A advocacy feminista nórdica para a igualdade e anti-discriminação

AutorMarina Grandi Giongo
Páginas113-126
GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITO: ENTRE VIOLÊNCIA E EMANCIPAÇÃO
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questão do aborto no Brasil, os juízes é quem possuem capacidade institucional para
garantir a coerência de valor e salvaguardando uma comunidade que tenha para si a
ideia de responsabilidade como respeito partilhado perante às diversidades.

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A ADVOCACY FEMINISTA NÓRDICA PARA
A IGUALDADE E ANTI-DISCRIMINAÇÃO
Marina Grandi Giongo1
RESUMO: O presente artigo tem o propósito de tecer algumas considerações sobre
o histórico e a atuação das feministas nórdicas, trazendo para a discussão exemplos
emblemáticos de mobilização de mulheres na Islândia e Noruega. No plano teórico,
o trabalho situa-se no perímetro da ciência política e instituições judiciais, valendo-se
de todo o instrumental analítico proporcionado pelos estudos feministas e de gênero.
Na primeira parte serão revisados os conceitos de “judicialização da política/politiza-
ção da justiça” e seus termos correlatos (advocacy, cause lawyering, legal mobilization),
que fundamentam a análise proposta, buscando assim entender a lógica com que
operam as instituições judiciais. O segundo eixo ocupa-se em fazer uma exposição
geral da trajetória do movimento feminista nórdico, que consolidou-se como uma
força social capaz de colocar em curso mudanças estruturais nos campos político e
jurídico para a igualdade de gênero nos países nórdicos. Dentre as reexões possíveis
a partir desse estudo, é a constatação de que o discurso performativo das verdades
jurídicas está longe de ser neutro, mas sim permeado por crenças e ideologias; e o fato
de que essas antigas estruturas de poder mostram-se cada vez mais vulneráveis à ação
de grupos organizados politicamente, seja pelo empoderamento conquistado com a
difusão do conhecimento e descentralização dos saberes, seja com a sublimação de
fronteiras possibilitadas pela internet e redes sociais. Ao insurgir-se contra estruturas
aparentemente imutáveis, o Feminismo confronta o caráter machista e conservador
presente no direito, subvertendo a ordem tradicional de gênero. Assim, as novas ques-
tões – muitas em aberto – trazidas pelo movimento abalam uma série de pressupostos
teóricos que sempre ditaram o que é digno ou não de relevância jurídica.
Palavras-chave: Feminismo nórdico; Advocacy; Politização da justiça; Processos de
dominação; Islândia; Noruega.
ABSTRACT: is article aims to make a few remarks about the history and activism
of the Nordic feminists, bringing to discussion some emblematic examples of women
mobilization in Iceland and Norway. On a theoretical ground, the work is inserted
into the political science and judicial institutions area, taking advantage of all the
analytical tools provided by feminist and gender studies. First, we intend to review
the concepts of “judicialization of politics/ politicization of justice” and its related
¹ Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher (NIEM/UFRGS). Mestra
em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); Especialista
em Gênero e Sexualidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Jurista graduada em
Ciências Jurídicas e Sociais, e Especialista em Direito de Família e Sucessões pela PUCRS, Brasil. E-mail:
marinagiongo@hotmail.com.
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terms (advocacy, cause lawyering, legal mobilization) that support the analysis pro-
posed, trying to understand the logic that operate judicial institutions. e second
part expose a summary of how the feminist movement established itself as a social
force strong enough to put in progress structural changes in the political and juridical
elds for gender equality in the Nordic countries. Among many possible reections
from this study, is the fact that the performative discourse of legal truths is far from
being neutral, but permeated by beliefs and ideologies; and the fact that old power
structures show themselves increasingly vulnerable by the action of politically orga-
nized groups, is the empowerment conquered by the diusion of knowledge and its
decentralization, aorded by the internet and social networks. e insurgency against
seemingly immutable structures, Feminism confronts the sexist and conservative view
of law. Beyond subvert the gender order, the new issues – many still open – brought
by the movement destabilizes a range of theoretical assumptions that dictated what is
worthy or not of juridical relevance.
Keywords: Nordic Feminism; Advocacy; Politicization of justice; Processes of domi-
nation. Iceland; Norway.
1. Introdução
Os países que compõem o Conselho Nórdico – acordo formalizado em
1952 entre Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega, Suécia, e três áreas autônomas
(Ilhas Faroé, Groenlândia e Åland) –, fazem parte de um dos melhores exemplos
de cooperação interparlamentar que surgiram no período pós-guerra. Esse sistema
socialdemocrata de welfare state desenvolveu desde o início um regime de mercado
distinto dos demais países europeus, sendo considerada “uma peculiar fusão de libe-
ralismo e socialismo”. (ESPING-ANDERSEN, 2005, p. 13).
