A prescrição administrativa no direito brasileiro antes e depois da Lei nº 9.873/99

AutorProf. Luís Roberto Barroso
CargoProfessor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Master of Laws pela Yale Law School. Procurador do estado e advogado no Rio de Janeiro.
Páginas1-26

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I Introdução

Trata-se de parecer sobre questões envolvendo a interpretação e aplicação de normas constitucionais e administrativas em matéria de prescrição. Juntamente com a narrativa da hipótese, foram-me encaminhadas cópias de peças de processos administrativos em tramitação perante o Banco Central. Os fatos relevantes vão a seguir expostos.

II A hipótese

O consulente, assim como outras instituições financeiras, é autorizado pelo Banco Central a vender moeda estrangeira para remessa ao exterior, através de contrato de câmbio, nas operações de importação. Tais operações cambiais são regidas, principalmente, pela Lei nº 4.131, de 3.9.62, que disciplina a aplicação do capital estrangeiro e as remessas de valores para o exterior.

No período compreendido entre 14 de outubro de 1988 e 14 de junho de 1989, segundo apuração do Banco Central, o consulente viuse involuntariamente envolvido em uma fraude cambial. De fato, nos meses assinalados, foram celebrados 18 (dezoito) contratos de câmbio nos quais o suposto importador na realidade não existia. Toda a documentação relativa à importação era falsa. Ficou constatado que ou se tratava de uma empresa "fantasma" ou a quadrilha, para perpetrar a fraude cambial, utilizava nome e dados de empresas existentes, mas que não tinham qualquer relação com o negócio.

Em 20 de dezembro de 1994 - cinco anos e seis meses após a data de celebração do último contrato -, o consulente foi intimado da abertura, pelo Banco Central, de inquérito administrativo para apuração das referidas fraudes cambiais, com fundamento no art. 23 da Lei nº 4.131/62.

Em sua defesa naquele inquérito, o consulente, dentre outros pontos, suscitou a prescrição da pretensão punitiva da Administração, uma vez que o processo administrativo foi instaurado mais de cinco anos após ocorridas as supostas infrações. O Banco Central rejeitou a tese em primeira instância, entendendo que, na ausência de disposição específica da Lei nº 4.131/62 sobre o prazo prescricional, não caberia a aplicação, por analogia, da prescrição qüinqüenal, devendo ser aplicado o prazo vintenário do Código Civil. A decisão data de 31 de julho de 1996, e pende contra ela o recurso administrativo próprio.

Posteriormente, em 1º de julho de 1998, foi editada pelo Poder Executivo Federal a Medida Provisória nº 1.7081, que estabelece, em seu art. 1º, o prazo prescricional genérico de cinco anos, contados a partir do ato ilícito, para a ação punitiva da administração.

Contudo, o mesmo diploma legal traz, em seu art. 4º, preceito com a seguinte dicção:

"Art. 4º - Ressalvadas as hipóteses de interrupção previstas no art. 2º, para as infrações ocorridas há mais de três anos, contados do dia 1º de julho de 1998, a prescrição operará em dois anos, a partir dessa data."

Em sua leitura mais óbvia, sugere a norma transcrita que todas as infrações ocorridas antes de 1º de julho de 1995 - dentre as quais as imputadas ao consulente - prescreveriam apenas em 1º de julho de 2000.

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III A consulta

Diante de tais fatos, indaga o consulente:

  1. se a pretensão punitiva da Administração, relativamente às infrações que lhe são imputadas, foi colhida pela prescrição;

  2. qual a repercussão jurídica da edição da Lei 9.873/99 sobre a situação do consulente;

  3. se o art. 4º da Lei 9.873/99 é compatível com a Constituição.

A análise que se segue não cuidará de discutir os aspectos fáticos da questão. Ocasionalmente, serão tomadas como pressupostos, para a construção do argumento, as afirmações constantes da decisão já proferida pelo Banco Central no caso. Tais referências estarão assinaladas, de modo que nada se deve extrair do presente trabalho quanto a esses pontos. O parecer limita-se às questões jurídicas suscitadas, que envolvem basicamente princípios de direito constitucional, administrativo e de teoria geral do direito.

IV O princípio da prescritibilidade das pretensões

Num Estado democrático de direito, a ordem jurídica gravita em torno de dois valores essenciais: a segurança e a justiça. Para realizar a justiça, tanto material como formal, prevêem-se diferentes mecanismos, que vão da redistribuição de riquezas ao asseguramento do devido processo legal. É para promovê-la que se defende a supremacia da Constituição, o acesso ao Judiciário, o respeito a princípios como os da isonomia e o da retroação da norma punitiva mais benéfica.

