Acidentes de trabalho no transporte rodoviário de cargas: responsabilidade civil objetiva do empregador

AutorFernando Parabocz/Marcelo José Ferlin D'Ambroso
CargoGraduando em Direito pela UNOESC ? Universidade do Oeste de Santa Catarina, estagiário do Ministério Público do Trabalho ? Procuradoria do Trabalho no Município de Chapecó (SC)/Procurador do Trabalho
Páginas89-111

Page 90

Introdução

As inúmeras e árduas tratativas até se chegar à Lei n. 12.619/12, resultado do debate entre as classes econômica e profissional, ambas vitimadas pela caótica infraestrutura rodoviária brasileira, foram intermediadas pelo Ministério Público do Trabalho, tutelando a necessidade de limitação da jornada de trabalho e do tempo de direção, em prol do exercício seguro da profissão. A temática especialmente teve impulso com o ajuizamento da Ação Civil Pública n. 1372.2007.021.23.00-3, em 12.12.2007, da PTM de Rondonópolis (MT), pelo Procurador do Trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes1.

E no final de 2010 e início de 2011, devido ao grande número de inquéritos civis públicos existente em face de empresas de transporte rodoviário do oeste catarinense, cuja característica de grande entroncamento rodoviário na união dos três Estados do Sul e polo de escoamento de cargas da agroindústria, que torna a região estratégica na matéria, e considerando inúmeros acidentes de trabalho com vítimas fatais nas rodovias federais do entorno envolvendo carretas2, foi instaurado o PROMO n. 000100.2010.12. 003/1 (Procedimento Promocional de Políticas Públicas visando às implicações do transporte rodoviário de cargas nos motoristas e usuários das rodovias). Neste procedimento, diversas audiências com caráter público foram realizadas na Procuradoria do Trabalho de Chapecó, tendo o

Page 91

SITRAN3, a NTC4, a FETRANCESC5, o SETCESC6, o SETCOM7, o SETRACAJO8 e o SETRANSC9 apresentado propostas que entendiam viáveis de cumprimento pelas empresas para a regulamentação da profissão de motorista. A partir daí, com o acréscimo de sugestões do MPT ao projeto empresarial10, a discussão foi deslocada para Brasília, onde, na

Page 92

PRT1011, com os debates junto àCNTTT12 e outras entidades, avançou--se para o consenso entre as categorias envolvidas, por meio de projetos de alteração da CLT e do CTB, que culminaram no substitutivo do Senado ao Projeto de Lei n. 99/2007, apresentado em 16.12.2011 e posteriormente convertido na Lei n. 12.619/1213.

Portanto, estranha-se que, após as inúmeras discussões e negociações para aprovação da lei que regula o tempo de direção e a jornada de trabalho do motorista profissional, prestigiando o consenso, ocorram os turbulentos fechamentos das estradas neste início de vigência do Estatuto. No particular, este artigo procura demonstrar a caótica situação de trabalho a que se sujeitam esses inúmeros trabalhadores que fazem da estrada o seu meio ambiente laboral, sujeição esta que não ocorre simplesmente por uma questão social, mas, principalmente, pela ganância de alguns que, ao visar ao lucro desmedido, trespassam os direitos e garantias individuais e sociais

Page 93

do trabalhador, essencialmente enquanto pessoa, com reflexos para terceiros, usuários das rodovias, nos graves acidentes de trânsito.

As péssimas condições infraestruturais das vias de transporte no Brasil são evidentes, é claro, mas jamais poderiam ser utilizadas como subterfúgios para a prática de violações aos mais básicos direitos trabalhistas, tais como as normas atinentes à jornada de trabalho e tempo de direção14, infringidas na busca do cumprimento de prazos exíguos, com grave repercussão na esfera do trabalhador, que é o grande vitimado das estradas nesta seara.

Inobstante as violações à legislação social, há, ainda, a afronta a basilares princípios regentes do Ordenamento Jurídico, tal como a dignidade da pessoa humana, violada pelos empregadores que aviltam a Carta Maior na imposição de jornadas exaustivas e exigências de prazos não razoáveis, obrigando à condução perigosa dos motoristas, com riscos para si e para terceiros.

Nesse norte, evidencia-se a necessidade de responsabilização pelos danos causados ao trabalhador, à sua família, à livre concorrência, à sociedade. Contudo, diante das dificuldades inerentes ao trabalhador hipos-suficiente e aos meios de prova no processo em geral, este estudo foca a teoria da responsabilidade objetiva, pela qual o empregador responde, independentemente da existência de culpa ou dolo, pelos danos causados ao empregado e familiares, em razão do alto risco inerente à atividade de transporte rodoviário de cargas.

Page 94

1. Acidente de trabalho

O propósito do homem em lograr êxito em sua subsistência aliado à dinâmica evolução dos meios de produção, acentua os riscos inerentes de toda atividade profissional e demonstra a necessidade inarredável de se direcionar esforços na busca de medidas preventivas relativamente à segurança no meio ambiente laboral.

