Ação Penal

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas677-700

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26.1. Ação penal: noções introdutórias e espécies

O Estado é o titular do direito subjetivo penal. A ele pertence, com exclusividade, o jus puniendi, o chamado direito de punir1653.

Mas o exercício do direito de punir não é discricionário ou arbitrário.

Não pode ser exercido discricionariamente porque vigora, no tocante à matéria, o princípio da obrigatoriedade de exercício do jus puniendi, de modo que não cabe ao Estado julgar da conveniência ou oportunidade de aplicar a pena, ignorando as normas penais que a fixam.

De outro lado, o direito de punir estatal encontra limitações à sua atuação, pois o próprio Estado demarca o direito de que é titular ao ditar - por meio de um de seus poderes (o Legislativo) - as leis penais. O Estado confina, assim, o exercício do referido direito ao âmbito legal, o que o impede de colocá-lo em ação de forma arbitrária, ao seu livre alvedrio.

O direito de punir existe em razão da previsão legal de um crime a que é cominada uma pena. Com o exercício do jus puniendi busca-se a aplicação desta sanção ao autor do fato delituoso previsto na lei. Dessa forma, o direito penal subjetivo encontra limitações, uma vez que está circunscrito ao direito penal objetivo, id est, às normas penais traçadas pelo próprio Estado em obediência a postulado básico e fundamental do Direito Criminal, qual seja, o princípio da reserva legal ou da anterioridade da lei penal ao fato (nullum crimen, nulla poena sine praevia lege).

Daí concluir-se que o jus puniendi constitui direito de alcance limitado. Não pode transbordar da órbita penal substantiva, eis que esta representa o seu campo de atuação, os lindes dentro dos quais ele deve estar circunscrito.

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No entanto, enquanto não é cometido um fato definido na lei penal como crime, o direito de punir estatal remanesce em ângulo sombrio, em estado latente. Mas ex facto oritur jus. Perpetrado um fato delituoso, pontua Pessina, "o dever de punir do Estado sai de sua abstração hipotética e potencial para buscar existência concreta e efetiva"1654.

É inexistente, porém, reação imediata do Estado, pela aplicação da pena, em relação ao ilícito penal. De tal arte, cometido um crime, a sanção penal não tem ensejo a uma inflição instantânea, à autoexecutoriedade. Para concretizar-se a aplicação da pena é necessário demonstrar que a tipicidade da conduta punível não é apenas aparente, que ela se reveste de ilicitude e foi perpetrada por agente culpável. Sem que o fato seja típico, antijurídico e culpável não cabe a aplicação de qualquer penalidade ao indigitado autor de um fato aparentemente delituoso. É imprescindível, portanto, que, perpetrado um fato de aferição penalmente relevante, comprove-se a sua integral tipicidade, provando-se, depois de constatada a adequação típica, a antijuridicidade da conduta do sujeito ativo e, por fim, a sua culpabilidade, para, só então, no sentido de serem evitadas situações injustas, ter lugar a aplicação da sanctio juris.

Nessa conjuntura, é preciso que o Estado demonstre que o jus puniendi, de que abstratamente é titular, tem efeito operante, de forma concreta, em relação a deter-minado caso.

Não por outra razão, deve existir um procedimento preliminar à aplicação da pena, intermediário entre a prática do delito e a sua reprimenda, para apurar, no cadinho das provas, os contornos reais do fato penalmente relevante e as características que circundaram o acontecimento.

À vista disso, emerge o princípio nulla poena sine judicio, que acarreta para o Estado, como corolário lógico do direito de punir, o jus persequendi ou jus persecutionis, que tem por finalidade, mediante a instauração da persecução penal, elucidar os aspectos que conferiram silhueta ao episódio e levaram seu autor a cometê-lo.

Ao definir os crimes, a cada um deles fixa o Estado (Legislativo) uma pena e, a seguir, determina a relação ideal entre o preceito primário e o preceito secundário (sanctio juris) do tipo legal delitivo. A persecução penal visa, na expressão de Lucchini, a coordenar a lei abstrata e o fato concreto, pois procura tornar real a relação ideal abstrata estabelecida entre o crime e a pena1655.

Atento aos postulados do princípio da reserva legal e nulla poena sine judicio, o Estado se vê na contingência de recorrer ao jus persequendi ou persecutionis, atividade que sempre precede o efetivo exercício do jus puniendi. É instaurada, então, a persecução penal, que apresenta dois momentos distintos: o da investigação e o do processo penal.