Seus países-membros há anos desfrutam de reputação internacional por te-
rem implementado diretrizes governamentais que combinam excelentes políticas de
bem-estar social em consonância com um rápido crescimento econômico, promo-
vendo ações armativas para a igualdade de gênero no trabalho, mantendo a taxa
de desemprego sob controle e apresentando os maiores índices de desenvolvimento
humano do mundo.
No que tange à igualdade entre homens e mulheres, basta uma breve análise
dos dados de todas as edições do relatório Global Gender Gap para constatar que o
modelo de governabilidade adotado pelos países nórdicos tem gerado resultados im-
pressionantes: são décadas em que aparecem no topo da lista entre as sociedades mais
igualitárias do mundo.
O Global Gender Gap é uma análise de dados obtidos em outras pesquisas,
que procura identicar disparidade de gênero nos países. O levantamento é realizado
através da análise da participação de homens e mulheres em quatro áreas temáticas
consideradas fundamentais: participação econômica, educação, saúde e poder políti-
co. Ao traçar o perl de cada país integrante, o Fórum Econômico Mundial é capaz de
quanticar a magnitude das disparidades globais relativas ao gênero, acompanhando
II CONGRESSO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO
115
o seu progresso ao longo do tempo. (WORLD ECONOMIC FORUM, 2013, p.
3-6, tradução minha).
Em “O Direito das Mulheres: uma introdução à teoria do direito feminista”,
da jurista norueguesa Tove Stang Dahl (1993), é possível vericar a forte tradição
feminista na cultura nórdica e em seus projetos políticos de nação. Nesse contexto,
políticas públicas capazes de reverter desigualdades estruturais oriundas de processos
históricos de dominação, passam necessariamente por instituições judiciais solida-
mente comprometidas com um projeto de país. Isso porque é sabido que políticas
que atendam apenas a projetos de governo, fazem com que avanços conquistados por
categorias mais vulneráveis quem ameaçadas a cada eleição.
A tradição fortemente democrática aliada à sólida atuação do movimen-
to feminista na Noruega, causaram importantes mudanças nas instituições judiciais
daquele país. A articulação política de movimentos de mulheres, iniciativa privada
e sociedade civil junto ao aparato jurídico-estatal, faz deste um ente cuja função é
igualmente determinante para a efetivação e permanência de direitos humanos fun-
damentais.
O objetivo visa tecer algumas considerações sobre o histórico e a atuação
das feministas nórdicas, trazendo alguns exemplos de mobilização de mulheres nesses
países, que no caso da Noruega, articularam o processo de criação de mecanismos
judiciais especícos para garantir a igualdade de gênero. Nesse sentido, pretende-se
conhecer as leis que orientam o funcionamento de instituições judiciais na Noruega à
luz dos conceitos “judicialização da política/politização da justiça”, expressões conhe-
cidas no repertório das ciências jurídicas e sociais, tal como refere Maciel e Koerner
(2002, p. 114).
O artigo está dividido em dois eixos centrais. Em um primeiro momento,
pretende-se revisar os conceitos de “judicialização da política/politização da justiça”
e seus termos correlatos (advocacy, cause lawyering, legal mobilization), bem como
entender a lógica com que operam as instituições judiciais. O segundo eixo traz uma
breve exposição de como o movimento feminista consolidou-se como uma força so-
cial capaz de colocar em curso mudanças estruturais nos campos político e jurídico
para a igualdade de gênero nos países nórdicos. Foram escolhidos os exemplos da
Noruega e Islândia para ilustrar o caminho traçado pela militância feminista nórdica
como exemplo típico de advocacy ou “advocacia de causa” (cause lawyering), em que
ativistas de grupos/movimentos sociais mobilizam-se pela demanda de ampliação ou
de reconhecimento de direitos de parte da população. (MACIEL, 2015, p. 1).

O debate existente na literatura que trata de mobilizações coletivas de direi-
to, bem como as relações entre sociedade civil, política e sistema judicial nas demo-
cracias contemporâneas é bastante extenso. Em artigo onde discorre sobre o processo
que originou a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), Maciel (2011) ilustra como
movimentos sociais se articulam para “politizar” a justiça, lançando luz sobre alguns
conceitos aparentemente semelhantes. Ela sustenta que o debate dentro da Ciência
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Política não aprofundou temas como as motivações e processos complexos que levam
sujeitos a mover-se no interior do campo jurídico, restringindo-se apenas a questões
mais pontuais.