A segurança, por sua vez, encerra valores e bens jurídicos que não se esgotam na mera preservação da integridade física do Estado e das pessoas. Abrigam-se em seu conteúdo, ao contrário, conceitos fundamentais para a vida civilizada, como a continuidade das normas jurídicas, a estabilidade das situações constituídas e a certeza jurídica que se estabelece sobre situações anteriormente controvertidas. Em nome da segurança jurídica, consolidaram-se institutos desenvolvidos historicamente, com destaque para a preservação dos direitos adquiridos e da coisa julgada. É nessa mesma ordem de idéias que se firmou e difundiu o conceito de prescrição, vale dizer, da estabilização das situações jurídicas potencialmente litigiosas por força do decurso do tempo.

Esta visão é amadurecida e incontroversa, e não apenas na doutrina publicista. San Tiago Dantas, com densa simplicidade, resumiu o conhecimento convencional:

"Esta influência do tempo, consumido do direito pela inércia do titular, serve a uma das finalidades supremas da Page 4 ordem jurídica, que é estabelecer a segurança das relações sociais. Como passou muito tempo sem modificar-se o atual estado de coisas, não é justo que se continue a expor as pessoas à insegurança que o direito de reclamar mantém sobre todos, como uma espada de Dâmocles. A prescrição assegura que, daqui em diante, o inseguro é seguro; quem podia reclamar não mais o pode. De modo que, o instituto da prescrição tem suas raízes numa das razões de ser da ordem jurídica: estabelecer a segurança nas relações sociais - fazer com que o homem possa saber com o que conta e com o que não conta."2

Em qualquer dos campos do direito, a prescrição tem como fundamento lógico o princípio geral de segurança das relações jurídicas3 e, como tal, é a regra, sendo a imprescritibilidade situação excepcional. A própria Constituição Federal de 1988 tratou do tema para prever as únicas hipóteses em que se admite a imprescritibilidade4, garantindo, em sua sistemática, o princípio geral da perda da pretensão pelo decurso do tempo. Com efeito, esse foi sempre o entendimento da melhor doutrina e jurisprudência. Confiram-se, dentre outras5, as lições de Pontes de Miranda e Caio Mário da Silva Pereira, respectivamente:

"A prescrição, em princípio, atinge a tôdas as pretensões e ações, quer se trate de direitos pessoais, quer de direitos reais, privados ou públicos. A imprescritibilidade é excepcional." 6

"A prescritibilidade é a regra, a imprescritibilidade a exceção." 7

E, especificamente no que diz respeito à prescritibilidade das pretensões punitivas de natureza administrativa, veja-se o magistério de J. Cretella Junior:

"Por isso, é insustentável a tese da imprescritibilidade da sanção administrativa, defendida por ilustres cultores do Page 5 direito administrativo, porque o fundamento da prescrição tem de ser buscado na categoria jurídica, sendo o mesmo para o direito penal e para o direito disciplinar, havendo diferenças, é claro, apenas naquilo que o direito positivo de cada país preceituou para uma e outra figura."8 (Grifos no original)

De tal visão não refoge a jurisprudência, consolidada desde antes da Constituição de 1988. É o que se constata dos acórdãos abaixo:

"Em matéria de prescrição em nosso sistema jurídico, inclusive no terreno do direito disciplinar, não há que se falar em jus singulare, uma vez que a regra é a da prescritibilidade" (STF, MS 20.069, Rel. Min. Moreira Alves, RDA 135/78).

"(...) O poder de punir disciplinarmente os inscritos no quadro da Ordem dos Advogados do Brasil não é perpétuo, extinguindo-se com o decurso do tempo (...) É evidente que repugna ao direito a imprescritibilidade da pena disciplinar" (TFR, Remessa ex officio 88.333, Rel. Min. Washington Bolivar, RDA 156/169-172).

Uma primeira conclusão se pode extrair desde logo: se o princípio é a prescritibilidade, é a imprescritibilidade que depende de norma expressa, e não o inverso.

O fato de não haver uma norma dispondo especificamente acerca do prazo prescricional, em determinada hipótese, não confere a qualquer pretensão a nota da imprescritibilidade. Caberá ao intérprete buscar no sistema normativo, em regra através da interpretação extensiva ou da analogia, o prazo aplicável.

Com efeito, o argumento de que o tema da prescrição seria de "direito estrito", não admitindo por isso analogia, não tem fundamento. Como se sabe, a analogia só é vedada nas hipóteses de disposições excepcionais.9Como a exceção, no caso, é que os direitos sejam imprescritíveis, não se poderão criar novas situações de imprescritibilidade mediante analogia. A prescritibilidade, ao contrário, sendo a regra, admite a integração. Hely Lopes Meirelles, que nas primeiras edições de seu curso defendia aquela idéia, esclarece a reconsideração de sua posição:

"Temos defendido a tese de que a prescrição administrativa, tratando-se de matéria de direito estrito, só Page 6 ocorre quando a lei a estabeleça. Essa conclusão foi por nós adotada em relação às penas disciplinares, não...

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