Advocacia itinerante
Autor | Ronaldo dos Santos Costa |
Cargo | Advogado |
Páginas | 244-245 |
ALÉM DO DIREITO
244 REVISTA BONIJURIS I ANO 31 I EDIÇÃO 658 I JUN/JUL 2019
Ronaldo dos Santos Costa aDVogaDo
ADVOCACIA ITINERANTE
– Seu ônibus sai 17h15?
– Não, senhor. Ele sai em 15
minutos. Dá tempo?
– Dá, sim. Até as 17h15 dá
tempo.
A conversa não estava
fluindo muito bem, mas seu
modo calmo e gentil de falar
foi me cativando. “A estrada
é perigosa demais para ir de
ônibus. Tem muito acidente!
E eu a conheço há 67 anos,
só como motorista profissio-
nal. Fique tranquilo, moço,
que farei um desconto mui-
to bom para o senhor.” E foi
assim que conheci o Seu Cle-
mente, taxista de 90 anos de
idade, que me convenceu a
ir e voltar consigo, de táxi,
numa viagem de 480 km. Na
real, me ganhou quando me
chamou de moço. E eu ganhei
o dia.
“Só preciso passar em casa
para pegar uma muda de rou-
pa. É aqui pertinho. E tem re-
queijão e café quente, moço”.
Como resistir a requeijão com
café quente? Passamos em
sua casa e ele logo pôs a mesa,
enquanto separava sua mala.
Também tem queijo e biscoito,
disse, ao tempo em que pega-
va as xícaras. Tomamos café e
ele me ofereceu hospedagem
em sua ampla residência, na
qual mora só, há três anos,
desde que sua esposa faleceu,
após 64 anos de união.
– Quer usar o banheiro,
moço?
– Não, Seu Clemente, acho
que está na hora de irmos. Já
está ficando tarde.
– Tá bem, mas coma mais
uma fatia de requeijão, moço.
– Obrigado, mas está na
hora de irmos.
– Tá bem. Quer levar re-
queijão?
Descobri que ele é viciado
em requeijão. E em café. Con-
venhamos que são dois deli-
ciosos vícios! Partimos para a
estrada e ele foi me contando
tudo sobre sua vida, desde
quando saiu de Salinas (MG),
aos 12 anos de idade, para ten-
tar a vida em Montes Claros,
até o casamento, a chegada
dos cinco filhos e a morte da
companheira de vida. “Não é
fácil, moço, viver 64 anos com
uma pessoa e ela te deixar.
Você se acostuma até com as
brigas. Nunca imaginei que
ela iria antes de mim. Era dez
anos mais velho que ela. E a
casa ficou grande demais para
mim. Meus filhos vêm tomar
café da manhã comigo todos
os dias. Logo cedo. Aí cada um
caça seu rumo. Por isso conti-
nuo no aeroporto. Vou fazer o
que em casa, sozinho, moço?
É muito triste!”
Nem preciso dizer que me
emocionei. E assim seguimos
viagem, ouvindo sua epopeia
deliciosa, enquanto desviá-
vamos de uma ou outra car-
reta, na estrada que era, de
fato, muito perigosa. Seu Cle-
mente trabalhou a vida toda,
desde os 12 anos. Era taxista e
motorista de carreta, simulta-
neamente, afinal, eram cinco
filhos para criar. Hoje todos
possuem famílias constituí-
das, que lhe renderam 21 ne-
NENHUMA AUDIÊNCIA é
igual a outra; nenhuma via-
gem é igual a outra; nenhuma
pessoa é igual a outra; pois
nenhuma vida é igual a ou-
tra. Após três conexões sem
almoçar, comendo batatas fri-
tas e balas de gelatina em for-
mato de aviãozinho, cheguei a
Montes Claros (MG) faminto,
para variar. A fila para a loca-
ção de automóvel era imensa,
e como eu estava bastante
cansado, mal-humorado, não
seria legal pegar a estrada
aquele horário, já que a via-
gem levaria quatro horas.
Estava decidido: pegaria o
ônibus das 16h45. O único do
dia, ressalte-se. O problema
seria cruzar a cidade em 18
minutos. Já que era isso ou
encarar a fila quilométrica da
locadora de veículos e lutar
contra o sono na estrada, cor-
ri para o táxi que encabeçava
a fila e bati a mão na maça-
neta. A porta traseira abriu,
mas não avistei o motorista.
Procurei ao redor e avistei
um senhor de chapéu e ócu-
los, sentado no banco dos ta-
xistas.
– O senhor está na vez?
– Hein, moço?
– O senhor está na vez?
– Se estou na vez?
– Sim, meu senhor. O se-
nhor está na vez?
– Ah, sim. Estou na vez.
– Conseguimos chegar na
rodoviária em 15 minutos?
Rev-Bonijuris_658.indb 244 24/05/2019 11:03:44
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