Acesso à justiça: vícios e reflexões

AutorKarine Monteiro de Castro Fantini - Thaís Lopes Chácara de Aguilar
Ocupação do AutorAdvogada. Graduada pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade FUMEC. Especialista em Direito de Empresa pela PUC/MG. - Advogada. Graduada pela Faculdade de Direito da UFMG. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela UNIDERP. Mestranda em Direito do Trabalho na UFMG.
Páginas231-242

Page 231

1. Ondas de acesso à justiça
1. 1 A primeira onda - Análise crítica - Identificação de vícios - Reflexões1

- Explosão de litigiosidade e múltipla vitimização

Desde os primórdios, registros científicos historiados pelos estudiosos apontam para a opção do homem de viver em ambientes coletivos.

A princípio, por razões de sobrevivência, os homens se organizaram em singelas comunidades, em que as atividades eram divididas em consonância com a idade e o sexo de cada integrante.

As dificuldades da vida em sociedade proporcionaram a criação de regras e o delineamento de estruturas que legitimaram a aglutinação do poder. O poder de decidir os destinos dos outros.

Várias foram as justificativas para a concentração deste poder. A idade. A sabedoria. O vigor físico. A necessidade. O medo. A religião. A ética. A moral. A justiça. Os Deuses. A mitologia. As sociedades dividas em castas. Os imperadores. As guerras. A insegurança. As invasões bárbaras. O Império. O Deus Cristão. O Estado. O Estado enfraquecido. O Estado absoluto. O Estado liberal. O Estado de Polícia. O Estado social. O Estado neoliberal2.

E o poder foi transferido das mãos dos idosos para as armas dos mais fortes, para os pensamentos mais sábios, para a vontade dos Deuses, para o trono do Rei, para o livre arbítrio de Jesus Cristo, para o exército do chefe de Estado3.

As sociedades se tornaram mais complexas e os Estados acompanharam tal evolução.

Para tanto, os Estados se desvencilharam das amarras religiosas, despiram-se das influências éticas e morais, conceituaram e redefiniram o real sentido da Justiça, desenvolveram princípios e dimensões de eficácia para normas e para garantias, dividiram-se em Poderes independentes, cujas forças variavam de intensidade, de acordo com a evolução particular de cada povo. Os Estados se revestiram das armaduras da Constituição e da lei4.

Marco, decerto, dos mais importantes, neste breve sumário, foi a Primeira Revolução Industrial,

Page 232

que significou muito mais do que uma nova concepção na relação entre o capital e o trabalho.

A mencionada revolução industrial importou no início de uma nova forma de produção, no legítimo surgimento de uma classe proletária, na demonstração mais clara de que os direitos de primeira dimensão não bastariam.

A população das cidades chegou a números inimagináveis. Em poucas décadas, o campo passou a compor um passado bucólico e as cidades serviram como espécies de caldeirões, para pessoas que tentavam a sorte, despreparadas, não alfabetizadas, acostumadas com a falta de ideologias, com o singelo desejo de sobreviver.

Os homens, ordinariamente mais hostis, pouco a pouco foram descartados.

As forças dóceis aderiram ao ritmo das máquinas. As cidades se tornaram palco de fome, de desnutrição, de amontoados de casebres, de desrespeito aos direitos fundamentais do ser humano.

Todo este cenário serviu de pano de fundo para o surgimento de outras ideias.

Novas ideologias atormentaram o pensamento do homem. A afirmação do capitalismo. Um incipiente socialismo. A utopia comunista5.

Chega-se a outro ponto marcante no estudo do desenvolvimento do Direito: as Grandes Guerras.

As barbáries denunciadas não importaram em simples registros históricos, inspiraram os estudiosos do Direito, impulsionando-os a criarem teorias destinadas a proteger o ser humano, provendo-lhe, antes de qualquer outro direito liberal, o respeito e a efetividade à sua dignidade.

Houve a reformulação do Direito Constitucional, a reestruturação do processo civil, de modo a permitir que o cidadão litigasse em juízo, com a garantia de que não seria surpreendido.

Foram desenvolvidos processos estanques, formais, que seguiam ritos delineados com o objetivo de se fortalecer a confiança num Poder Judiciário autônomo, mas não tão independente.

O Judiciário, nesta época, ainda detinha, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos6, um recorte bastante conservador, não oferecendo riscos ou ameaças ao sistema político, econômico e social.

Novas dimensões de direitos fundamentais foram contempladas7.

Os direitos sociais compunham o rol daqueles idealizados como de segunda dimensão, exigindo do Estado uma postura menos inerte, mais positiva.

Os direitos difusos, cuja titularidade era atribuída a toda a sociedade, indistintamente, integraram os direitos enquadrados na terceira dimensão.

Neste ponto, constatou-se uma feroz necessi-dade de se consagrar regras processuais capazes de sistematizar esse novo tipo de direito. Tema, ainda, controvertido, a começar pela cizânia doutrinária, a respeito da existência de duas outras dimensões de direitos8.

