Ações de alimentos e de oferta de alimentos simultâneas: conexão, continência ou litispendência?

AutorRafael Calmon Rangel
Páginas485-498

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Apresentação

Em um contexto marcado por mudanças legislativas tão inovatórias quanto profundas, não mais encontram abrigo noções antigas sobre categorias jurídico-processuais concebidas em um momento em que o Processo Civil brasileiro não possuía a maturidade cientíica que hoje apresenta, o que, de certo modo, obriga a comunidade jurídica em geral a compreender que o sistema processual no modelo anteriormente concebido cedeu passo a um inteiramente novo, inamente sintonizado com a Constituição Federal de 1988 e inspirado por modernos ideais acolhidos pelo Direito comparado. Pautado nessas premissas o estudo que se apresenta tem por objetivo examinar situação cotidianamente enfrentada no foro, proporcionada quando pai e ilho ajuizam, um em face do outro, ações de alimentos e de oferta de alimentos simultâneas, que, não raro, vem dando ensejo aos mais discrepantes entendimentos jurisprudenciais.

Introdução

Apesar do signiicativo avanço conferido pela recente doutrina ao estudo do Direito das Famílias, o tratamento processual das demandas judiciais familistas parece não ser objeto de semelhante preocupação, o que não deixa de representar

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um paradoxo, sobretudo pelo fato de o inteiramente novo Código de Processo Civil de 2015 ter consagrado ideias e valores nunca antes vistos.

Não se questiona que a especialidade das ações de família reclame que lhes seja destinado tratamento processual diferenciado, preferencialmente com o emprego dos métodos alternativos de solução de controvérsias que, a propósito, vêm se revelando como verdadeiras tendências2. Mas, não se pode negar que o litígio pode não ser solucionado desta forma, em razão de as partes não chegarem a um consenso, notadamente quando a disputa familiar puder gerar repercussões, mínimas que sejam, no patrimônio de qualquer de seus componentes.

É nesse momento que se torna ainda mais importante a correta compreensão do processo como um mecanismo pautado em valores constitucionalmente assegurados, vocacionado à prestação de Justiça e dotado de eicácia prática, em que a conduta de todos os sujeitos, parciais ou não, que nele atuam deve ser direcionada a esse propósito, através da colaboração mútua permanente, diálogo e participação ativa em todas as etapas do processo, com o escopo de exercer efetiva inluência sobre a atividade judicial, transformando o que antes era visto como uma batalha travada nos fóruns, em algo semelhante a uma “comunidade de trabalho” (Arbeitsgemeinschaft), tal qual idealizada pelo direito alemão, em que as partes, advogados e o juiz deveriam proporcionar o ambiente ideal para a implementação de um sistema harmônico, fundado no debate, que implicaria na redução do tempo de duração do processo, na elaboração de decisões mais justas e na consequente redução dos recursos3.

Esse agir ica relativamente facilitado devido à circunstância de o CPC/15 ter encampado uma gama de possibilidades para o desenrolar do processo e a correspectiva prestação da tutela jurisdicional adequada, sem maiores entraves de ordem formal.

Por outro lado, não basta haver possibilidades, se os proissionais que com ele lidam não izerem uso delas, lançando mão de soluções criativas, que coincidam com os ideais de justiça, tudo direcionado na prestação otimizada de uma tutela jurisdicional não apenas justa, mas concretizável no plano empírico.

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Analisar o entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante, sob as luzes deste novo sistema processual, é o propósito que anima esta investigação, que não se limitará a apontar os pontos de divergência, mas se encarregará de apresentar uma proposta de solução para o impasse, pautada não no texto da lei, mas nos princípios e valores que subjazem o processo.

1 Da conexão, da continência e da litispendência

Não há como se confundirem os institutos da conexão, da continência e da litispendência.

O primeiro deles vem previsto no art. 55 do CPC/15, que, com redação praticamente idêntica à do art. 103 do Código Buzaid, enuncia que “reputam-se conexas 2 (duas) ou mais ações quando lhes for comum o pedido ou a causa de pedir”. Malgrado o texto exija a semelhança entre o pedido ou a causa de pedir, há tempos a doutrina vem entendendo que a noção de conexão é muito mais abrangente e por isso vem conferindo uma interpretação ampliativa a esse enunciado normativo4, levando o legislador do novo Código a encampar esse posicionamento no § 3º do mencionado dispositivo, cujo enunciado restou assim redigido “serão reunidos para julgamento conjunto os processos que possam gerar risco de prolação de decisões conlitantes ou contraditórias caso decididos separadamente, mesmo sem conexão entre eles”.

Guardadas poucas distinções semânticas, o instituto em questão talvez possa ser conceituado como um fato jurídico-processual veriicável toda vez que duas ou mais demandas distintas possuírem um vínculo entre si suicientemente forte ao ponto de a Decisão proferida em uma poder repercutir sobre a outra, dado ao fato de se basearem em uma mesma situação jurídica de direito material.

Com isso, o risco de existir contradição entre os julgamentos é gritante. Em havendo a possibilidade de isso ocorrer, o legislador recomenda que os processos que possuírem tal elo sejam reunidos no Juízo prevento, para que sejam conjuntamente instruídos e decididos, por intermédio de uma só sentença (CPC/15, art. 55, § 1º c/c 58; CPC/73, art. 105 c/c 106 e 219), desde que um deles ainda não tenha sido julgado, por óbvio (STJ, Súm. 235).

Prestigia-se, assim, a economia processual e a coerência interna do sistema.

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Já a continência encontra previsão legal no art. 56 do CPC/15 que, com redação pouco alterada frente àquela encampada pelo art. 104 do Código de 1973, enuncia que “dá-se a continência entre 2 (duas) ou mais ações quando houver identidade quanto às partes e à causa de pedir, mas o pedido de uma, por ser mais amplo, abrange o das demais”.

A rigor, a continência pode ser vista como uma forma qualiicada de conexão, dadas as semelhanças entre seus requisitos, aliadas à exigência de que o pedido formulado em uma ação seja mais amplo do que o deduzido em outra. Como seu regramento processual é em tudo equiparado àquele destinado à conexão, não serão tecidos maiores comentários a respeito.

Por im, a litispendência é um fenômeno veriicável toda vez que mais de uma demanda em trâmite apresentar idênticas partes, causa de pedir e pedido, como deixa claro o texto do art. 337, § 2º do CPC/15, segundo o qual “uma ação é idêntica a outra quando possui as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido”.

Embora também encontre fundamento na economia processual e na necessi-dade de harmonização dos julgados, a litispendência não gera a mera reunião de processos, mas sim a extinção da segunda ação (CPC/15, art. 485, V; CPC/73, art. 267, V).

Traçadas essas premissas, resta saber em que medida as ações de família sob enfoque são inluenciadas por estes institutos.

2 Das ações de oferta e de pedido de alimentos simultâneas: hipótese de conexão, continência ou litispendência?

No dia a dia forense, é bastante comum que um genitor ofereça alimentos ao ilho, ao mesmo tempo em que este ilho, por intermédio do outro genitor, lhe peça alimentos. Diante dessa corriqueira hipótese, costuma surgir a dúvida a respeito da medida processual a ser adotada pelo magistrado no caso concreto: o reconhecimento da conexão ou da continência, com a correspondente reunião de processos, para julgamento conjunto, ou a extinção de uma das ações, sem resolução de mérito, com fundamento na litispendência.

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As opiniões se dividem. Na doutrina, YUSSEF SAID CAHALI5, por exemplo, sustenta a ocorrência de continência, no que vai acompanhado por BASÍLIO DE OLIVEIRA6. Já o entendimento jurisprudencial é bastante oscilante e simples pesquisa à base de dados dos Tribunais estaduais revela a intensidade dessa divergência, rendendo ensejo ao surgimento de fundamentadas decisões abonando tanto uma tese quanto outra. Basta ver que, enquanto os TJMG7,

TJDFT8e TJSC9parecem possuir entendimento consolidado a respeito da ocorrência de mera conexão, o TJRS, aparentemente de forma pacíica, entende pela litispendência10, ao passo que o TJSP e o TJPR possuem julgados tanto em um quanto em outro sentidos1112.

As consequências advindas de cada um desses posicionamentos são tão diver-sas quanto conhecidas, e por isso não merecem maiores comentários, a não ser a mera lembrança de que, embora a conexão não induza à obrigatória reunião dos processos, implica necessariamente em dois julgamentos distintos, ainda que

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contidos, sob o aspecto formal, em uma única sentença (CPC, art. 55, § 1º), ao passo que a litispendência leva sempre e infalivelmente à extinção de uma das ações (CPC, art. 485, V).

Por isso é que melhor do que fazer a abordagem dos efeitos isolados de tais institutos, parece ser a análise dos motivos que os orientam, pois é neles que reside o que talvez seja a principal razão para tamanha...

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