A adoção do princípio da função social do direito de propriedade pela Constituição brasileira de 1946

AutorEliardo França Teles Filho
Páginas195-210

Eliardo França Teles Filho. Mestrando do curso de Direito e Políticas Públicas do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB); bolsista do Programa UniCEUB/CAPES/PROSUP. eliardofteles@yahoo.com.br

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1 Introdução

Este artigo analisa as razões da adoção do princípio da função social do direito de propriedade pelos constituintes que elaboraram a Constituição de 1946. Além disso, compara a impressão que aquele texto dá e sua repercussão na técnica e na dogmática jurídica. Com isso, lança luz sobre o porquê de nunca ter havido uma reforma agrária no Brasil, apesar de todas as nossas constituições aparentarem ser favoráveis à mesma.

A primeira parte do artigo coloca o problema em termos de aparente contradição entre o texto constitucional de 1946, o primeiro a esboçar o verdadeiro princípio da função social do direito de propriedade, e as ações estatais subseqüentes referentes à reforma agrária. A segunda parte problematiza a contradição no do campo jurídico, mostrando que tampouco os manuais de direito e os procedimentos expropriatórios adequaram-se à diretriz constitucional. Na terceira parte, apresentamos o resultado de uma pesquisa sobre os debates dos constituintes sobre a adoção ou não do princípio da função social. Veremos que as razões dos constituintes permitem superar a contradição aparente e compreendê-la como o desenvolvimento normal do uso que os constituintes fizeram do princípio. A quarta parte trata de como o desenho que os constituintes deram àquela diretriz constitucional implicou a sua anulação enquanto instrumento para a implementação de uma reforma agrária. Dito de outro modo, o princípio se converteu em obstáculo à reforma. Ao final, apresentamos algumas considerações que podem servir para aclarar as relações entre o direito, de um lado, e a economia e a sociedade, de outro, e revelar algo sobre o pensamento jurídico do Brasil.

2 O problema: contradição entre o texto constitucional e a inviabilidade da Reforma agrária

A preocupação que deu origem ao artigo surgiu do estranhamento diante das dificuldades que um país tão extenso como o Brasil encontra em realizar reforma agrária que responda de maneira adequada às necessidades de boa parte das populações rural e urbana brasileira por justiça social, igualdade e inclusão. Mais do que isso, a implantação da Reforma agrária ampla poderia contribuir para a solidificação da economia capitalista no Brasil, na medidaPage 196 em que geraria um segmento de pequenos proprietários rurais, importante força na superação de entraves pré-capitalistas que naquele tempo ainda sobreviviam no Brasil.

Com base no ponto de vista jurídico predominante em nossa cultura, segundo a qual os problemas sociais são solucionáveis pura e simplesmente pela legislação2, a Constituição de 1946 já continha mecanismos suficientes para a implantação daquela reforma: a subordinação do direito de propriedade a sua função social. É a estes mecanismos que, neste artigo, damos o nome de princípio da função social do direito de propriedade.

Este princípio foi inscrito nos artigos 141, § 16, e 147 daquela Constituição. O primeiro, inserido no capítulo dos direitos fundamentais, garantia o direito de propriedade ao mesmo tempo em que permitia a desapropriação por interesse social mediante prévia e justa indenização em dinheiro, além das modalidades já reconhecidas nas constituições anteriores de desapropriação por necessidade e/ou utilidade pública. O segundo, no título da ordem econômica e social, condicionava o uso da propriedade ao bem-estar social e permitia a distribuição da propriedade por meio de lei que seguisse o princípio do artigo 141, § 16. Como se vê, os mecanismos tanto se referiam ao direito de propriedade como à propriedade.

Com esses mecanismos, o Estado parecia bem aparelhado para realizar políticas públicas visando ou à redistribuição de terras improdutivas, ou ao desestímulo da propriedade especulativa de terras. Mais do que isso, parecia estar obrigado a fazer a reforma agrária. Dado o grande número de terras improdutivas no país naquele tempo, era de se esperar que, com aquele princípio constitucional chegaríamos mais perto da justiça social (por meio da distribuição de um fator de produção que, teoricamente, permitiria melhores oportunidades econômicas a grupos sociais até então marginalizados) e do desenvolvimento econômico (por meio do estímulo a que os proprietários fizessem uso produtivo de suas terras, ou as vendessem a quem quisesse fazê-lo). Em todo caso, os mecanismos que conformavam o princípio da função social do direito de propriedade contribuiriam para a formação de uma classe de pequenos proprietários no Brasil.

