Hermenêutica afirmativa e horizontes ontológicos da discriminação positiva (Re)pensando o conceito das ações afirmativas

AutorLuiz Alexandre Cruz Ferreira; Alexandre Mendes Cruz Ferreira
Páginas1-23

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1. Considerações preliminares

Para Joaquim B. Barbosa Gomes (2001) as ações afirmativas (ou discriminações positivas) podem ser definidas como políticas públicas ou privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de etnia e de compleição física. 12Referido conceito se harmoniza com quase toda a doutrina nacional que se ocupa do assunto (cf. Piovesan, 1998; Rocha, 1985; entre outros).

À primeira vista, entretanto, este conceito limita o instituto da discriminação positiva e traz à tona uma série de indagações que merecem ser objeto de uma reflexão mais aprofundada.

Da análise conceitual indicada fica evidenciado o conteúdo teleológico "igualador" das políticas públicas afirmativas. Esta confessada finalidade já desenha uma séria perplexidade, à luz do princípio do pluralismo, previsto logo no preâmbulo da nossa Constituição Federal. Ora, uma sociedade que faz firme opção pelo pluralismo não pode pretender "igualar" as pessoas. Ao contrário, deve buscar, com todo vigor, assegurar dignidade às minorias. Além disto, a mais consistente fundamentação axiológica da ética afirma a necessidade do "respeito às diferenças de toda ordem, como expressão da riqueza humana e social" (Boff, 2004:48) a partir do qual deve ser constituída uma sociedade democrática, pluralista, multiétnica e plurireligiosa.

Em uma outra vertente, percebe-se que emerge do conceito tradicionalmente usado uma preocupação em garantir a ascensão social de determinados grupos desprotegidos socialmente. É certo que algumas políticas de discriminação positiva devem buscar, com efeito, garantir mecanismos de melhoria das condições econômicas de parcela da população. Contudo, o instituto não pode se restringir unicamente à esta finalidade. Existem alguns grupos cuja proteção meramente econômica não seria sequer relevante3 para promovê-los socialmente. Aliás, a exasperação do conteúdo econômico das medidas discriminatórias corresponde a uma adequação indevi- Page 2 da (às vezes irrefletida) ao metadiscurso neo-liberal que, consoante se demonstrará, representa a causa primeira da exclusão social que o instituto, por princípio, tenciona combater.

De outro lado, a adoção do critério meramente quantitativo (minorias) para a determinação dos destinatários das ações afirmativas não pode ser aceito sem reservas. É fato que em al- guns casos os grupos carentes de proteção não constituem propriamente uma minoria, como pode ser observado, no Brasil, com relação aos miseráveis, que constituem a grande maioria da nação, ou os analfabetos, que correspondem a 60% da população brasileira (Boff, 2004:31). Resulta, portanto, absolutamente insuficiente o aspecto conceitual quantitativo para a definição das possibilidades das medidas de discriminação positiva.

A vinculação das ações afirmativas a "raça, gênero, idade, etnia e compleição física" também não revela o problema em sua inteireza. Referidos critérios excluem da proteção um contingente incalculável de pessoas inseridas em contexto social desfavorável que não se encaixam na diagramação invocada e que, no entanto, também devem ser consideradas desprotegidas social- mente e, portanto, objeto de políticas afirmativas. Tomem-se como exemplos os trabalhadores rurais sem terra, os urbanos sem teto, e tantos outros.

Uma outra questão não respondida até o momento pelos estudiosos do assunto prende-se à explícita impossibilidade de estabelecimento de critérios invariáveis para a determinação do que seja uma minoria desprotegida socialmente, situação que poderia efetivamente constituir-se numa exasperação da injustiça social. É perfeitamente possível supor, por exemplo, que existam alguns poucos negros de classe média alta em melhores condições que muitos brancos pobres numa disputa por uma vaga em uma instituição de ensino superior. O sistema de cotas, ao menos do ponto de vista do branco pobre mencionado, que também é um excluído, se revelaria profundamente injusto.

Além disto, o que se observa é que tem sido constantemente posta em questão a dívida social da nação com relação aos povos negros como medida justificadora das ações afirmativas, notadamente o estabelecimento de cotas. Sem dúvida esta dívida social existe e é latente. Ocorre que ela não atinge somente aos negros, já que se estende a um universo maior de pessoas marginalizadas e excluídas pelo modelo econômico adotado na sociedade. A perversa e injusta distribuição da propriedade rural, por exemplo, representa igualmente uma dívida social para com os trabalhadores historicamente oprimidos pelo processo de concentração da riqueza.