A autora esclarece que, ao menos no que tange à agenda de pesquisa da so-
ciologia jurídica e política norte-americana, apesar de assemelharem-se em relação ao
mesmo objeto – no caso o uso das normas jurídicas e dos tribunais em situações de
conito –, esses estudos adotam perspectivas distintas entre si:
A abordagem centrada nas cortes (top-down approach) focal-
iza o impacto das decisões judiciais sobre a mudança social
almejada pelos grupos e movimentos sociais, privilegian-
do, portanto, o papel do direito na produção de resultados
tangíveis (Rosenberg, 1991). O projeto cause lawyering (“ad-
vocacia de causa”) tem privilegiado a análise do engajamento
de segmentos das elites jurídicas (em particular, advogados
de causa) no interior das redes de ativismo e dos seus impac-
tos na emergência, no desenvolvimento e na globalização
dos movimentos sociais contemporâneos (Sarat e Schein-
gold, 2001, 2006). Enquanto as duas primeiras linhas de
pesquisa restringem o foco da investigação numa dimensão
especíca – os impactos judiciais (top-down approach) ou a
atuação de advogados-ativistas (cause lawyering project) –, a
abordagem baseada na teoria do processo político (political
process-based approaches) analisa o uso do direito e dos tri-
bunais como fenômeno emergente no curso da mobilização
política de grupos e movimentos sociais (McCann, 1991,
1994, 1998, 2006a, 2006b). É a perspectiva que mais tem
procurado incorporar aos estudos sociolegais o repertório
teórico, conceitual e metodológico da sociologia da ação
coletiva. (MACIEL, 2011, p. 98).
O exemplo utilizado pelas autoras, e também adotado no presente estudo,
é a peculiar união de forças feitas por ONG’s e movimentos de mulheres para acessar
as esferas judiciais brasileiras, que é o caso que deu origem à Lei nº 11.340/2006. As
agressões sucessivas somadas às duas tentativas de feminicídio sofridas em 1983 pela
farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes eram adstritas à esfera criminal. Antes
de 2006, a certeza da impunidade de agressores associada a um Código Penal alheio
às relações desiguais de poder entre os gêneros, tornavam inócuas muitas denúncias
de violência doméstica. Esse processo que mudou a tipicação penal e endureceu as
penas para agressores no âmbito das relações intrafamiliares, não só contemplou a luta
pessoal de uma mulher por justiça, como também estendeu seus efeitos para milhares
de mulheres brasileiras, fazendo do processo de Maria da Penha um caso paradigmá-
tico de advocacy feminista. (BARSTED, 2011).
Na visão de Maciel (2011, p. 105), o deslocamento do “quadro interpretati-
vo da violência de gênero como violação dos direitos humanos foi decisivo para trans-
formar o direito em recurso político e simbólico”, uma vez que trouxe para as vias
judiciais a resolução de conitos outrora adstritos à esfera privada. A cultura social-
mente aceita que orientava a “não meter a colher” nos conitos privados, passou a ser
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117
questionada publicamente, ressignicando os sentidos da violência doméstica como
um dos muitos efeitos materiais oriundos de uma estrutura machista e patriarcal. Este
debate, exaustivamente trabalhado no interior da teoria feminista, transcendeu os
limites da academia e uniu forças de/entre mulheres para fazerem-se ouvir.
Após anos de luta, os movimentos nalmente convenceram o legislador de
que essa modalidade de conito não diz respeito apenas a um problema privado de
simples resolução. Mais que um problema de saúde pública, considerando que todos
os dias mulheres procuram os serviços de saúde para tratar os danos decorrentes das
agressões, a violência doméstica congura grave violação de direitos humanos, deven-
do ser vista como um problema de todos – e que deve, portanto, ser solucionado
mediante intervenção do poder público.
Assim como a violência contra mulheres, o feminismo contemporâneo tam-
bém desconhece fronteiras: a internet e as redes sociais deram vez e voz para proble-
mas antes restritos a contextos locais, mas que se unem em prol de uma causa comum.
Por isso se diz que o movimento feminista é um sujeito coletivo e difuso, caracteri-
zado pela auto-organização de mulheres e meninas em múltiplas frentes. (ALVES;
PITANGUY, 1991, p. 8-9).
A mobilização feminista via ações judiciais no Brasil na luta por direitos vol-
tados à eliminação de todas as formas de discriminação e violência contra a mulher,
constituiu, na visão de Barsted (2011, p. 14), “um campo de poder que tem sido deci-
sivo para a manutenção dos direitos conquistados e para a possibilidade de conquista
de novos direitos”. Essa luta por causas comuns, cuja tônica reivindica em um plano
maior o m do patriarcado e da dominação masculina, culminou no Brasil em 2006
com a aprovação da Lei Maria da Penha, descrita como
um caso exemplar de exercício de uma cidadania ativa ex-
pressa no discurso e na atuação das feministas no espaço pú-
blico. Sintetiza, também, a longa interlocução das feministas
com os poderes legislativo e executivo e aponta para a neces-
sidade de investimentos contínuos no diálogo com o poder
judiciário e as demais instituições da justiça. (BARSTED,
2011, p. 14-15).