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Ocorre que, apesar da adoção do princípio da função social do direito de propriedade, nada daquilo que seria de se esperar da adoção de um princípio como esse ocorreu. Ainda hoje, apesar de estarmos há sessenta anos sob o regime constitucional da propriedade subordinada a sua função social, pouco se fez pela reforma agrária, seja em termos de políticas públicas consistentes, seja em termos da elaboração de leis que a implementassem efetivamente, se é que uma lei tem esse efeito.

Ao contrário, os efeitos daquela disposição constitucional foram bem outros. Foi na vigência daquela Constituição que o então presidente João Goulart pretendeu dar início à reforma agrária no Brasil, visando, não à abolição da propriedade, mas à “integração da população do campo à economia de mercado, gerando assim uma nova demanda para os produtos industriais” (FAUSTO, 2003, p. 449) ou seja, uma reforma agrária de molde eminentemente capitalista, que tencionava constituir uma camada social de pequenos proprietários. O resultado foi um golpe de Estado, em cujo discurso figurava a alegação de defesa da ordem constitucional firmada em 1946, ameaçada pela reforma agrária de João Goulart (SKIDMORE, 1982, p. 363). Aparentemente a ordem constitucional era ambígua: ao mesmo tempo em que endossava a função social da propriedade, não comportava a realização de reforma agrária, nem em moldes capitalistas.

3 O problema: a ambigüidade nos manuais

A ambigüidade torna-se mais impressionante se observarmos como foi a recepção da função social da propriedade pela dogmática jurídica. Pesquisando manuais bem posteriores à Constituição de 1946, percebemos que a função social da propriedade não fora absorvida por alguns dos principais juristas brasileiros.

Foram consultados nesta pesquisa, três manuais de direito privado cujos autores desfrutavam de bastante prestígio entre os professores e os alunos de direito civil de nossas faculdades. A intenção foi observar se os autores haviam mudado a forma como conceituavam a propriedade depois da adoção da função social, ou seja, se em razão da subordinação constitucional do direito de propriedade a uma função social, os autores passaram a conceituá-lo como um direito que implicasse deveres do proprietário para com a coletividade. Também foi consultado um administrativista, Hely Lopes Meirelles, a fim de pesquisar qual foi o impacto daPage 198 adoção da função social da propriedade na doutrina administrativa do procedimento expropriatório. A seguir veremos sucintamente o resultado da pesquisa.

No primeiro dos manuais de direito privado, cujo autor é Sílvio Rodrigues, o direito de propriedade é tratado como um “liame que se estabelece entre o proprietário e a coisa que se encontra em seu domínio [e] vincula, de um certo modo, todas as pessoas do universo” (RODRIGUES, 1997, p. 74, grifo nosso). O autor, a despeito da transformação constitucional do direito de propriedade em um direito ligado a deveres, dá um conceito digno do liberalismo do século XIX, chegando a dar um poder metafísico àquele direito: o poder de vincular todas as pessoas do universo. Além dessa definição arcaica, e contrária à Constituição, notamos no texto daquele autor que o conteúdo é praticamente o mesmo há décadas, e que, a cada mudança constitucional, o autor apenas acrescenta algumas notas de rodapé, quase nada alterando quanto ao corpo do texto.

Outro autor de manuais consultado foi Washington de Barros Monteiro, que também adota viés ideológico contrário à concepção do direito de propriedade ligado a uma função social. A título de exemplo do conteúdo de suas explicações sobre a propriedade, citamos a seguinte definição: a propriedade é:

uma necessidade econômica para as sociedades civilizadas e que se impõe ao legislador e ao jurista. Seus inimigos, porém, existirão sempre, fazendo coro com Proudhon, para quem ela era um roubo, pretendendo assim uma noite de São Bartolomeu para todos os proprietários. (MONTEIRO, 1999, p. 79, grifo nosso).

O autor identifica civilização e sociedade capitalista, universalizando a necessidade típica de países capitalistas. A propriedade efetivamente é uma necessidade em sociedades capitalistas, porém, não é uma necessidade para todas as nações...

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