A persecutio criminis tem berço na simples notícia do delito. Com ela a persecução penal se inicia, de forma singela e sucinta, em sua fase investigatória e preliminar, na

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qual encontra nascedouro a informatio delicti, destinada a averiguar se, em tese, se desenha o cometimento de um fato criminoso. O inquérito policial é, de rigor, mas não necessariamente, a peça que empresta corpo às investigações efetivadas nesse primeiro momento da persecutio criminis, pois é o continente que materializa e documenta as investigações policiais realizadas.

Encerrada a fase investigatória, de natureza administrativo-policial (de regra), ainda sem forma ou figura de juízo, e vislumbrada a tipicidade em tese do fato a determinada norma penal, inicia-se a segunda etapa da persecução estatal ao agente do delito, a fim de, eventualmente, ser imposta a sanção que couber. É então deflagrada a ação penal, que instaura o processo-crime e torna mais consistente a persecutio criminis por conferir-lhe novo e mais forte impulso.

A ação penal é o momento da persecução na qual a acusação contra o autor do crime se cristaliza. Com ela instaura-se o processo penal, inicia-se a instrução judicial contraditória e invoca-se a aplicação da pena, se verificada a procedência da acusação.

De Marsico define a ação penal como o direito (não-potestativo) do Estado de pedir ao juiz a aplicação da lei penal, para a atuação do seu poder-dever de punir1656.

Não difere desse conceito o de Massari, para quem a ação penal é a invocação que se faz ao juiz para apurar e verificar se a acusação é fundada e, consequentemente, impor a pena1657. Como obtempera Tuozzi, a ação penal é o princípio, a força motriz e a alma de todo o processo1658.

A ação penal, via de regra, porque os fatos delituosos ofendem bens sociais que ao Estado interessa preservar e porque atentam contra a ordem pública (v. n. 1.1), tem sua titularidade afeta ao próprio Estado, que a exerce por intermédio do Ministério Público independentemente de qualquer manifestação da parte lesada ou de sua vontade a respeito. Daí dizer-se ação penal pública, promovida sempre por denúncia do Ministério Público, peça processual que instaura o devido processo-crime.

Contudo, algumas vezes, o crime praticado, além de lesar interesses sociais, fere também interesses individuais com intensidade ou magnitude tais que, em determinados casos, a persecução penal destes delitos vulneraria mais sua própria vítima do que a punição do ofensor. Em certas situações (excepcionais, diga-se de passagem), o Estado, sem jamais renunciar ao direito, atenua o jus persecutionis a ele conferido, para atribuir seu impulso inicial ou o exercício quase total, dependendo do caso, à vítima do fato delituoso. O strepitus judicii ou strepitus fori, isto é, a repercussão do fato em face do caráter publicístico da ação e processo penais, poderá ser mais prejudicial à vítima do crime do que a persecução penal de seu autor. Como enfatizou Nélson Hungria, em

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certos casos a ofensa é como imundície de gato: quanto mais revolvida mais fétida1659, o que significa dizer que a intimidade devassada pelo crime novamente pode sê-lo, e até com maior intensidade, por meio da persecução penal1660, causando novo e penoso sofrimento à vítima, de modo que, muitas vezes, ela pode preferir amargar a sua dor silenciosamente, em vez de sofrer um dano maior que a divulgação e a repercussão do fato podem causar-lhe1661, quando não seja o caso de o bem jurídico atingido com a conduta criminosa não acarretar expressiva violação aos interesses sociais. Por tais razões, o Estado mede seu interesse em relação ao particular, subordinando aquele a este, em determinadas hipóteses, de maneira mais ou menos acentuada, conforme se tonalize com maior ou menor robustez o interesse individual da vítima ou de seus familiares na conveniência da persecução do autor do delito. Em função da magnitude e profundidade do interesse particular atingido, o Estado abre mão da persecução penal direta, para condicionar o início do seu exercício a uma provocação prévia da vítima (ação penal pública condicionada) ou para outorgar-lhe a quase totalidade do jus persecutionis (ação penal privada). Nessa última situação, porém, não há renúncia estatal à persecução, que é promovida mediante queixa-crime da vítima ou de quem a represente (peça processual que ajuíza a ação penal), eis que ao Estado cabe, por intermédio do representante do Ministério Público, aditar a queixa-crime, recorrer etc. Ocorre, aqui, um mero abrandamento do jus persequendi, de que a parte ofendida tem, entretanto, disponibilidade (v. n. 26.2).

Quando a ação penal é condicionada à representação da vítima ou à requisição do Ministro da Justiça, ou é privativa do ofendido, norma penal expressa se incumbirá de dizer. Sim, porque, excepcionais que são esses modelos de ação penal, crível é que explicitamente se deve declarar quando terão cabimento, eis...

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