Adoção Intuitu Personae - o Equilíbrio entre Razão e Emoção no Melhor Interesse da Criança e do Adolescente

AutorMartha Solange Scherer Saad; Lia Cristina Campos Pierson; Maria de Fátima Monte Maltez
Páginas282-293

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Família, um sonho ter uma família.

Família, um sonho de todo dia. Família é quem você escolhe pra viver. Família é quem você escolhe pra você.

Não precisa ter conta sanguínea. É preciso ter sempre um pouco mais de sintonia.

O Rappa (Não Perca As Crianças de Vista)

1. O direito de eleger o sujeito do afeto ao longo da história

O termo adoção deriva do latim adoptione e significa receber, na qualidade de filho, alguém que não é filho, seja criança, adolescente ou adulto, pois a legislação brasileira não limita idade máxima para o adotando. É, portanto, um ato jurídico pelo qual uma pessoa deseja, requer e recebe outra como filho que, por sua vez, deseja, concorda e recebe alguém como pai ou mãe, formando uma família monoparental, ou biparental, quando forem dois os adotantes.

A adoção é um instituto muito antigo, cujo vínculo era constituído pela criação e pela concessão do nome (Código de Hamurabi, arts. 185 a 195), por intervenção de magistrado (Atenas), por contrato ou decreto do pontífice (Roma) e, ainda, por testamento. Considerando-se que o critério de formação da família não era necessariamente consanguíneo, tampouco

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afetivo, mas religioso — assegurar a perpetuidade do culto aos deuses domésticos para evitar a extinção da família —, a adoção propiciava tal finalidade ao casal impossibilitado de procriar naturalmente, mantendo íntegro e perpétuo o culto ao fogo sagrado. A religião que impunha o casamento ao homem determinava o divórcio em caso de esterilidade, e a substituição do marido por parente em caso de morte oferecia ainda “à família um derradeiro recurso, como meio de escapar à desgraça tão temida da sua extinção”1, a adoção. Não faltam exemplos históricos de filhos adotivos: Moisés, Calígula, Tibério, Nero, Cláudio, César Otaviano, Justiniano. A finalidade religiosa da adoção acabou por ceder lugar à transmissão de títulos nobiliárquicos e direitos sucessórios e, posteriormente, ao consolo das pessoas estéreis, tendo, por isso, quase desaparecido a partir da Idade Média. O instituto voltou a receber atenção com o Código Napoleônico (1804), por interesse pessoal do imperador em adotar um de seus sobrinhos.

Historicamente, desde os tempos antigos, a adoção foi resultado de uma escolha: quem queria adotar escolhia o adotando, e quem tinha filho e não podia mantê-lo escolhia a quem entregá-lo. A natureza consensual da adoção o permitia.

No Brasil, aplicaram-se as Ordenações do Reino, decretos e alvarás, até o advento do Código Civil de 19162, que tinha regramento rigoroso e tímido, pelo temor da introdução de filhos adulterinos e outros espúrios na família legítima. A adoção, no texto original do CC/1916, assumiu feições de caráter assistencial, como meio de salvação do adotando, visando melhorar sua condição econômica e moral, servindo apenas de remédio aos casais estéreis. Após a reforma instituída pela Lei n. 3.133/57, seguida pela Lei da Legitimação Adotiva (Lei n. 4.655, de
2.6.1965) e pelo Código de Menores (Lei n. 6.697, de 10.10.1979), cresceu consideravelmente o número de adoções, em razão da redução do rigorismo, o que veio a atender a função protetiva e assistencial inerente ao instituto. Havia, então, duas modalidades de adoção: a simples (e a civil, do CC/16) e a plena.

A adoção simples era destinada aos maiores de sete anos em situação regular, realizada por escritura pública, de caráter revogável e submetida a efeitos limitados, sem desligamento do adotado de sua família consanguínea e gerando parentesco restrito apenas ao adotante. A plena requeria procedimento judicial, era irrevogável, abrangia os menores de sete anos em situação irregular (abandonados, órfãos, não reconhecidos pelo pai etc.), cancelava o parentesco natural e o registro anterior, alterava o assento de nascimento do adotado substituindo os nomes dos pais e avós, sem a extensão dos efeitos aos parentes do adotante, exceto se concordassem. O advento da Constituição Federal de 1988 brindou a sociedade brasileira com a equiparação de todos os filhos em direitos e qualificações, independentemente da origem da filiação. Instituiu o princípio da Proteção Integral e da Prioridade Absoluta, proteção abrangente a todo o necessário ao desenvolvimento pleno e saudável dos menores até dezoito anos, criando-se oportunidades que potencializem sua capacidade individual em um meio seguro e propício3, como se depreende do texto do art. 227 (com a redação da EC n. 65/10):

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A fim de atender às determinações da nova ordem constitucional, surgiu a Lei n. 8.069/90 (ECA — Estatuto da Criança e do Adolescente), que, revogando o Código de Menores, disciplinou a proteção da criança e do adolescente, estabelecendo a idade limite desta abrangência, e remanescendo sob o regime do CC/16 o universo das pessoas maiores de dezoito anos, com a necessária adequação à norma constitucional. A adoção estatutária tem regras típicas da outrora denominada adoção plena,

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realizando-se por procedimento judicial e estabelecendo parentesco integral com a família adotiva. Em 2009, a lei especial sofreu importantes alterações por meio da Lei n. 12.010 como, por exemplo, (i) a imposição de cadastro; (ii) a impossibilidade de indefinida permanência em abrigo; (iii) a necessidade de preparação psicossocial dos postulantes; (iv) a guarda em programa de acolhimento familiar; (v) o direito do adotado, maior ou menor, de conhecer sua origem biológica. Referida Lei corrige, ainda, omissões no texto original do ECA e determina que haja, em cada comarca, um cadastro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro cadastro de candidatos à condição de adotantes4, somente permitindo a adoção a candidato não cadastrado nos casos especificados no art. 50:

§ 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando:

I — se tratar de pedido de adoção unilateral;

II — for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade;

III — oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei.

§ 14. Nas hipóteses previstas no § 13 deste artigo, o candidato deverá comprovar, no curso do procedimento, que preenche os requisitos necessários à adoção, conforme previsto nesta Lei.

Cuida-se, no art. 50, da adoção unilateral por padrasto/madrasta e da adoção conjunta ou unilateral por parente, tutor ou guardião de criança com idade superior a três anos, comprovados os laços de afetividade e afinidade. Trata-se da adoção intuitu personae.

2. O exercício do direito de escolha em face do ECA

A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos (ECA, art. 43), e isso só ocorre depois que os pretendentes forem considerados habilitados junto ao Juizado da Infância e Juventude, frequentarem os grupos de apoio à adoção, forem avaliados pela equipe técnica interdisciplinar. A sua inclusão no Cadastro somente ocorrerá depois de vencidas estas etapas. Então, adotandos cujas características são compatíveis com as solicitadas pelos pretendentes são indicados pelo Juizado e, havendo aceitação de algum destes, tem início o processo de adoção com a aplicação do estágio de convivência.

A adoção intuitu personae é uma adoção dirigida, consensual, e pode se revelar de duas formas: 1 — o responsável pela criança ou pelo adolescente indica à autoridade judiciária o nome da pessoa que ele considera, respeita e deseja que se torne pai/ mãe de seu filho; 2 — o interessado em se tornar adotante requer a efetivação da medida sobre criança com quem já mantém vínculo de afinidade. Em regra, a pessoa interessada na adoção é padrasto/ madrasta ou padrinho religioso da criança ou amigo de longa data da família natural, tendo já convivido e desenvolvido relação afetiva com a criança. Por óbvio, não se está considerando a pura indicação de estranho, sintoma claro do comércio de crianças. Afinal, não se menospreze a atuação rigorosa da equipe multidisciplinar e do magistrado na avaliação do melhor interesse da criança e do adolescente. Atendendo-se à proteção integral infantojuvenil, sua integridade emocional e psicológica e o respeito ao seu direito à convivência familiar, não se pode ignorar que a manutenção dos laços afetivos já desenvolvidos entre a criança ou o adolescente e o candidato indicado pelos pais (ou o que postula a adoção determinada) é medida que favorecerá a sua integração à nova família.

Por outro lado, a inexistência de vínculo afetivo deve impedir a adoção intuitu personae: “inexistindo vínculo afetivo consolidado e ausentes os requisitos previstos no § 13 do art. 50 do ECA [...] inviável o deferimento da adoção postulada”.

Esta modalidade de adoção, que considera determinada pessoa, não se constitui em atuação me-

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ramente homologatória da vontade dos pais ou dos postulantes pela autoridade judiciária. As exigências legais para a aplicação da excepcionalidade do cadastro (§§ 13 e 14 do art. 50 do ECA), devidamente verificadas na avaliação da equipe e do magistrado, são importantes instrumentos na luta contra o tráfico...

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