Ainda sobre legalidade tributária: um exame das funções eficaciais como instrumento do controle do poder de tributar

AutorÉderson Garin Porto
CargoMestre e Doutorando em Direito pela UFRGS. Professor de Direito Tributário da Unisinos. Membro da FESDT. Advogado
Páginas124-141

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Introdução

A chamada legalidade tributária, princípio da legalidade ou tipicidade tributária já foi objeto de inúmeros trabalhos de elevado valor acadêmico, figurando na história do Direito Tributário com seus reconhecidos méritos. Sendo assim, a proposta de voltar a escrever sobre um tema que já foi objeto de tantos estudos se revela das mais árduas, agravada pela tarefa de homenagear um dos maiores tributaristas brasileiro, Hugo de Brito Machado.

A proposta defendida neste trabalho, por certo não é revolucionária, mas tem a humilde pretensão de acrescentar algumas questões ao debate da norma inserida na Constituição e que é considerada por muitos como uma das mais importantes da seara tributária. Pretende-se, portanto, falar com uma abordagem diferente do mesmo tema, utilizando um método diferente na esperança de colher resultados diferentes daqueles já trazidos pela prestigiosa doutrina pátria. O que se propõe, pois é um modelo de análise constitucional-sistemático ou constitucionalmente orientado, onde se privilegia a concretização e implementação de normas (princípios, postulados e regras) constitucionais na jurisprudência. Pretende-se, portanto, colaborar com a estruturação de uma argumentação jurídica fundada na Constituição Federal e nas decisões do

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Supremo, tornando o trabalho de aplicação do direito mais preciso e intersubjetivamente controlável, evitando-se, com isso, aplicações puramente arbitrárias. A proposta tem a expectativa de demonstrar como a legalidade tributária é interpretada pela Corte responsável pela guarda da Constituição, buscando construir sentido e oferecer critérios que fugiriam da mera especulação opinativa.

1. Parte conceitual da legalidade
1. 1 Raízes da legalidade

A ideia de sujeitar o poder do Estado de tributar à anuência do Poder Legislativo é, por vezes, remetida à Magna Carta de 1215 e, em outros registros, relacionada aos anos que antecederam a independência das colônias inglesas na América quando cunhou-se a expressão "no taxation without representation". Em verdade, a origem da legalidade ou "direito de concordar com a tributação", como se refere Luís Eduardo Schoueri, é mais remota. Atribui-se a formação do conceito de legalidade à expressão romana "nullum tributum sine lege", chamado à época de consentimento fiscal corporativo.1Há, também, registros que datam de 614 na Europa, quando o Édito de Paris selava um acordo entre os Reinos Francos estabelecendo que em qualquer povoado que se tenha exigido tributo e levado aquela população à insurgência, deveria ser instaurada investigação e o tributo seria abolido. Este é o registro da proibição de um tributo inaudito (exactio inaudita).2Na Inglaterra medieval, a interferência dos súditos tem origens remotas que antecedem seguramente a carta do Rei João Sem--Terra. A expressão "aid" ou "auxilia", por exemplo, significava a ajuda dos vassalos aos suseranos, sendo inerente à relação suserania e vassalagem.3Contudo, pairava a ideia de que o rei deveria viver com seus próprios meios, vale dizer, deveria manter a coroa com a chamada tributação ordinária, sendo a contribuição extra do súdito exigida em situações excepcionais, decorrendo daí a necessidade de contar com a anuência de órgãos representativos para exigir o tributo.4

Registra-se que o imposto sobre o patrimônio chamado de "saladin tithe" exigido por Henrique II nos idos de 1188 tinha o propósito de fazer frente as despesas das cruzadas contra Saladino.5Para a instituição do "saladin tithe", Henrique II buscou aprovação do Conselho Nacional do Rei, assim como do "jury of neighbours". Idêntica providência foi adotada em 1198 para se instituir a chamada "carucage". Em que pese a Magna Carta de 1215 tenha ganhado maior notoriedade, os registros históricos demonstram que a origem da necessidade de se obter "concordância do contribuinte" está ancorada nestes fatos históricos.6O Rei João Sem-Terra (John Lackland) tornou-se famoso justamente por tentar abandonar a prática antes noticiada. De efeito, o seu reinado foi marcado pela adoção de algumas medidas impopulares e comportamentos que afrontaram os súditos culminando com a tomada de Londres em