O anunciado processo de globalização9, que trilha a serviço de um traiçoeiro neoliberalismo, aparentemente, "sem ideologias e irresistível", transformou o mundo numa aldeia global, sem fronteiras.

Iniciada a Terceira Revolução Industrial10, a hegemonia tecnológica do Japão e o Ultraliberalismo econômico dos anos 80 e 90 anunciaram a superação das crises energéticas de 1973 e de 1975, através de drásticas políticas de juros; da multiplicação de organismos sociais; de decisões, cada vez mais, supranacionais; de revoluções tecnológicas e de informações, com a consolidação da língua e da cultura inglesas, como se fossem "necessidades" universais. As palavras de ordem eram: estabilizar, desregulamentar e privatizar.

Fator de extrema relevância, neste contexto, ainda tendo o Japão como referência, foi a consagração mundial do Toyotismo.

Page 233

Ao contrário dos modelos organizacionais anteriores (Taylorismo e Fordismo), esta nova estrutura gestacional remodela a tensão entre o capital e o trabalho, preconiza uma mecanização flexível, dire-cionada para a produção em pequenos seguimentos, sem estoques, obedecendo a um sistema do "Just in time", automatizado, otimizado, realizado através de uma gestão participativa, com mão de obra volátil, sempre em busca de um controle de qualidade total.

Consolidado o Toyotismo, observou-se a descentralização das empresas, com a consequente horizontalização das relações empregatícias.

A partir do aperfeiçoamento do sistema produtivo, houve a reestruturação do sistema organizacional do trabalho, caracterizado pela pulverização sindical, por uma busca desenfreada pela desregulamentação do Direito do Trabalho, pelo aumento no número de trabalhadores (menos) autônomos, pela fragmentação da classe trabalhadora, pela precarização das relações de trabalho, pelo crescente número de acidentes de trabalho, pela majoração do número de (falsas) pessoas jurídicas, pela disseminação da terceirização (interna/externa, lícita/ilícita, material/ pessoal) e pelo crescimento desgovernado no número de desempregados (o denominado desemprego estrutural)11 e, por fim, pela alteração da concepção de subordinação jurídica, uma vez modificada o próprio teor da definição da relação de emprego.

Na busca por um fortalecimento da democracia participativa, houve a evolução do modelo demo-crático, identificada como um movimento universal de acesso à justiça12, composto, segundo o escólio de Mauro Cappelletti e Bryant Garth13, por três ondas14, que atingiram o direito material e processual, que permaneceram no cerne desta verdadeira revolução.

A primeira onda seria destinada a assegurar a assistência judiciária àqueles que dela precisassem.

Deste modo, caberia ao Estado proporcionar o acesso dessas pessoas que necessitassem da prestação jurisdicional, mas que não tivessem condições de fazê-lo, sem que isso importasse em prejuízos à subsistência pessoal e de suas respectivas famílias.

A partir da década de oitenta do século passado, com a terceira revolução industrial, caracterizada, primordialmente, pelo imediatismo do conhecimento, os conceitos de tempo e de distância foram relativizados, constatando-se o despertar do mundo para os democráticos caminhos da sabedoria.

Inegável que o cidadão se tornou mais consciente, buscou a materialização de seus direitos, enveredando-se nas trilhas da legalidade.

Os números não apenas corroboram esses fatos, mas revelam a explosão da litigiosidade no Brasil, apontando perceptível aumento da quantidade de demandas nos últimos quarenta anos.

Para se enveredar nas tortuosas trilhas em busca da Justiça, contudo, o cidadão precisou enfrentar um primeiro obstáculo: o econômico. Os custos para se litigar continuam altos, observando-se taxas e despesas processuais que se modificam de Estado para Estado, o demandante ainda se depara com exigências arbitrárias de magistrados que legislam, para dificultar o acesso ao Judiciário e os honorários advocatícios variam, de profissional para profissional, com pouco ou nenhum controle da OAB.15.

Por mais que não se possa olvidar o benefício proporcionado pelas Leis que simplificaram o acesso gratuito ao Judiciário (Leis 1.060/1950 e 7.115/1983), é imperioso notar que as mudanças legislativas apontadas tão somente solucionaram uma parcela do problema. O que se explica porque por mais que o demandante não tenha o dever de arcar com as despesas processuais, continua suportando coações teratológicas daqueles que julgarão seus pedidos e ainda tendo o dever de arcar com os custos de seu advogado.

Entretanto, o fator que mais vitimiza16 o cidadão que procura o Judiciário é a morosidade na

Page 234

prestação jurisdicional, tema que será especialmente apreciado na análise da terceira onda.

Não há duvidas da existência de uma íntima relação entre a crescente litigiosidade no Brasil e as seculares deformidades econômicas e sociais estampadas em nossa sociedade. Na Suécia, por exemplo, onde o desnível social é um dos menores do mundo, a litigiosidade é muito pequena. Inobstante este fato, é surpreendente o número de pessoas que possui seguro contra demandas neste país17. Neste sentido, cita-se ainda a Holanda...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT