Adoção intuitu personae: entre a lei e a realidade

AutorJadir Cirqueira de Souza
Páginas217-235

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Ver Nota1

1. Introdução

A possibilidade da adoção intuitu personae constitui um dos temas bastante controvertidos na legislação, doutrina e na prática judiciária brasileira. De forma simples, os pais biológicos escolhem e doam seus filhos para os futuros pais socioafetivos, que, após período de adaptação informal, ingressam com o referido pedido judicial de adoção, sendo prática recorrente em muitas Varas da Infância e da Juventude, a despeito da proibição legal prevista no art. 50, §13, da Lei
n. 12.010/09, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90). A adoção intuitu personae insere-se na discussão maior entre os fundamentos do Direito Natural e do Direito Positivo. Por ser reminiscência do Direito Natural, possui aceitação popular e é defendida com base no princípio jurídico do melhor interesse da criança e, de outro lado, fundamentados no Direito Positivo, é contestado pelas instituições oficiais do sistema de justiça, pelo fato de que não apresenta segurança jurídica e submete crianças em tenra idade a negociações espúrias e viola a preferência do cadastro de pretendentes à adoção legal.

Para situar o tema, segundo SZNICK, observa-se que a adoção de crianças e adolescentes existe desde o Código de Hamurabi, passa pela Idade média e chega

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até os dias atuais. De acordo com a evolução histórica, sofreu várias modificações no plano legislativo e cultural, sendo que no Brasil encontrou regulamentação inicial nas Ordenações Filipinas até o Império, sendo, atualmente, minudentemente regulamentada pela Lei n. 12.010/09 (Lei nacional da adoção). Assim, as discussões sobre adoção são seculares.2

Apesar das modificações históricas, por todos, ensinam CHAVES E SZNICK, basicamente, o instituto manteve sua razão de existir, desde as primeiras civilizações. Sempre foi palco de interessantes controvérsias, na medida em que o próprio conceito de famílias e/ou entidades familiares, bem como de filiação, sofreram sensíveis mudanças ao longo dos tempos e no Direito Comparado, tais como na Alemanha, Itália e França.3-4Assim, se a natureza jurídica da adoção sempre foi objeto de importantes controvérsias, inclusive com fortes implicações religiosas, morais e sociais, a espécie de adoção denominada pela doutrina e jurisprudência de intuitu personae é bastante questionável – juridicamente ?, sobretudo pela ampla possibilidade de utilização de normas constitucionais de natureza fundamental nos dois sentidos, dado que torna o debate ainda mais interessante.

De um lado, vigora o princípio fundamental de defesa dos superiores interesses das crianças e adolescentes, em quaisquer processos judiciais e administrativos, sendo peça normativa angular do sistema de proteção integral (art. 227, caput da CF) e, de outro lado, também vigora o princípio da legalidade constitucional (art. 5º, II da CF), que reforça o sentimento de segurança social e ao mesmo tempo garante a integral proteção dos direitos das crianças e adolescentes submetidas ao processo de adoção. Enfim, apresenta um dos mais clássicos conflitos entre princípios e regras constitucionais.

Porém, muito por conta das mazelas do sistema de justiça infantojuvenil, que é burocrático, lento e formalista, no plano fático, real e diário, teimosamente e ao arrepio da legislação, principalmente nas camadas mais pobres da população no Brasil, existem milhares e milhares de crianças que vivem em entidades familiares diversas, informalmente, sem qualquer chancela do Poder Judiciário e/ou do próprio Estado, sendo doadas pelos próprios pais para pessoas de confiança,

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comumente denominados de filhos de criação, segundo as pesquisas de SANCHES &VERONESE.5

Aliás, embora fortemente atual, o fato já foi estudado cientificamente nos séculos XVIII e XIX com as adoções por compadrio. Portanto, à margem da atuação estatal, é certo que existe segmento social expressivo de pessoas que vivem em entidades familiares pautadas exclusivamente pelo afeto, conforme VENANCIO, sendo circunstâncias sociais que, no fundo, facilitam a concretização da adoção intuitu personae.6A partir dos pressupostos acima, buscar-se-á responder à seguinte pergunta central: somente é legal a adoção de crianças e adolescentes pelas pessoas inscritas no cadastro de pretendentes, fora das hipóteses do art. 50, §13, da Lei
n. 12.010/09, ou é possível a adoção com base na escolha direta dos pais biológicos em relação aos pais socioafetivos?

Advirta-se, posto que necessário: o objetivo não é estigmatizar entidades familiares, crianças e adolescentes e/ou filiações biológica e socioafetiva, porém estabelecer premissas para ampla discussão acadêmica e apontar argumentos no sentido de que seja mudada a concepção de que os pais possuem o direito absoluto de doar, sobretudo crianças em tenra idade, como se fossem meros objetos, violando-se frontalmente o art. 100, parágrafo único, I, do ECA, que pontifica crianças e adolescentes como titulares de direitos e deveres na ordem jurídica.

O tema é apaixonante e envolve conhecimentos jurídicos, psicológicos e forte apelo comunitário, em flancos opostos, fatos que requerem redobrado cuidado nas afirmações doutrinárias que serão destacadas, pois se sabe que milhares de crianças e adolescentes, ainda que ao arrepio da lei e do próprio Estado, vem sendo cuidadas no Brasil por pessoas abnegadas, esforçadas e com redobrado grau de solidariedade humana.

Enfim, a presente posição técnica no sentido da contrariedade à adoção intuitu personae, de nenhuma forma, desmerece as adoções já realizadas no Brasil, sob o manto da coisa julgada material, sobretudo aquelas com o sucesso almejado, porém, muito mais, alertar para os sérios riscos sociais, médicos, psicológicos

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e jurídicos que envolvem a tradicional prática social, vedada pela legislação em vigor no país, pois milhares de crianças e adolescentes continuam abandonadas em abrigos brasileiros sem nenhuma chance de serem adotadas.

2. A adoção no direito brasileiro

Utilizando-se a emoção dos pais biológicos em relação ao nascimento de um(a) filho(a) nos estabelecimentos hospitalares, também o ato de adotar uma criança sempre foi considerado um gesto sublime, emocionante e carregado de significados sociais. No plano jurídico, a adoção significa a possibilidade de garantir o direito fundamental à convivência familiar e comunitária às crianças e adolescentes destituídas do poder familiar.

Metaforicamente, enquanto os pais biológicos preparam-se para o nascimento dos filhos, as pessoas inscritas nos cadastros de pretendentes à adoção, preparam-se e aguardam – pacientemente ?, a concretização da satisfação do desejo sublime de receber uma criança/adolescente em seus lares e, ao mesmo tempo, garantir uma entidade familiar aos que dela necessitem, sendo tudo organizado e preparado na justiça da infância e da juventude.

Porém, além das deficiências próprias da justiça juvenil, diversos fatores concorrem para as adoções realizadas ao arrepio da lei. Enquanto os pais biológicos sabem que a gestação terminará nos próximos nove meses, excluindo-se os infortúnios (abortos, mortes prematuras etc.), as pessoas regularmente inscritas permanecerão por vários anos nos cadastros judiciais, aguardando a sonhada convocação da Vara da Infância e da Juventude e, infelizmente, muitas jamais conseguirão adotar, fato que, no fundo, levará diversas pessoas sentindo-se preteridas ou abandonadas pelo sistema de justiça, a buscarem o caminho da informalidade com a pesquisa diária sobre crianças abandonadas e/ou com pais interessados em doar, normalmente em bairros pobres, hospitais, creches etc.

Segundo BITTENCOURT, na difícil realidade diária das Varas da Infância e da Juventude, bem como nas Varas cumulativas (existem poucas varas especializadas e com dedicação exclusiva à infância e juventude no Brasil), trabalhar com adoção e seus diversos incidentes, fases, repercussões, não constitui tarefa simples, posto que a demora, no fundo, somente provoca a morte civil de crianças e adolescentes institucionalizadas, condenadas a viver anos e anos em instituições de

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acolhimento, ao passo que o sistema de justiça permanece indiferente à quanti-dade de crianças em abrigos.7No ponto, a demora e a burocracia na busca dos filhos socioafetivos, dentro do sistema de garantia de direitos infantojuvenis, constitui uma das causas objetivas pelas quais as pessoas procuram a informalidade e, consequentemente, a própria adoção intuitu personae, seguramente contínuo produto da falta de informação pública e da maior abnegação funcional das instituições do sistema de justiça, finaliza BITTENCOURT.8Assim, no sentido da Declaração dos Direitos da Criança, de 1989, por meio da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 13 de julho de 1990 e da Lei n. 12.010, de 29 de julho de 2009, o legislador brasileiro trouxe e, ao mesmo tempo, aperfeiçoou diversas regras e princípios relativos à adoção, guarda, tutela, destituição do poder familiar, dentre outros, dentro da denominada Lei da adoção, procurando humanizar a vida de crianças e adolescentes, conforme SOUZA.9Pode-se afirmar, em caráter preliminar, que a legislação brasileira em vigor tratou praticamente dos principais aspectos relativos às ações de adoção, institutos afins e seus incidentes, no plano do direito material e do direito processual, ambos, evidentemente, de natureza civil-constitucional, com clara opção pela adoção legal e a certeza de que o sistema de justiça sofreria uma revolução na defesa dos novos direitos infantojuvenis.

Estabelecidas as premissas inaugurais, fundamentadas a partir da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, a presente abordagem teórica localiza-se no plano do direito processual, cuidando-se de garantir interpretação de acordo com os parâmetros constitucionais...

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