A advocacy feminista foi a principal responsável por exercer pressão política
nas democracias modernas, gerando uma série de avanços conceituais e legislativos
nas esferas nacional e internacional para os direitos das mulheres. Segundo Barsted
(2011), na esteira das inúmeras conferências das Nações-Unidas ao longo dos anos
1990, os Estados-Membros comprometeram-se a ampliar a participação feminina
em âmbito político e social. Porém, diante da omissão de muitos países em adotar a
perspectiva de gênero em suas políticas, movimentos de mulheres em todo o mundo
denunciaram a ausência de respostas institucionais à altura dos índices de violência,
como forma de cobrar coerência dos países na proteção dos direitos humanos. Em
resposta a essas denúncias, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou em 1993,
através da Resolução 48/104, a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a
Mulher, considerada até hoje um marco na doutrina jurídica internacional. (BARS-
GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITO: ENTRE VIOLÊNCIA E EMANCIPAÇÃO
118
TED, 2011, p. 21).
Nesse contexto de avanços e retrocessos, é possível perceber que por trás da
atuação incansável dos movimentos sociais ao longo dos anos, jaz um campo forte-
mente estruturado para resistir às mudanças que afetam o status quo, protegidas sob
o manto de uma suposta neutralidade jurídica. Essa resistência do campo burocrático
em reconhecer mudanças é a tônica da obra “Espíritos de Estado”, de Pierre Bour-
dieu. Na visão do autor, o Estado – e com ele a concentração do capital jurídico –
possuem o poder misterioso e simbólico de nomear, isto é, de conferir legitimidade a
algo ou alguém. (BOURDIEU, 1996, p. 110).
Ao contrário do que se pensa, esse universo de agentes do Estado investidos
do poder de produzir o discurso performativo das verdades jurídicas, está longe de ser
neutro, e sim permeado por crenças e ideologias. Nesse sentido, deve-se perguntar:
quem são as pessoas por trás das leis? Qual sua idade, seu sexo, seu gênero? O que
pensam enquanto humanos dotados de emoções, crenças, paixões? Campos (2011, p.
7) refere que perguntar “onde estão as mulheres” no processo de elaboração das leis é
um método que tem por objetivo iluminar as implicações de gênero de determinada
prática social ou de uma norma jurídica:
Pergunta-se: as mulheres têm sido desconsideradas pela lei?
Sim? De que modo? Como a omissão pode ser corrigida?
Que diferença isso faria? (BARLETT, 1990, p. 371). Im-
plica também em fazer uma releitura dos textos jurídicos
tradicionais [ou das doutrinas jurídicas] para entender de
que maneira as experiências das mulheres caram marginal-
izadas e como seria possível incorporá-las novamente à lei-
tura (JARAMILLO, 2000). A questão supõe, ainda, que al-
gumas características da lei podem não apenas serem neutras
em termos gerais, mas especicamente masculinas. Assim,
o propósito da pergunta (the woman question) é expor essas
características, o modo como operam e sugerir como podem
ser corrigidas (BARLETT, 1991, p. 371). O seu fundamen-
to é, portanto, revelar os prejuízos, a exclusão das mulheres
e a suposta neutralidade de gênero da lei (BARLETT, 1991,
p. 375 apud CAMPOS, 2011, p. 7-8).
Os vários deslocamentos discursivos provocados pelo Feminismo nas ciên-
cias evidenciaram que não é só o campo jurídico que funciona segundo uma lógica
androcêntrica. Nesse sentido, Bourdieu argumenta que os mecanismos estruturais
responsáveis pela construção hierárquica das diferenças e pela reprodução das relações
de dominação, são regidos por três instâncias principais: a família, a igreja, e a escola.
Maiores detentoras do monopólio da violência simbólica legítima, essas forças agem
orquestradamente com as demais ordens sociais (como Estado, instituições judiciais,
e em outra escala, inclui o jornalismo/mídia, organizações privadas, esporte, entre
outras) sobre as estruturas inconscientes, constituindo um habitus que perpetua e
retroalimenta o poder patriarcal. (BOURDIEU, 2012, p. 1).
As diferenças de origem tais como classe, etnia, gênero, local de moradia,
II CONGRESSO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO
119
condições de acesso à saúde, e toda a gama de direitos previstas nas leis, etc. também
repercutem diretamente na forma de dizer e interpretar o Direito. Bourdieu situa “o
campo jurídico como um lugar de concorrência pelo monopólio de dizer o direito”,
no interior do qual opera o campo judicial, um subcampo onde circulam agentes
investidos de um capital social e técnico. Tal competência lhes outorga a capacidade
reconhecida de interpretar um corpus de textos que representam a visão legítima e
justa do mundo social. (BOURDIEU, 1989, p. 212).
O arcabouço jurídico de determinada sociedade é fruto de uma construção
do conhecimento, proveniente “da adesão a valores comuns (marcada ao nível do
costume, pela presença de sanções espontâneas coletivas, como a reprovação moral)
e da existência de regras e de sanções explícitas e de procedimentos regularizados”.
(BOURDIEU, 1989, p. 244). O próprio sentimento de injustiça ou a capacidade de
perceber algo como injusto não está uniformemente espalhado, e essa percepção vai
depender estritamente da posição ocupada no espaço social. (BOURDIEU, 1989, p.
232).
Seus juízos, portanto, inspiram-se em uma lógica e em valores muito próxi-
mos dos textos e leis que dão base para o julgador (a) interpretar. Nas palavras do au-
tor, “a interpretação opera a historicização da norma” (BOURDIEU, 1989, p. 223),
adaptando as fontes jurídicas a novas circunstâncias que atendem às demandas sociais
de uma sociedade em determinado período histórico. Assim o foi com a questão do
sufrágio universal e com o reconhecimento de direitos para grupos de indivíduos per-
tencentes a categorias tradicionalmente marginalizadas (como por exemplo, mulhe-
res, crianças, negros, indígenas, pessoas com deciência, indivíduos LGBTI’s, etc.).
Uma das principais contribuições da teoria feminista tem sido adotar uma
abordagem crítica que problematize e questione as hierarquias e modelos dominantes,
possibilitando novas formas interseccionais para se pensar o funcionamento das ins-
tituições. Ao questionar estruturas aparentemente imutáveis, o Feminismo confronta
o caráter machista e conservador presente no Direito, ameaçando a ordem de gênero
e todos “os pressupostos teóricos sob os quais têm se sustentado a formulação sexista
sobre o que deve ou não ser considerado um tema de relevância jurídica”. (CAMPOS,
2011, p. 7).

Assim como seus vizinhos Dinamarca e Suécia, o judiciário norueguês é
conhecido por sua vanguarda em direitos humanos, e bastante avançado em termos
de tecnologia, que permite acessar várias fontes do direito online e em inglês. Destina-
das exclusivamente para tratar de demandas ligadas a violações de direitos humanos
fundamentais de igualdade e anti-discriminação, o “e Equality and anti-discrimi-
nation Ombud” é o órgão primeiro ao qual as pessoas devem se dirigir para repor-
tar casos que afrontem esses princípios constitucionais na Noruega. Caso não haja
resolução na primeira instância, os processos sobem ao Tribunal para a Igualdade e
anti-discriminação, esfera competente por apreciar os recursos quando se pretende
modicar decisão ou sentença emitida pelo juízo de primeiro grau.
GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITO: ENTRE VIOLÊNCIA E EMANCIPAÇÃO
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O adjetivo “Ombudsman” é uma palavra de origem sueca que surgiu em
1809 quando o Parlamento da Suécia decidiu ter um representante do povo dentro
do Parlamento, vocábulo utilizado para nomear o “representante do povo/do cida-
dão”. Nos países nórdicos, designa a pessoa investida do cargo de ouvidor-geral, fun-
ção pública criada para canalizar problemas e reclamações da população. Atualmente,
a gura do ombudsman foi adotada em diversos países, e incorporada a setores e re-
gimes políticos para classicar a pessoa que vai ter relação direta com o dirigente da
instituição, seja ela pública ou privada, para garantir um canal de comunicação ecaz
e direto entre o emissor e o receptor de serviços.
No seu sentido político, compete ao ombudsman certicar-se de que os di-
reitos dos cidadãos não estão sendo violados pelo Estado. A missão deste (a) funcio-
nário (a) é assegurar que os direitos de cada indivíduo sejam respeitados, no âmbito
de qualquer tipo de ação judicial, administrativa, burocrática ou de outra natureza.
Em síntese: espera-se de um ombudsman uma atuação que defenda os direitos civis
e, por sua vez, scalize que o governo regente não esteja desrespeitando as liberdades
conferidas constitucionalmente ao povo. O seu alcance é eminentemente político, re-
alizando sugestões e tentando persuadir as autoridades. Em síntese, o (a) ombudsman
pavimenta os caminhos para o empoderamento civil, orientando as pessoas como elas
podem mobilizar-se politicamente valendo-se do uso dos tribunais como instrumento
e estratégia política para a resolução de suas demandas.
Para Koerner e Maciel (2002, p. 116), a judicialização representa “um pro-
cesso objetivo utilizado para defender propostas de mudança na organização do Judi-
ciário ou na cultura jurídica, considerada defasada face às novas necessidades sociais”.
A universalização de direitos considerados fundamentais para a vida de todo ser hu-
mano, é fruto de um longo processo histórico; direitos civis e políticos que no início,
eram previstos apenas para uma pequena parcela da humanidade – via de regra, com-
posta por homens brancos e de estratos sociais elevados.
A luta travada pelo movimento feminista nos países nórdicos visando o reco-
nhecimento das mulheres enquanto sujeitos de direitos é largamente documentada na
literatura estrangeira. Em que pese as transformações sociais propiciadas pelo intenso
ativismo das mulheres naqueles países sejam eventualmente citadas, todo o arcabouço
teórico estruturado pelas intelectuais nórdicas permanece praticamente intocado pe-
los estudos feministas latino-americanos. Mesmo entre as obras feministas clássicas do
eixo França/EUA, muito pouco se sabe, sendo que as escassas referências à produção
intelectual das escandinavas carecem de aprofundamento analítico.
Dentre fatos que zeram história e, portanto, facilmente encontrados na
mídia mainstream, é a paralisação feita pelas mulheres islandesas em 24 de outubro
de 1975. Embora elas tenham sido as primeiras do mundo a ter igualdade de direitos
garantida por lei, boa parte daquela legislação ainda não havia sido impressa efetiva-
mente à cultura e ao cotidiano do povo islandês.
Antes de 1970, poucas mulheres formavam-se em universidades ou inse-
riam-se nas carreiras públicas, e apesar da diculdade em obter melhores índices de
acesso a essas esferas, a Associação Islandesa dos Direitos das Mulheres manteve-se
sempre ativa, promovendo campanhas principalmente para garantir equidade sala-
II CONGRESSO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO
121
rial. A fraca adesão dos empregadores em cumprir a legislação e pagar salários iguais
pelo desempenho das mesmas funções, associada à sobrecarga de trabalho decorrente
da fraca incorporação dos homens à justa divisão de tarefas no âmbito doméstico,
tornava a situação das mulheres na Islândia insustentável. Foi assim que as islandesas
começaram a mobilizar-se combativamente, para propor o reexame de todas as ideias
convencionais sobre o que a sociedade determinava às mulheres fazer ou não fazer,
bem como reivindicar tudo aquilo o que lhes era devido por direito. (KARLSSON,
2000).
A ala feminista radical denominada Redstockings (as “meias-calças verme-
lhas”), fundada por militantes nova-iorquinas em 1969, inspirou mulheres na Islândia
para fundar núcleos alinhados ideologicamente ao grupo originário, também gerando
adeptas na Dinamarca. O caráter considerado provocativo e até mesmo extremo de-
mais para ganhar seguidoras em massa, não impediu a adesão de muitas que se diziam
moderadas. Mesmo as mulheres que nunca haviam comparecido a uma reunião das
Meias-calças Vermelhas apoiavam os métodos do movimento, pois todas elas ansia-
vam por mudanças substanciais. (CHAPMAN, 2004, p. 252).
A articulação de mulheres foi tão bem-sucedida que em 24 de outubro de
1975, elas conseguiram literalmente parar o país: tiraram o dia de folga do trabalho
em massa, e deixaram de lado inclusive os afazeres domésticos. Além de demonstrar o
valor inestimável das mulheres para o funcionamento de uma nação, a paralisação fez
com que a sociedade reetisse sobre a real importância do trabalho doméstico, bem
como o impacto de sua falta nos níveis de bem-estar, inviabilizando a realização de
demais atividades cotidianas.
A ministra da Indústria e do Comércio da Islândia, Ragnheiður Elín Árna-
dóttir, conta que naquele dia estiveram presentes “mulheres de todos os partidos, de
todas as esferas da sociedade. Mulheres trabalhadoras e aquelas que estavam traba-
lhando em casa largaram tudo e foram para as ruas”, sendo que na capital Reykjavík,
a mobilização reuniu de 20 a 25 mil pessoas, o que corresponde a 20% da população
da região da Grande Reykjavík. Ela narra ainda os desdobramentos inusitados que o
“dia da folga feminina” gerou:
O país parou. As vendas de cachorros-quentes subiram,
porque os homens estavam dando cachorro-quente para
as crianças. O jornal da manhã cou ninho, apenas com
artigos sobre esse evento, porque as mulheres na redação
não trabalharam. As crianças caram com os pais na escola,
porque as mulheres não foram trabalhar nas creches. Vamos
celebrar isso em 2015, quando fará 100 anos que mulheres
da Islândia conquistaram o direito de votar, em 1915. Isso é
um grande marco, mas o desenvolvimento foi muito lento.
A primeira mulher foi eleita para o Parlamento em 1922.
Tanto é verdade que, desde 1975, o dia 24 de outubro é considerado um dia
de luta feminista, marcado por manifestações no país. Na edição de 2016 do relatório
Global Gender Gap, a Islândia celebrou o oitavo ano consecutivo de seu reinado como
GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITO: ENTRE VIOLÊNCIA E EMANCIPAÇÃO
122
o melhor e mais igualitário país do planeta para mulheres. Considerando as quatro
variáveis avaliadas pelo estudo (Participação Econômica e Oportunidade; Acesso à
Educação; Saúde e Sobrevivência; e Empoderamento Político), 87% dessa lacuna foi
superada, fato que coloca a Islândia como um dos países que registram os avanços
mais rápidos entre os 144 investigados pelo estudo.
É um desempenho invejável em comparação aos outros países do mundo,
o que não signica dizer que se chegou à igualdade de fato. Na avaliação do Fórum
Econômico Mundial, os principais desaos ainda são aqueles relacionados ao aspecto
econômico. Embora a Islândia detenha o maior índice de participação feminina na
força de trabalho, a desigualdade de salários entre homens e mulheres que executam o
mesmo trabalho persiste, mostrando-se o aspecto mais difícil de equalizar.
Essa falha não é novidade na Islândia, sendo uma das razões que motivou
a grande greve em 1975 e motivo de uma nova manifestação em 2016. De acordo
com os sindicatos do país, estima-se que hoje os salários das mulheres islandesas se-
jam até 17% menores que os dos homens nas mesmas funções, o que signica que
tecnicamente elas trabalham de graça a partir das 14h38, horário em que saíram em
2016 para protestar. A manifestação é organizada anualmente no dia 24 de outubro:
em 2005, 30 anos depois da primeira grande greve, o horário de saída do trabalho
pelas mulheres foi 14h08; na mesma data em 2008, às 14h25. Isso quer dizer que,
aos poucos, a situação está melhorando, mas não rápido o suciente. Em entrevista
ao jornal islandês Rúv, o presidente da Confederação Trabalhista da Islândia, Gyl
Arnbjörnsson, relatou o quão difícil é esperar 50 anos para que uma meta como esta
seja atingida: “É inaceitável dizer que vamos ter corrigido isso em 50 anos. Isso é o
tempo de uma vida inteira”, diz ele.2
Esses fatos mostram que, mesmo contando com uma forte articulação, os
avanços relativos à igualdade de gênero custam a incorporar-se nas sociedades, pois
são necessárias mudanças radicais e a desconstrução de categorias até pouco tempo
atrás consideradas imutáveis. Na visão de Bourdieu, é um processo de “des-histori-
cização das estruturas da divisão sexual e dos princípios de divisão correspondentes”
(BOURDIEU, 2012, p. 1), que se coaduna com o relato exposto pela ministra islan-
desa:
É muito difícil. Não aconteceu da noite para o dia. E ainda
não chegamos lá. Por que os homens não estão falando sobre
os direitos da mulher? Por que esse não é um tópico do inter-
esse deles? Temos que incluir os homens. Foi o que zemos
com licença paternidade: abrimos mão da exclusividade da
casa. Nós, mulheres, temos que fazer isso: para dividir (com
os homens) o que está fora (de casa), temos que dividir o que
está dentro. Não tem sido fácil. (ÁRNADÓTTIR, 2014).
² EXAME. Por equidade salarial, islandesas saem do trabalho às 14h38. Para as islandesas, 24 de outubro é
sinônimo de luta: o dia marca a greve de mulheres que, em 1975, mudou os rumos da igualdade de gênero
no país. Reportagem publicada em 25 de outubro de 2016. Disponível em:
mundo/por-equidade-salarial-islandesas-saem-do-trabalho-as-14h38/>. Acesso em: 28/10/2016.
II CONGRESSO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO
123
Para sanar desigualdades históricas, são necessárias medidas mais profundas,
que façam uma devida reparação simbólica oriunda de processos de opressão. Bas-
tante polêmicas, as políticas armativas dividem opiniões, pois é uma estratégia que
atinge privilégios de outra parte da população. Como visto, o processo que fez da Is-
lândia um dos países mais igualitários do mundo, não foi “do dia para a noite”, e sim,
um projeto de país orientado por décadas de forte pressão de ativistas, reivindicando
mudanças nas leis e o devido cumprimento pelas instituições.
Na Noruega, a advocacy feminista também produziu impactos nas esferas ju-
diciais. A lei mais antiga e especíca que versa sobre igualdade de gênero é a Lei nº 45,
promulgada em 09 de junho de 1978, chamada Lei da Igualdade (Likestillingsloven).
O “e Equality and anti-discrimination Ombud”, assim como os recursos apreciados
pelo Tribunal para a Igualdade e anti-discriminação, faz parte da ampla rede institu-
cional formada para garantir a igualdade entre homens e mulheres.
Tove Stang Dahl ensina que a seção 21 da Lei da Igualdade é resultado
de dois decretos reais (1973 e 1976) e que à época suscitou inúmeras controvérsias
no meio político. Através desse dispositivo, é atribuído ao governo o dever legal de
incluir uma porcentagem de mulheres em todos os cargos e comissões públicas, ca-
racterizando assim um típico exemplo de política armativa, subdividindo-se em duas
categorias: cotas de atribuição e cotas de prioridade.
A principal inovação decorrente dessa série de medidas destinadas à igualda-
de entre homens e mulheres, foi o benefício da licença-paternidade, que surgiu não
apenas para reduzir as diferenças nas médias salariais e nas condições de trabalho,
mas também com o objetivo de tornar mais igualitária a divisão de tarefas no âmbito
doméstico – já que a dupla-jornada sempre consistiu a maior fonte de desgaste para
as mulheres. Os países nórdicos são pioneiros em legislar sobre o tema, sendo que a
Noruega foi a primeira no mundo a garantir juridicamente os direitos da gestante, no
ano de 1892. Lá os pais e as mães têm direito a uma licença remunerada no primeiro
ano de vida do bebê, e para incentivar mais homens a participarem da criação dos -
lhos, dez semanas desta licença são reservadas ao pai. Pela lei, pais e mães noruegueses
podem escolher entre tirar um total de 46 semanas de licença com 100% do salário
ou 56 semanas com 80% do salário.
A política de igualdade da concessão de cotas para licença-paternidade con-
tribuiu para uma nova concepção e valorização do papel do pai na criação dos lhos,
já que ao proporcionar também aos homens a chance de ter uma relação mais forte
com os lhos desde o nascimento, o pai se conscientiza de que sua responsabilidade
vai muito além do seu tradicional papel de “provedor nanceiro”, e diz respeito tam-
bém à educação das crianças e aos cuidados no lar.

A luta de grupos historicamente excluídos ganhou força ao longo dos séculos
XVIII e XIX, e atingiu seu ápice mais precisamente em 10 de Dezembro de 1948,
com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia
Geral das Nações Unidas. A Declaração deu ensejo a uma série de documentos inter-
GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITO: ENTRE VIOLÊNCIA E EMANCIPAÇÃO
124
nacionais relativos aos direitos humanos, sendo que vários Estados fazem referência
direta a esses dispositivos nas suas constituições nacionais. Contudo, por não obrigar
juridicamente as nações a seguir suas recomendações, desde o início foi necessária a
preparação de inúmeros documentos que especicassem os direitos presentes na de-
claração, e assim forçar os Estados a cumpri-la.
Foi nesse contexto que surgiu uma onda de processos judiciais visando
solucionar conitos de jurisdição doméstica, caracterizados pela oposição entre os
conceitos tradicionais de soberania – de um lado, a defesa pela não-intervenção em
matérias cujo domínio é reservado ao Estado; e de outro, a proteção e efetividade
dos direitos humanos previstos nos documentos internacionais. É nesse espaço que
se concentram as principais disputas travadas pelo Movimento Feminista em vários
países do mundo.
As questões que sempre zeram parte de sua agenda – como a violência do-
méstica, os direitos sexuais e reprodutivos, desigualdade salarial, condições de acesso
à educação e ao mercado de trabalho, em suma, todas as formas de discriminação e
violação de direitos fundamentais – têm sido colocadas em pauta por movimentos de
mulheres nas principais vias de negociação política. São décadas de luta que se tradu-
zem em um processo dinâmico e permanente de articulação entre militância, Estado e
sociedade civil para denunciar, avançar e monitorar o que está sendo feito em matéria
de direitos das mulheres e meninas.
Assim como a atuação magníca das brasileiras em várias Conferências das
Nações Unidas – a exemplo da pressão realizada durante a Campanha da Lei Maria
da Penha –, as mulheres nórdicas também se valeram de estratégias políticas para
assegurar que os princípios previstos nos documentos jurídicos fossem incorporados à
cultura cívica de suas respectivas nações. Nesse contexto, destaque para a mobilização
dos principais núcleos de militantes que se fortaleceram a partir dos anos 1970, como
o “Grupp 8” e a “Lund Women’s League” na Suécia; as organizações “Women’s Front”,
“New Feminists” e o grupo “Bread and Roses” na Noruega; as “Feministit/Feministerna
e sua ala radical correspondente “Women’s Union, na Finlândia; e a enérgica mobi-
lização empreendida pelas Redstockings na Islândia e Dinamarca. (BERGMAN, in
BERGQVIST, 1999, p. 104-105).
Longe de exaurir o fascinante debate acerca da tradição feminista e as mu-
lheres que atuaram para a consolidação de seus direitos nos países nórdicos, buscou-
-se acima de tudo lançar um primeiro olhar sobre a advocacy empreendida por esses
movimentos, sublinhando especialmente os avanços obtidos em dimensão estrutural.
Foi constatado pela experiência nórdica que as diferenças de gênero quanto
ao acesso às oportunidades econômicas decorrem na maior parte das vezes das dife-
renças no uso do tempo, uma vez que estas provêm de normas sociais profundamente
sedimentadas no que se refere à responsabilidade pelos cuidados com as crianças e
trabalhos domésticos. Questionar essas normas culturais e os limites existentes entre
público e privado é o primeiro grande passo. Tal postura coloca em evidência o caráter
fundamental de se discutir os signicados de feminilidade e masculinidade e o que se
espera de cada gênero na sociedade contemporânea, fazendo do Direito um campo
privilegiado para o confronto e superação dessas hierarquias.
II CONGRESSO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO
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outubro de 2016. Disponível em:

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