Michel15 destaca que a legislação atinente à prevenção aos riscos de acidentes de trabalho foi se modificando até chegar à chamada teoria do risco social, vale dizer, o acidente de trabalho é um risco inerente a qualquer atividade profissional, atividade esta que é exercida em benefício de todos, razão pela qual a sociedade deve amparar as vítimas de acidente.

O conceito de acidente de trabalho está previsto no caputdo art. 19 da Lei n. 8.213/9116. Trata-se da definição do chamado acidente de trabalho típico. Além deste artigo, a Lei ainda equipara a acidente de trabalho outras hipóteses que não se encaixam diretamente no conceito estrito de acidente detrabalho17.

Page 95

Nesse diapasão, torna-se curial frisar que cabe ao empregador proporcionar um meio ambiente laboral hígido aos empregados, nos termos do art. 157 da CLT18, adotando medidas preventivas no intuito de evitar a sinistralidade laboral.

Inobstante o dever do empregador em envidar esforços objetivando manter o meio ambiente do trabalho seguro e saudável, essa responsabilidade necessita da colaboração dos empregados, no sentido de observância às normas de segurança e medicina do trabalho, consoante dicção do art. 158daCLT19.

Conforme leciona Garcia20, a "regra de ouro" está na prevenção, para a qual todos os esforços devem ser direcionados no intuito de evitar o infortúnio. Afirma, ainda, o autor que o meio ambiente do trabalho, por estar inserido no gênero meio ambiente como um todo, está inserido no rol dos direitos fundamentais, merecendo, dessa forma, todo o cuidado e empenho do empregador e do Poder Público, na manutenção da sua higidez e integridade, visando à segurança, à saúde, à dignidade e à própria vida do trabalhador.

Tecida essa breve consideração acerca dos acidentes de trabalho, passa--se a analisar o contexto do transporte rodoviário de cargas no Brasil e sua inserção como uma atividade de extremo risco e, portanto, passível de ocasionar graves acidentes de trabalho, frequentemente com vítimas fatais.

2. Transporte rodoviário de cargas

A estabilidade da economia brasileira, conquistada nos últimos anos, e fruto, dentre outras razões, do aumento das exportações e dos mercados alcançados pela indústria nacional, alavancaram, como consequência, a capacidade produtiva interna, tornando imperiosa a necessidade de um escoamento mais eficiente dessa produção.

Page 96

A situação do Brasil no contexto internacional complica-se pelo escoamento da produção dar-se, majoritariamente, pelo transporte rodoviário de cargas, fato que compromete a competitividade brasileira e torna as vias inseguras, não só para os próprios motoristas de transporte de cargas, como para os cidadãos que percorrem as mesmas rodovias.

É cediço que a malha rodoviária brasileira sofre com o desleixo estatal, situação que torna uma atividade de extremo risco trafegar pelas rodovias malconservadas e inadequadas que se apresentam, em regra, como única alternativa para a atividade de transporte de cargas. Quando não esburacadas, de capacidade insuficiente e quase sempre sem todos os equipamentos de proteção necessários (guard-rail, sinalização etc.), o que aumenta sobremaneira o custo final, tanto para os empresários como para os autônomos, e, principalmente, o risco. No final, todos perdem com a incúria na conservação das estradas.

O excesso de veículos de cargas transitando pelas rodovias exige constante manutenção destas ou a sua construção visando suportar previsto desgaste. Além disso, o transporte rodoviário tem capacidade de tração de carga pífia se cotejado ao transporte ferroviário, por exemplo, e, ainda, é um grande poluidor ambiental, fatos que, por si sós, induzem a uma revisão sobre a dependência majoritária a um único modal.

Assim, a realidade é a exposição dos trabalhadores a riscos decorrentes, dentre outras razões, das condições precárias das pistas e do tráfego intenso.

3. Meio ambiente laboral do motorista

Silva21 destaca que o ambiente de trabalho do motorista é a rua, afirmando que "os trabalhadores estão expostos a frequentes situações de estresse, a altos níveis de ruído, a diferentes temperaturas e situações climáticas e a longas jornadas de trabalho".

Em verdade, trata-se de uma profissão desempenhada em um meio ambiente laboral complexo: o microcosmo ambiental do trabalhador é o habitáculo do veículo de transporte de cargas que conduz, o qual interage dinamicamente com o meio ambiente físico (condições climáticas, relevo, etc.) e artificial (estradas, locais de parada), com o agravante de estar em movimento.

Page 97

Há, pois, um meio ambiente estático e inerte, correspondente ao habi-táculo do veículo e compreendendo as condições de conforto do motorista para condução (ergonomia do assento, posição de dirigir, facilidade de instrumentos, espaço para eventual repouso, dispositivos de segurança em caso de colisão como airbags, barras de proteção, célula de sobrevivência etc.); e um meio ambiente dinâmico e mutante, resultante da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT