Affectio societatis: um conceito jurídico superado no moderno direito societário pelo conceito de fim social

AutorErasmo Valladão Azevedo - Novaes França E Marcelo Vieira Von Adamek
Páginas108-130

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1. Introdução

A evolução do pensamento jurídico -é esta uma simples constatação - pode distanciar, de maneira pontual (e, às vezes, até mesmo de forma radical), sistemas jurídicos fraternos, descendentes de uma mesma família, sendo que tal afastamento pode ter as mais variadas causas e, portanto, apenas a análise, de caso em caso, é capaz de denunciá-las. Vezes há que a mudança de filiação de sistema no trato de certo instituto jurídico explica-se pela influência mais intensa que certo país, por condicionantes de ordem política, cultural, geográfica ou econômica, experimenta momentaneamente de outra jurisdição de diversa filiação. Pode, ainda, tal fenômeno resultar de fatores exclusivamente internos do país, a impor a evolução da jurisprudência em certo sentido, distanciando o seu direito interno dos demais da mesma família, nos quais não se tenha imposto a força da mesma realidade social. Ou, ainda, o distanciamento pode ser conseqüência do legítimo interesse do legislador interno em pautar-se por experiências vitoriosas ocorridas alhures, trilhando, assim, caminho já testado. No entanto, vezes também há em que o distanciamento pontual de construções de sistemas jurídicos pertencentes a uma mesma família deve ser, em grande parte, creditado à ausência de sadio e desejável exercício de crítica e reflexão em torno das regras legais vigentes; à reverência acrítica a determinadas construções antigas que, se por ocasião de sua formulação se revelavam adequadas e auspiciosas, com a evolução da ciência universal acabaram por se tornar ultrapassadas - sem que tal particularidade signifique que se deva, pura e simplesmente, abandonar ou ignorar o seu estudo, muito pelo contrário;1 o que não se deve, apenas,

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é deixar de analisá-las criticamente, recebendo-as como dogma ou verdade perfeita e acabada.

Em qualquer caso, ademais, a correta compreensão dos institutos de direito vigente não pode se esgotar na análise isolada de textos legais. Pressupõe mais; pressupõe a sua completa apreciação no contexto normativo em que se insere, a fim de que possa, então, e somente então, ser conhecido em sua inteireza. O estudo das questões de direito demanda, sempre, a interpretação sistemática, interpretação essa que, expandindo-se pelo plano espacial (ou territorial), compreende o direito comparado (o qual, nas palavras de René Da-vid, emérito comparatista, constituiria a interpretação sistemática levada às últimas conseqüências). Essa mesma análise sistemática, transposta para o plano temporal, abrange o estudo da história do direito.

No entanto, assim como o estudo do direito comparado e a transposição de soluções estrangeiras para o direito nacional devem necessariamente ser feitas cum grano salis2 - eis que normalmente idealiza-das para ordens jurídicas diversas -, pela mesma razão, a utilização de soluções forjadas noutros tempos demanda igual ou maior cautela por parte do exegeta, porquanto a aplicação linear e acrítica, na atua-lidade, de lições e de institutos elaborados em tempos remotos, certamente conduzirá a equívocos ou, pelo menos, a construções pouco esclarecedoras.

Em relação ao tema objeto deste estudo (declaradamente) provocativo - que, longe de ter a pretensão de apresentar construções definitivas, pretende suscitar a controvérsia e convidar os estudiosos à reflexão -, o que se buscará demonstrar é que a aplicação acrítica e abusada da noção de affectio societatis, ainda em voga no direito societário brasileiro, é, em larga medida, incompatível com a evolução da ciência jurídica universal (o que se ilustra pela lembrança da inapelável condenação da teoria da vontade do negócio jurídico, a partir de meados do séc. XIX, e pela elaboração da teoria do contrato plurilateral). Em boa parte, a insistência na alusão à affectio societatis aparenta ser manifestação de certo imobilismo intelectual, que presta reverência a conceito de origem romana (em que pese o iluminado comando da "Lei da Boa Razão", de 18.8.1769, regra de direito reinol que, ainda hoje, conviria ser relida). Vejamos, pois.

