A administração internacional de territórios: do constitucionalismo imposto à construção de uma ordem constitucional
Autor | Otávio Cançado Trindade |
Cargo | Faculdade de Direito da UFMG |
Páginas | 281-345 |
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Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 56, p. 281-346, jan./jun. 2010
* Doutor em Direito, Estado e Constituição pela UnB, mestre em Diplomacia
pelo Instituto Rio Branco (Prêmio Hildebrando Accioly) e bacharel em Direito
pela UnB. Diplomata. E-mail: otavioctrindade@gmail.com
A ADMINISTRAÇÃO INTERNACIONAL DE
TERRITÓRIOS: DO CONSTITUCIONALISMO
IMPOSTO À CONSTRUÇÃO DE UMA ORDEM
CONSTITUCIONAL
Otávio Cançado TRINDADE*
RESUMO
Ao longo do século XX, a administração internacional de
territórios ocorreu mediante arranjos que atribuíram a um terceiro
Estado essa função e arranjos em que o governo é exercido por
instituição representativa da comunidade internacional. Graças ao grau
de institucionalidade da comunidade internacional e ao direito da Carta
das Nações Unidas, foi possível reviver esse tipo de experiência mesmo
após a condenação do colonialismo. Uma abordagem constitucional
pode fornecer elementos que legitimam a administração internacional
e elementos que o questionam. Ela requer a sua constante legitimação.
Para evitar um constitucionalismo imposto, deve-se permitir que
indivíduos sob administração internacional participem da vida política
e que questionem as decisões tomadas pela autoridade transitória
estrangeira. A Missão das Nações Unidas para Administração Interina
em Kosovo (UNMIK) ilustra a falta de monitoramento, enquanto a
jurisprudência da corte constitucional da Bósnia-Herzegovina ilustra
controle sobre a autoridade estrangeira.
PALAVRAS-CHAVE: Direito internacional. Administração de
territórios. Constitucionalização. Legitimidade.
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O presente artigo examinará o exercício do governo pela
comunidade internacional na administração de territórios. Por
meio da administração de territórios, atualmente inserida no marco
de operações de manutenção da paz, o direito internacional cria
ordens jurídicas autônomas, constitucionais, que regulamentam
funções típicas de Estado. O assunto guarda estreita relação com a
constitucionalização do direito internacional (DIP). Trata-se de um
ponto de contato signicativo entre instituições percebidas como
representativas da comunidade internacional e indivíduos, em que
se exerce, diariamente, poder de decisão com impacto direto sobre
as esferas pública e privada. O objetivo do artigo é examinar como
a constitucionalização do DIP opera na administração internacional
de territórios.
Dois aspectos do tema são importantes para os fins do
presente estudo. O primeiro é a análise da evolução histórica da
administração de territórios e de como contribui para a criação de
uma ordem constitucional interna. É útil vericar a transição entre
arranjos criados para atribuir a um terceiro Estado o governo de
território “sem capacidade de auto-governo”, como os sistemas de
mandato e de tutela, para arranjos em que o governo é exercido
pela própria comunidade internacional com o objetivo de reerguer
instituições governamentais locais e a ordem constitucional de um
território, como a Missão das Nações Unidas para Administração
Interina em Kosovo (UNMIK). A mudança das justicativas de
uma administração internacional muito se deveu ao movimento de
descolonização, imbuído da crítica ao colonialismo. O direito da
Carta das Nações Unidas tornou possível a atuação da organização
no processo de descolonização, como evidenciaram as resoluções do
CSNU sobre a Namíbia, sentenças e pareceres da CIJ e a Declaração
da AGNU sobre a Concessão de Independência a Países e Povos sob
Colonização (Resolução 1514/XV).
O segundo aspecto relevante são os limites impostos à
administração internacional para evitar que a comunidade internacional
acabe se tornando opressora e violadora de direitos individuais ao
governar um território. Enquanto o direito internacional dos direitos
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humanos e o direito internacional penal desenvolveram mecanismos
jurídicos para regular e adjudicar sobre direitos e obrigações
internacionais sob o direito internacional, o exercício de autoridade
normativa direta sobre indivíduos não tem sido acompanhado do
mesmo nível de institucionalização1. Mecanismos de controle em
benefício da população local têm o objetivo de evitar que a própria
comunidade internacional, ao assumir o governo para preservar
núcleo de valores do direito internacional, venha a se tornar algoz
de um povo. Buscam reproduzir a idéia de limitação do poder que
fundamenta os constitucionalismos nacionais e o direito dos direitos
humanos. Tais mecanismos também foram, a despeito de imperfeições,
acolhidos na administração internacional de territórios. O caso de
Kosovo é emblemático para o estudo do tema. Trata-se de exemplo
contemporâneo de administração direta de territórios, envolve os
principais elementos que justicam a administração internacional
de um território, levou à proclamação de independência do território
e foi objeto de parecer da CIJ com ampla participação dos Estados.
Merece, portanto, ser objeto de “estudo de caso”.
1. Antecedentes da administração internacional de territórios
Até a criação da Liga das Nações, não havia distinção entre
administração estrangeira regida pelo “direito da ocupação” e o que
se veio a denominar “administração internacional” de territórios.
As colônias estavam submetidas à soberania da metrópole, ainda
que cada potência colonizadora criasse mecanismos internos que
atribuíssem maior autonomia aos povos sob seu domínio. Os casos
de internacionalização, especialmente de cidades, ocorriam mediante
arranjos criados por um grupo de Estados, em que se assumia
autoridade executiva sobre um território. Como antecedentes, pode-se
citar a criação da “Cidade Livre de Cracóvia”2, em 1815, a ocupação
1 STAHN, Carsten. The law and practice of international territorial
administration. Cambridge University Press: Cambridge/New York, 2008, p.
32.
2 Criada pelo artigo 6 da Declaração Final do Congresso de Viena, era
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