidos pelos trabalhadores no curso do serviço), sendo certo que. após referidas deduções, sobraram para cada obreiro, na pnmeira etapa, liquido apenas R$350,00 (trezentos e cinquenta reais) e, na segunda, R$400.00 (quatrocentos reais) Ocorre que, em nenhum dos casos houve o fornecimento de recibo de pagamento aos trabalhadores de onde se pudesse aferir créditos e débitos a eles imputados Apurou-ae, inclusive, que, em todos estes casos, as notas fiscais relativas aos gastos com alimentação e ferramentas para o trabalho (tais como limas de afiar as foices) ficavam de posse do fazendeiro enquanto durasse o serviço, sendo que os trabalhadores não tinham cópia de tais notas ou sequer sabiam informar o valor exato a ser descontado ao final da empreita. Ou seja, toda a gerência do negócio estava nas mãos do empregador, inexistindo, ainda que em grau mínimo, qualquer tipo de controle financeiro das trabalhadores.

Reclamar deste primeiro embuste não era possível. O réu valia-se de armamento para vigilância ostensiva na fazenda, conforme depoimentos colhidos:

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serviço: que o Sr. António dizia que ia descontar tudo no final da empreita; que dentro da caminhoneta do Sr António é cheio de armas: que nunca foi ameaçado íliretamente pelo Sr. António, mas que ele falava que era para acabar o serviço, se não não pagaria, que o deelarante fez as contas e viu que estava trabalhando só pela comida e resolveu deixar a fazenda; que a água para cozinhar era pega na represa onde qb bois babem água; que a égua pára beber era retirada de uma córrego perto;

[...]

muito mal; que nunca estudou, sô trabalhou desde pequeno; por fim, acrescentou que riflo voltaria a trabalhar para o mesmo empregador porque ele poda querer fazer algo contra o decarantó, inclusive porque anda armado na caminhonete. Perguntado se tinha algo a acrescentar, o declarante disse que

Na mais completa informalidade, distantes de suas casas e famílias, recebendo valores miseráveis para trabalhar em região de mata fechada sob vigilância armada do réu, as vítimas deparavam-se também com as mais absurdas e degradantes condições de trabalho.

Para roçar e aplicar agrotóxicos, as...

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