Afirmação de gênero na tutela da pessoa com deficiência: um tabu a ser quebrado
Autor | Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida |
Ocupação do Autor | Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)/Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) |
Páginas | 117-134 |
AFIRMAÇÃO DE GÊNERO
NA TUTELA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA:
UM TABU A SER QUEBRADO1
Heloisa Helena Barboza
Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Direito pela UERJ e em Ciências pela ENSP/
FIOCRUZ. Procuradora de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (aposentada). Advogada.
Vitor Almeida
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor Adjunto de Direito Civil da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(ITR/UFRRJ). Professor dos cursos de especialização do CEPED-UERJ, PUC-Rio e
EMERJ. Advogado.
Negar o direito a uma vida sexual implica em negar a natureza humana
dessa pessoa e, consequentemente, todos os seus demais direitos.
Viver a sexualidade é tão fundamental quanto o direito à vida
(BRASIL. Direitos sexuais e reprodutivos na integralidade da atenção à saúde de
pessoas com deciência. Brasília: Ministério da Saúde, 2009, p. 14).
Sumário: 1. Introdução. 2. Armação de gênero: considerações indispensáveis. 3. Pessoa com
deciência, gênero e sexualidade. 4. Reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das
pessoas com deciência: um grande desao. 5. Conclusão. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015) contém dispositivos que asseguram
a plena capacidade civil das pessoas com deficiência para exercer seus direitos sexuais
e reprodutivos, que não podem ser atingidos pela curatela. Tais disposições legais,
possivelmente preteridas por muitos, certamente causam espanto, se não rejeição por
boa parte da população. Tais direitos são a todos assegurados pela Constituição da Re-
pública, e de modo expresso os reprodutivos, e não haveria razão para sua reafirmação,
salvo não fossem francamente reconhecidos. A deficiência física e sensorial gera para o
1.
* O presente trabalho foi desenvolvido no âmbito do projeto interdisciplinar e interinstitucional (UFRJ, UFF, UERJ
e FIOCRZ) denominado “Uma perspectiva de justiça mais inclusiva: aplicação do enfoque dos funcionamentos
à saúde, à educação, à tecnologia e aos direitos de pessoas com deficiências”, aprovado pelo Programa de Apoio à
Pós-Graduação e à Pesquisa Científica e Tecnológica em Tecnologia Assistiva no Brasil (PGPTA), objeto do Edital
“Tecnologia Assistiva no Brasil e Estudos sobre Deficiência (PGPTA) N° 59/2014”, cujos autores deste artigo
atuam, respectivamente, como Coordenadora Associada da Instituição UERJ e pesquisador vinculado ao projeto
em andamento.
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HELOISA HELENA BARBOZA E VITOR ALMEIDA
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senso comum uma presunção de assexualidade, e a manifestação da sexualidade no caso
de deficiência mental ou intelectual não raro está associada à imoralidade ou mesmo à
perversão ou depravação.
Na verdade, a sexualidade em qualquer de suas dimensões, como a reprodutiva, é
tema tradicionalmente escasso no Direito Privado, e apenas em fins do século passado
iniciaram-se no Brasil os debates sobre sexualidade, mais precisamente sobre questões
de gênero, trazidas à baila pelas demandas jurídicas da população LGBTI (lésbicas, gays,
bissexuais, transexuais/travestis e intersex). A própria noção de gênero pode-se dizer
é juridicamente “nova”, quando considerada como elemento integrante da identidade
vinculado ao sexo biológico. O mesmo se constata em relação aos direitos reprodutivos,
garantidos constitucionalmente sob a forma de direito ao planejamento familiar, os
quais somente tiveram sua regulamentação em 1996, através da Lei 9.263. O tema, não
obstante suas importantes repercussões para o direito das famílias, não tem merecido
atenção maior da doutrina civilista.
Diante deste cenário, pode-se verificar o grau de dificuldade existente para se conferir
efetividade aos direitos sexuais e reprodutivos das pessoas com deficiência, quando se
busca sua plena inclusão social, em condições de igualdade. Crescem os entraves quando
se adentra ao mundo LGBTI, notadamente nas complexas questões de afirmação de gêne-
ro, que potencializam a discriminação sofrida por essas pessoas, a qual atinge dimensões
inimagináveis quando se somam circunstâncias de cor, raça, religião e condição social.
Lembre-se que entre as preocupações expressas da Convenção Internacional sobre
Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova
York, em 30 de março de 2007,2 se encontram as difíceis situações enfrentadas por pessoas
com deficiência que estão sujeitas a formas múltiplas ou agravadas de discriminação
por causa de sexo, além do reconhecimento, igualmente expresso, de que mulheres e
meninas com deficiência estão frequentemente expostas a maiores riscos, tanto no lar
como fora dele, de sofrer violência, lesões ou abuso, descaso ou tratamento negligente,
maus-tratos ou exploração (Preâmbulo, p e q).
Ao aderir à Convenção, o Brasil comprometeu-se a adotar medidas imediatas,
efetivas e apropriadas para combater estereótipos, preconceitos e práticas nocivas em
relação às pessoas com deficiência, inclusive aqueles relacionados a sexo (art. 8, 1, b).
Trata-se de questão que está a exigir atenção detida. Em primeiro lugar, em razão das
notórias dificuldades que a matéria apresenta, desde a constante imprecisão terminológica
que, não raro, dificulta a compreensão dos problemas e demandas das pessoas que não
se alinham ao sistema heteronormativo. Em segundo e de igual ou maior relevância, a
pouca ou menor importância que se atribui ao debate jurídico da sexualidade em sua
ampla abrangência, fato que se agrava quando se envolvem pessoas com deficiência.
O presente trabalho, realizado a partir de pesquisa bibliográfica, procura dentro
de seus estreitos limites analisar alguns aspectos necessários à melhor compreensão do
problema, e assim contribuir para no debate e construção das soluções já reclamadas,
2. A referida Convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho
de 2008, e internalizada como emenda constitucional por força do Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009.
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