Alguns aspectos práticos das ações afirmativas, tais quais são consideradas hoje em dia, poderiam conduzir a sérias antinomias no precário sistema de proteção social. Refere-se aqui à possibilidade, até certo ponto comum, de determinadas pessoas pertencerem a duas ou mais situações de marginalização social. Seria o caso, por exemplo, de uma pessoa negra também ser homossexual. A condição de negro enseja demandas sociais específicas, muitas vezes ausentes na condição de homossexual e vive-versa. Pretender a homogeneização de soluções afirmativas, nestes casos, poderia conduzir a injustiças ou, no mínimo, revelar-se insuficiente para o enfrentamento do problema.

Pode ocorrer, outrossim, que uma pessoa apresente-se como integrante de um grupo desprotegido socialmente mas não se ajuste ao modelo de proteção fulcrado objetivamente na necessidade. Seria exemplo desta hipótese um preso com boa condição econômica. Quase todas as medidas costumeiramente adotadas para a promoção do reeducando assentam-se no estabelecimento de garantias econômicas visando a impedir a reincidência delituosa. Estas medidas, entretanto, restariam insuficientes e até certo ponto injustas quando relacionadas ao recluso com boa situação financeira. Em razão do exposto, não se concebe a linearidade absoluta como sendo pressuposto inarredável para as medidas de discriminação positiva.

A doutrina alienígena parece ostentar uma visão mais abrangente das medidas de discriminação positiva. Fala-se até mesmo num "Direito Antidiscriminatório" (Unzueta, 1997), assen- Page 3 tado, entretanto, em um caráter grupal4. Ocorre que, neste cenário, ficaria excluída a possibili- dade de utilização das medidas de discriminação positiva ao indivíduo que não se encaixe em um modelo previamente estabelecido, situação que pode redundar em grande injustiça e limitar as possibilidades das medidas protetivas.

A síntese até aqui realizada parece demonstrar a necessidade de uma visão mais sistemática e menos fragmentária das medidas de discriminação positiva com o fito de determinar uma ampliação de seus horizontes de efetivação, finalidade que deve ser buscada vigorosamente por todos aqueles que fazem do Direito sua profissão e da justiça a sua opção existencial. A tese da ampliação dos horizontes do conceito tradicionalmente empregado traz como corolário lógico a inclusão de pessoas em novos cenários de implementação de medidas antidiscriminatórias. É exatamente este o objetivo do presente estudo.

2. Um novo conceito de discriminação positiva

O problema da discriminação positiva é um dos mais relevantes e complexos da atualidade e merece cuidadosa análise. 5Pensamos que a solução para as indagações apontadas deva resultar de um diálogo com a crítica que sobretudo Adorno faz do sistema de homogeneização capita- lista, bem como da idéia de espaço público desenvolvida por Hannah Arendt. Estes pensadores talvez possam nos indicar pistas seguras no sentido da exata compreensão do instituto. Mas essencialmente será em Heidegger que se buscará o referencial teórico capaz de determinar as conclusões que se pretende apontar.

A finalidade é indicar a incorreção das teorias que pretendem limitar o alcance de medidas de discriminação positiva e, ao mesmo tempo, explicitar possibilidades hermenêuticas para a afirmação do discurso de indivíduos inseridos num contexto social desfavorável.

Em primeiro lugar, deve ser justificada a opção realizada pelo termo discriminação positiva em detrimento de ação afirmativa6. Entendemos, à exemplo de Paulo José Freire Teotônio (2004), que a utilização da expressão "ação" deve ser evitada na nossa tradição jurídica pela possibilidade de acentuação do caráter instrumental do instituto em prejuízo de sua natureza substancial, melhor delineada na idéia de discriminação positiva.

Para nós, o instituto da discriminação positiva deve ser considerado como o conjunto de medidas públicas ou privadas de atendimento a demandas específicas de pessoas individual- mente consideradas, mas inseridas em um contexto social desfavorável, potencialmente capazes de promover alguma mudança social. Esta assertiva já apresenta a totalidade das armas que serão utilizadas na batalha.

O primeiro aspecto do conceito sugerido é a reconstrução substancial da individualidade. O destinatário de qualquer medida antidiscriminatória deve ser o indivíduo inserido dentro de um grupo social e não o próprio grupo em si. A vinculação do problema da discriminação positiva a um determinado grupo social, para nós, pode esvaziar o instituto de sua...

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