2. Origem da expressão no direito romano

A origem da expressão affectio societatis encontra-se no direito romano e, de modo mais específico, em famoso texto de Ulpiano (Dig., L. 17, Tit. II, 31).3 Nesta

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fonte, porém, a affectio societatis (affectione societatis) não aparece como elemento próprio e exclusivo da sociedade, mas como um traço distintivo da sociedade em relação à comunhão ou condomínio. O que sucedeu, porém, segundo explica Fábio Konder Comparato, foi que "uma certa doutrina resolveu, posteriormente, tomá-lo por diferença específica do contrato de sociedade, perdendo-se em falsos caminhos que não deixaram de ser denunciados pelos autores contemporâneos: a affectio societatis confundir-se-ia com os demais elementos do contrato social, vale dizer, a contribuição dos sócios com esforços ou recursos para a consecução de determinado resultado, visando à partilha dos lucros ou perdas. Não se pode, porém, tomar a expressão, no contexto da sentença de Ul-piano, por mais do que ela aí significa. Se a affectio societatis é apresentada como elemento distintivo em relação ao estado de comunhão, nem por isso se pode daí inferir que ela só existiria, enquanto affectio, no contrato de sociedade. Ao contrário, as fontes empregam o mesmo vocábulo, tanto em matéria de matrimônio quanto de posse. Como explicou Arangio-Ruiz, a affec-tio é um consensus, mas não instantâneo e sim prolongado; um estado de ânimo con-tinuativo, a perseverança no mesmo acordo de vontades".4

Frise-se, pois, que, na origem, a affectio societatis não surgiu como pretenso elemento constitutivo ou genético do contrato de sociedade, mas somente como traço (e, diríamos nós, como um dos possíveis traços) a diferenciar a sociedade da comunhão, em especial do consortio inter fratres - a mais antiga forma de comunhão acidental ou involuntária entre herdeiros (a comunhão universal de bens entre os filii familias, que se formava com a morte do pater familias).5 Isso não significava, porém, que a affectio, o estado de ânimo con-tinuativo, não pudesse existir noutros institutos, tal como efetivamente existia e ainda hoje existe. Tanto assim que, já no direito romano, ao tratar da posse e dos seus elementos (e, em especial, do elemento subje-tivo do animus), aludia-se a affectio tenen-di, como sendo a intenção de deter a coisa. Por outro lado, em matéria de casamento, também era feita referência à affectio ma-ritalis, para evidenciar a particularidade de que o consentimento para a constituição do casamento não era apenas aquele inicial, mas o que também se projetava no tempo e determinava a sua permanência.6

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3. "Affectio societatis" em direito comparado e no direito brasileiro

A noção de affectio societatis e a sua previsão como elemento constitutivo e característico do contrato de sociedade são, praticamente, ignoradas nos sistemas jurídicos mais modernos. Desconsideradas as invocações meramente secundárias e sem qualquer conteúdo instrumental, o conceito de affectio societatis é desprezado pelas obras de direito societário mais conhecidas da Itália,7 Espanha8 ou Portugal.9 É com-pletamente abandonada na Alemanha10 e na Suíça,11 onde, evidentemente, as socie-dades são conhecidas e, à evidência, não deixam de existir - fato que por si só revela que a affectio societatis não é e não pode ser elemento constitutivo ou característico do contrato de sociedade - e onde, pelo contrário, se adota o conceito mais preciso de "fim comum" (Gemeinsamer Zweck),12 adiante mencionado. É tão-somente no direito francês que ainda se encontram maiores referências ao instituto, por força da jurisprudência, mas mesmo lá os autores salientam a sua ambigüidade,13 propugnando por uma teoria objetiva.14 Ademais, o conceito é lá empregado, com mais freqüência, para distinguir a sociedade de outras figuras (tarefa essa para a qual a affectio societatis também não dá uma resposta definitiva, como o reconhecem os doutri-nadores franceses), e não com a abrangên-cia e amplitude de autêntica panacéia com que amiúde desponta em julgados de nossos tribunais.

Ainda assim, no direito brasileiro, a noção de affectio societatis continua a ecoar na doutrina, que ora lhe reconhece o atributo de elemento constitutivo do contrato de sociedade, distinto do consentimento

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exigido para a celebração de qualquer contrato;15 ora a ela faz referência para diferenciar a sociedade de outros institutos; ora a ela se refere como elemento definidor da extensão dos deveres dos sócios e dado legitimador da transposição de soluções das sociedades de pessoas para as sociedades ditas de capitais. O quadro torna-se ainda mais nefasto quando se constata que a noção de affectio societatis é manejada pelos tribunais, sem qualquer sistematicidade e carregada de um incompreensível empirismo, para justificar soluções as mais díspares possíveis entre si, notadamente em matéria de dissolução parcial de sociedade lato sensu (retirada, exclusão e dissolução parcial em sentido estrito), com total alheamento de outros temas fundamentais envolvidos na questão, como os de juízo de proporcionalidade e de análise de imputação de responsabilidade pela quebra de eventuais deveres de sócio.

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