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1215 pelos barões revoltosos. A carta, tida por muitos como precursora das Constituições, tinha três pontos fundamentais: em primeiro lugar, a Igreja teria liberdade para encontros Eclesiásticos; em segundo lugar, a cobrança de tributos além dos níveis normais deveria ser precedida de anuência dos súditos; e, em terceiro lugar, nenhum homem livre seria punido exceto naqueles casos previstos na common law.7Outro fato histórico que marcou de forma in delével o Direito Tributário remonta aos idos de 1750 e que precederam a independência norte-americana. Os colonos britânicos, insatisfeitos com a falta de representatividade junto ao distante parlamento britânico, insurgiram-se contra a tributação das colônias cunhando a famosa expressão "no taxation without representation". Portanto, as raízes da legalidade aqui destacadas remontam ao Estado absolutista atenuado por frágeis lampejos democráticos.8A investigação empreendida permite compreender o sen tido que a norma examinada possui hoje. Não se pode defender uma ideia de legalidade tributária desatrelada da consistência democrática que a história tratou de agregar ao referido princípio, exigindo que o exercício do poder de tributar seja precedido de consulta aos representantes do povo.

1. 2 Definição conceitual de lei e implicações com a definição de legalidade tributária

Em língua portuguesa a expressão "lei" apresenta mais de um sentido, podendo ser desde ato emanado pelo Poder Legislativo, chegando a expressar "norma" ou até mesmo "direito".9Tércio Sampaio Ferraz Junior alerta para o equívoco de se igualar a ideia de "lei" ao conceito de "norma", dizendo que lei é a fonte de direito ou "revestimento estrutural da norma", já a norma é a prescrição que pode estar contida na lei ou outro ato normativo.10Lei em sentido técnico pode ser definida como o preceito jurídico escrito, proveniente de autoridade estatal competente de caráter geral e abstrato. Num sentido amplo, pode-se dizer que lei seria toda e qualquer fonte normativa, incluindo-se nesta acepção a lei divina, os costumes, a jurisprudência e as normas emanadas pelo Estado. Num sentido mais estrito, entende-se por lei aquela norma emanada pelo Poder Legislativo. Segundo Riccardo Guastini, formular uma norma é um ato bruto, enquanto que legislar - introduzir as normas formuladas em um ordenamento jurídico - é um ato "institucional" ou, melhor dizendo, uma sequência de atos institucionais, guiados por normas jurídicas constitutivas.11

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Há, ainda, a distinção entre lei em sentido formal e lei em sentido material.12

No primeiro caso, considera-se lei em sentido formal aquele ato normativo analisado sob o aspecto da sua constituição, vale dizer, modo de sua produção. De outra banda, lei em sentido material é a norma identificada pelo seu conteúdo.13Antes de mera classificação doutrinária, a distinção traz consequências importantes que serão apreciadas na segunda parte deste ensaio. Por ora, pode-se afirmar que a noção de legalidade pressupõe a edição de lei não somente no seu sentido formal, como também em seu sentido material.14

Sendo assim, em termos bastante singelos, pode-se dizer que lei é o ato normativo emanado pelo Poder Legislativo.15Ocorre que a Constituição Brasileira arrola no art. 59 uma série de atos criados pelo processo legislativo. Se, como visto, a legalidade tributária pressupõe a edição de lei para instituir ou majorar tributo, qual ou quais destes atos normativos antes arrolados serviriam para atender o preceito do art. 150, I, da Constituição?

A questão remete à tormentosa discussão sobre a chamada hierarquia legislativa, tema bastante caro ao Direito Tributário e que já ensejou inúmeras controvérsias submetidas ao Supremo Tribunal Federal.16A jurisprudência da Suprema Corte brasileira se consolidou no sentido de não reconhecer hierarquia entre os diferentes atos normativos emanados pelo Poder Legislativo, estabelecendo, em verdade, distinção em relação à competência que a Constituição reserva a cada modalidade.17

Dessa forma, em poucas palavras, resumindo a discussão aos limites estabelecidos neste ensaio, a Constituição define competências para cada ato normativo expedido pelo Poder Legislativo, de sorte que não há falar em hierarquia entre as espécies referidas no art. 59. Há, em verdade, delimitação de competência, de sorte que as matérias reservadas à Constituição somente podem ser tratadas por meio de emendas constitucionais, temas restritos à lei complementar somente podem ser disciplinadas por este tipo legislativo e assim sucessivamente.18Penderia dúvida nas hipóteses em que a Cons tituição silencia, isto é, quando não há de terminação de qual seria o tipo legislativo pró prio para a veiculação da matéria a ser

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le gislada. No entanto, desde o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 1, con solidou-se entendimento de que o silêncio da Constituição indica que a matéria pode ser tratada tanto por lei ordinária, quanto por medida provisória.19No tocante à questão das medidas provisórias, discutiu-se durante longo período sobre a constitucionalidade de tal ato normativo veicular matéria tributária.20

Em que pese o acalorado debate travado em se de doutrinária sobre o tema, a posição do Supremo Tribunal Federal aponta para a...

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