A Adoção Internacional à Luz do Princípio do Melhor Interesse da Criança

AutorGabriela Aranha Rick; Isabela Guimarães Di Julio; Silvana de Sousa
Páginas301-310

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1. Considerações iniciais acerca da adoção

O instituto da adoção pode ser definido como o ato jurídico solene, pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consanguíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha1.

Conforme preceitua Maria Helena Diniz, trata-se de uma medida de proteção e uma instituição de caráter humanitário, que tem, por um lado, por escopo, dar filhos àqueles a quem a natureza negou e, por outro lado, uma finalidade assistencial, constituindo um meio de melhorar a condição moral e material do adotado2.

A Constituição Federal de 1988, símbolo da democracia brasileira, consagrou entre os fun-damentos da República a dignidade da pessoa humana, assegurada por meio do pleno exercício dos direitos humanos fundamentais por todos os indivíduos. Considerados como sujeitos de direitos, e não apenas objetos a serem tutelados3, a criança e o adolescente possuem certa gama de garantias que, em razão de sua maior vulnerabilidade social, merecem olhar especial do Estado.

O intuito de reconhecer uma proteção especial para a criança e o adolescente não é recente. A Declaração de Genebra, de 1924, mencionava a necessidade de proteção especial à criança; já a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948) aduzia ao direito a cuidados e assistências especiais; no mesmo sentido, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de São José, 1969) estatuiu o direito às medidas de

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proteção a todas as crianças, garantidas pela família, pela sociedade e pelo Estado.

Não tão distante, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude — Regras de Beijing, as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil — Diretrizes de Riad, além dessas, As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Provados de Liberdade, que difundiram o ideal de nobreza e dignidade do ser humano criança4.

Neste diapasão, no ordenamento pátrio, consagrou o legislador constituinte o Princípio da Proteção Integral, que atribui à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar à criança e ao adolescente direitos essenciais ao seu desenvolvimento, alinhando-se ao ideal proposto na Convenção sobre o Direito da Criança, aprovada pelo Congresso Nacional em 14.9.1990, por meio do Decreto Legislativo n. 28 e ratificado pelo Decreto n. 99.710, de 21.11.1990. Em especial, neste presente trabalho, cumpre destacar o direito à convivência familiar, princípio norteador da adoção.

Tendo em vista que a Carta Magna, conhecida por seu caráter humanitário e garantista, reconhece a família como base da sociedade e lhe confere proteção especial do Estado, a adoção surge como medida que se propõe a efetivar o direito à convivência familiar à criança e ao adolescente, tendo como principal agente o Poder Público, responsável pela tutela dos menores após a destituição do poder familiar dos genitores e, consequentemente, pela reinserção daqueles em novo ambiente familiar, qual seja, a família substituta. Nesse sentido, Maria Berenice Dias expõe brilhantemente que “quando a convivência com a família natural se revela impossível ou é desaconselhável, melhor atende ao interesse de quem os pais não desejam ou não podem ter consigo, ser entregue aos cuidados de quem sonha reconhecê-lo como filho. A celeridade deste processo é o que garante a convivência familiar, direito constitucionalmente preservado com absoluta prioridade”5.

Nota-se, por parte do legislador, forte preocupação com o bem-estar da criança e do adolescente, ao destinar à adoção o papel de promover, de forma sadia e completa, o desenvolvimento do ser humano, haja vista que as funções desempenhadas pela família para com seus membros são de extrema importância e a caracterizam como: geradora de afeto; proporcionadora de segurança, aceitação pessoal, satisfação e sentimento de utilidade; asseguradora da continuidade das relações; proporcionadora de estabilidade e socialização, assegurando a continuidade da cultura da sociedade correspondente; e impositora de autoridade, respeito e limites6.

2. Breve histórico e o caráter humanitário da adoção

Importante ressaltar, no entanto, que o instituto da adoção nem sempre foi utilizado como elemento a suprir lacunas essenciais à formação do indivíduo adotado. Nos tempos primórdios, a adoção tinha cunho meramente biológico, visando sempre à perpetuação da família. Como exemplo, na Grécia, costumava-se recorrer à adoção nas hipóteses em que alguém falecesse sem deixar herdeiros, apenas para que os direitos sucessórios fossem transferidos, ainda que somente aos homens, garantindo, assim, a continuidade dos laços familiares.

Em Roma, por sua vez, a adoção era vista como instituto pelo qual a Igreja e a lei concediam às famílias aquilo que a natureza não pôde lhes oferecer7. Entretanto, na Idade Média, devido à forte influência do Direito Canônico, a adoção caiu em

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desuso. De acordo com a ideologia católica, o instituto ensejava o reconhecimento de filhos incestuosos e adulterinos, contrariando os princípios básicos da Igreja e desestimulando o matrimônio. Graças às influências desse tempo, a sociedade passou a ver o adotado com olhar de misericórdia. Tendo em vista que a adoção consiste justamente na inserção de criança ou adolescente desamparado do seio familiar natural, revestia-se o ato de generosidade, dando-lhe aspecto de boa ação.

As ideias supramencionadas foram inseridas no ordenamento jurídico brasileiro, na medida em que o Código Civil de 1916 privilegiava exclusivamente a figura dos adotantes, beneficiando, por meio das normas, aqueles que não podiam conceber filhos. Em contrapartida, as legislações ulteriores, notadamente o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao consagrarem o princípio do melhor interesse da criança, visaram à garantia do desenvolvimento dos menores desamparados, colocando a adoção como meio de real vantagem para o futuro adotado, não podendo mais ser o instituto equiparado a um ato de misericórdia, tampouco utilizado como meio propício à mera perpetuação familiar.

Embora tal mudança de óptica tenha se dado no âmbito jurídico, espera-se que, ainda que de forma lenta e gradual, culturalmente, a iniciativa da adoção se despoje de todo sentimento ético e religioso de caridade.

3. A adoção internacional no ordenamento jurídico brasileiro

Observou-se, historicamente, que após fenômenos mundiais, como guerras e catástrofes naturais, momento em que emergem multidões de crianças órfãs, sem qualquer possibilidade de acolhimento em suas próprias famílias e, especificamente, após a

Segunda Guerra Mundial, as filiações adotivas, que antes restringiam-se unicamente ao âmbito interno, passaram a ocorrer transfronteiriçamente, surgindo, portanto, a figura da adoção internacional8.

A adoção internacional está prevista em nosso ordenamento jurídico na Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, § 5º, considerado como norma de eficácia limitada9 e, portanto, a ser regulamentada por outros diplomas legais. Neste sentido, dois principais sistemas jurídicos disciplinam o instituto: o Decreto n. 3.087, de 21 de julho de 1999, que promulgou as normas da Convenção de Haia de 1993; e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
n. 8.069/90), que teve algumas disposições sobre o tema alteradas pela Lei n. 12.010/09, conhecida como Lei da Adoção.

4. A Convenção de Haia de 1993

A Convenção de Haia, de 29 de maio de 1993, relativa à Proteção de Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, foi elaborada na Conferência de Haia de Direito Internacional Privado, organização intergovernamental fundada em 1893, a qual tem como fim a unificação das regras e a solução dos problemas de direito internacional privado.

Estiveram presentes na elaboração da Convenção de 1993 os mais importantes países de origem das crianças destinadas à adoção, como Coreia, Vietnã, Índia, Filipinas, China, Romênia, Albânia, México, Colômbia e Brasil. Igualmente, participaram os países com mais destaque na recepção de crianças e adolescentes, denominados países de acolhida, como Estados Unidos da América, Itália, França, Israel, Suécia, Alemanha, Canadá, Suíça e Bélgica10. Mais de 120 países ratificaram a Con-

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venção, dentre os quais o Brasil, que a aprovou pelo Decreto Legislativo n. 1, de 14 de janeiro de 1999, e a promulgou pelo Decreto n. 3.087, de 21 de julho de 199911.

Observa-se, já no preâmbulo da Convenção, que esta, ao estabelecer um modelo de cooperação jurídico-administrativa entre os países signatários, buscou tratar da regulamentação da adoção inter-nacional com o objetivo de promover o melhor interesse da criança não apenas no que tange à segurança jurídica das decisões judiciais proferidas no país de origem, mas também em relação ao combate efetivo ao tráfico de crianças pela via da adoção transnacional que, todavia, continua sendo considerada medida...

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