A agenda da fao na áfrica: a melhor estratégia para o desenvolvimento?

AutorDaniela Maia Cunha - Elga Lessa de Almeida
CargoUFBA
Páginas427-460
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, n. 245, p. 427-460, set./dez., 2018 | ISSN 2447-861X
A AGENDA DA FAO NA ÁFRICA: A MELHOR ESTRATÉGIA PARA O
DESENVOLVIMENTO?
The FAO agenda for Africa: the best developmental strategy?
Daniela Maia Cunha (UFBA)
Elga Lessa de Almeida (UFBA)
Informações do artigo
Recebido em 16/04/2018
Aceito em 15/05/2018
doi>: 10.25247/2447-861X.2018.n245.p395-428
Resumo
O continente africano enfrenta profundas crises econômicas e
sociais há décadas. Para alguns, as causas estão na falta de
planejamento econômico por parte dos chefes de Estado, na
corrupção, nos desastres naturais, em geral, fatores endógenos.
para outros, as causas remetem a séculos passados,
decorrentes dos processos de colonização e exploração da mão
de obra negra e matérias-primas. Nas últimas décadas, o
processo de globalização e seu viés neoliberal também ocupou
papel fundamental neste cenário. O pós-segunda guerra
mundial é caracterizado por mudanças profundas na arquitetura
internacional, na qual as Organizações Internacionais passam a
ocupar um papel de destaque. Dentre as instituições que se
voltaram para o continente, a Organização das Nações Unidas
para Alimentação e Agricultura (FAO) configurou-se como um
espaço de diálogo entre as demandas dos países africanos e os
ditames do contexto internacional e suas estratégias de
desenvolvimento. Figurando como uma importante fonte de
análise, os relatórios produzidos pela FAO, frutos das
conferências realizadas a cada dois anos pela organização no
continente, revelam como o discurso e a agenda da organização
voltada para o continente é influenciada por um contexto
político-econômico controlado pelas instituições de Bretton
Woods. No presente artigo, apresentaremos a agenda da FAO
para o continente africano em articulação com o cenário
internacional, buscando evidenciar a adequação dessa agenda
aos objetivos fundantes dessa organização.
Palabras-chave: FAO. Insegurança Alimentar. África.
Agenda.
Abstract
The African continent has been facing deep economic and social
crises for decades. For some, the causes are the lack of economic
planning by chiefs of state, corruption, natural disasters, and
generally domestic factors. For others, the causes refer to past
centuries, arising from the processes of colonization and
exploitation of black labor and raw materials. In the last decades,
the process of globalization and its neoliberal bias have also
played a fundamental role in this context. The post-Second
World War is characterized by profound changes in international
architecture, in which International Organizations come to play
a prominent role. Among the institutions that have focused on
the continent, the United Nations Food and Agriculture
Organization (FAO) has established itself as a space for dialogue
between the demands of African countries and the dictates of
the international context and its development strategies. As an
important source of analysis, the reports produced by FAO,
which are the product of conferences organized every two years
by the organization on the continent, reveal how the
organization's discourse and agenda for Africa is influenced by a
political-economic context controlled by the Bretton Woods
institutions. In this article, we will present the FA O agenda for
African continent in articulation with the international context,
seeking to demonstrate the adequacy of this agenda to the main
objectives of this organization.
Keywords: FAO; food insecurity; Africa; agenda.
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, n. 245, p. 427-460, set./dez., 2018 | ISSN 2447-861X
428
A agenda da FAO na África: a melhor estratégia para o desenvolvimento? | Daniela Maia Cunha e Elga Lessa deAlmeida
Introdução
Ao longo da década de 1980, as imagens mundialmente veiculadas nas mídias
acabaram por associar o continente africano, sobretudo a África Subsaariana, com a fome
em sua forma mais extrema. O contexto em que essas imagens eram reproduzidas remetia a
um conjunto de fatores domésticos de muitos países africanos, que culminou com a pobreza
de suas populações e a falta de condições do Estado para realizar investimentos na economia
e em políticas de bem-estar. Nota-se, no entanto, que essas associações deixavam d e lado a
compreensão sobre o lugar que a África passara a ocupar no sistema internacional, desde os
processos de libertação do colonialismo.
Disputada como zona de influência das potências da Guerra Fria e, ao mesmo tempo,
ainda sob a dependência econômica de suas antigas metrópoles, as forças internas dos países
recém-independentes, organizadas a partir da divisão ideológica do período, passaram a
disputar o poder do aparato estatal. Em sociedades cujas estruturas sociais foram, em grande
parte, d esarticuladas pelos c olonizadores, a reorganização desses países foi, desde então,
ocorrendo de for ma a aprofundar a pobreza e, sobretudo, a posição assimétrica de suas
economias dentro de um sistema que tinha co mo característica a desvantagem dos países
em desenvolvimento nas condições de troca do comércio internacional.
Nesse contexto, muitas organizações internacionais começaram a atuar no continente com
o objetivo de promover o desenvolvimento nos diversos setores da esfera social e econômica,
amplamente desestruturados pela guerra de independência e, posteriormente, pela guerra
civil que se seguiu em muitos desses países. Uma dessas organizações foi a Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura FAO, cuja preocupação se centrava,
basicamente, no combate à fome e sua relação com a produção agrícola.
Ao considerar a importância da presença da FAO, o presente trabalho tem por
objetivo apresentar a agenda da organização para a África no período da década de 1970 ao
início dos anos 2000, ana lisando as conexões com as agendas de outras organizações do
sistema internacional que tiveram papel fundamental nessa definição. Para tanto, a análise
dos relatórios das conferências da FAO para a África foi central para a compreensão do
discurso apregoado pela organização e das formas d e resistência por parte das lideranças
africanas, que, muitas vezes, discordavam das estratégias dessas organizações para a
promoção do desenvolvimento.
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, n. 245, p. 427-460, set./dez., 2018 | ISSN 2447-861X
429
A agenda da FAO na África: a melhor estratégia para o desenvolvimento? | Daniela Maia Cunha e Elga Lessa deAlmeida
A Organização das Naç ões Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a questão da
(in)segurança alimentar
Após a primeira guerra mundial, o alimento adquiriu uma nova expressão no sistema
internacional. Em decorrência das experiências vividas durante a guerra, especialmente nos
países eur opeus, os governos passaram a olhar para o alimento como um elemento
estratégico, tendo em vista que a nação não produtora do seu próprio alimento estaria em
visível desvantagem. A autossuficiência na produção d e alimentos passou, então, a ser vista
como uma política de segurança nacional, na qual a formação de estoques estratégicos
seria uma premissa fundamental de um país soberano (MALUF; MENEZES, 2000, p. 1).
Segundo Harriet Friedmann, o sistema internacional viveu duas ordens
internacionais de alimentos e nos encontramos na terceira delas Por ordem internacional
de alimentos a autora entende como um conjunto estável de políticas estatais
complementares, cuja coordenação implícita cria preços específicos em relação a outros
preços, um específico padrão de especialização que, por sua vez, resulta em padrões de
consumo e comércio FRIEDMANN  p  A primeira ordem internacional de
alimentos foi entre os anos 1870 e 1930, sendo o cenário caracterizado por um mercado
relativamente livre, conduzido pelo sistema mone tário baseado no padrão ouro, moldado
pela teoria d as vantagens comparativas tanto na produção quanto na Divisão Internacional
do Trabalho (DIT) e pela ascensão dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Argentina como
os principais produtores de trigo, enquanto antigos países exportadores como Rússia e Índia
declinavam. Ainda nesse contexto, segundo Friedmann (1982), as colônias europeias na Ásia
e África, assim como os países latino-americanos eram autossuficientes na produção de
alimentos o que não significava, necessariamente, segurança alimentar para suas
populações se considerarmos as desigualdades internas e a realidade da dominação colonial
presente em algumas dessas regiões. Tal ordem alimentar entrou em colapso a partir dos
anos 1930 e seu fim se deu com o início da Segunda Guerra Mundial.
As políticas nacionais construídas durante o declínio da primeira ordem internacional
de alimentos se tornaram as bases da ordem construída pós-segunda guerra mundial. Após
a crise de 1929, os grandes países produtores como Canadá e Austrália instituíram o state
marketing através de políticas nacionais de incentivo à produção e à regulação dos preços.
Nos Estados Unidos, a intervenção d o Estado na produção agrícola deu-se através do New

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT