O alcance da proteção do nascituro no direito brasileiro em face da revolução biotecnológica

AutorVitor Almeida
Ocupação do AutorDoutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Páginas37-61
O ALCANCE DA PROTEÇÃO DO NASCITURO
NO DIREITO BRASILEIRO EM FACE DA
REVOLUÇÃO BIOTECNOLÓGICA
Vitor Almeida
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor Adjunto de Direito Civil da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ITR/
UFRRJ). Professor dos cursos de especialização do CEPED-UERJ, PUC-Rio e EMERJ.
Vice-diretor do Instituto Brasileiro de Biodireito e Bioética (IBIOS). Pós-doutorando
em Direito Civil pela UERJ. Advogado.
Quem sabe que o tempo está fugindo descobre, subitamente,
a beleza única do momento que nunca mais será…
Rubem Alves
Sumário: 1. Considerações iniciais: admiráveis novos tempos in utero. 2. A qualicação jurídica
do nascituro no direito brasileiro. 3. Pessoa e personalidade no direito civil contemporâneo.
4. O tratamento do nascituro no cenário normativo nacional. 5. A abrangência e o alcance
do conceito de nascituro no direito civil contemporâneo. 6. Considerações nais: o futuro
da condição humana.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS: ADMIRÁVEIS NOVOS TEMPOS IN UTERO
As inovações oriundas do desenvolvimento acelerado das ciências biotecnológi-
cas e biomédicas, principalmente a partir da segunda metade do século XX, marcaram
profundamente as relações sociais, sobretudo as familiares, e pressionaram a ciência do
Direito a repensar e reformular institutos que se encontravam sedimentados no “mundo
natural”, restando, assim, ao campo jurídico tentar acompanhar esse progresso de modo
a proporcionar segurança nessas relações emergentes. Dentre as diversas inovações
provocadas pelos avanços científ‌icos, as técnicas de reprodução humana assistida sus-
citaram importantes e intrigantes ref‌lexões, e que ainda urgem, em grande medida, por
soluções por parte do Direito. Notadamente, com a fertilização in vitro (FIV), técnica
extracorpórea que permitiu a criação de embriões humanos em laboratório, ou seja,
fora do corpo da mulher, as questões se tornaram ainda mais controvertidas e sensíveis,
descortinando uma profunda transformação no alcance e na extensão da proteção do
ser humano concebido no útero e do embrião humano crioconservado.
A ciência continua a romper com a ordem natural das coisas e a dessacralizar a
natureza. Em 2018, foi noticiado que cientistas espanhóis conseguiram criar, na China,
um ser híbrido de humano e macaco. De acordo com o relato divulgado, “os estudiosos
modif‌icaram embriões de macaco e injetaram células humanas capazes de gerar qualquer
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tipo de tecido”. Criaram, desse modo, uma quimera científ‌ica, nome dado à combinação
de pelo menos dois conjuntos de DNA. “Na mitologia grega, quimeras são criaturas com
cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de serpente. No caso do experimento, o resultado
foi uma quimera de macaco, mas ela não chegou a nascer, pois os pesquisadores inter-
romperam a gestação”.1
Igualmente surpreendente foi a notícia de que um cientista chinês teria criado
os primeiros bebês geneticamente modif‌icados, também em 2018. Segundo af‌irma-
ções do próprio cientista, teria sido utilizada a técnica de edição de genes conhecida
como CRISPR2 para modif‌icar um gene e tornar as gêmeas resistentes contra o vírus que
causa a AIDS.3 Após a divulgação de tal experimento, a Organização Mundial de Saúde
(OMS) defendeu a proibição das técnicas de alteração genética em embriões humanos.
De fato, tais revelações no campo da ciência em matéria de reprodução huma-
na provocam angustiantes dilemas éticos sobre os limites do progresso científ‌ico,
sobretudo quando a própria natureza humana é colocada no centro do debate. Se,
por um lado, tais experimentos podem benef‌iciar o nascimento de bebês saudáveis,
a exemplo da modif‌icação genética, ou a criação de “fábricas” de órgãos para trans-
plante, como nos casos das quimeras, por outro, é inquestionável as possibilidades
desconhecidas com essas técnicas e os conf‌litos éticos. Não obstante, enquanto o
mundo jurídico ainda se encontra à margem de tais debates, é indispensável repensar
e revisitar temas já antigos, mas que são ressignif‌icados e alvejados pela revolução
biotecnológica. Desse modo, o presente trabalho objetiva analisar a qualif‌icação
jurídica do nascituro no direito civil brasileiro, bem como a abrangência e o alcance
de seu conceito a partir do desenvolvimento da biotecnologia. Um tema que parece
antigo, mas que é catapultado ao cerne das discussões sempre que novas descobertas
científ‌icas são reveladas e que coloca no centro das atenções o próprio conceito de
pessoa e o sentido do Direito.
2. A QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DO NASCITURO NO DIREITO BRASILEIRO
Não é de hoje que juristas consagrados se debruçam sobre a qualif‌icação jurídica
do nascituro no direito alienígena4 e brasileiro.5 Diversas são as teorias que procuram
1. Os cientistas “já tinham criado, em 2017, embriões de quimeras de camundongos com ratos. Na ocasião foi usada a
técnica CRISPR para desativar genes de embriões de camundongo importantes para o desenvolvimento de coração,
olhos e pâncreas. Depois, foram introduzidas células-tronco de rato, capazes de gerar esses órgãos”. Disponível
em: [https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2019/07/cientistas-espanhois-criam-ser-hibrido-de-huma-
no-e-macaco-na-china.html]. Acesso em: 04.10.2019.
2. “Repetições Palindromicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas”, ou “Crispr” na sigla em inglês.
3. Disponível em: [https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/26/ciencia/1543224768_174686.html]. Acesso em:
04.10.2019.
4. Cf., na doutrina de países de cultura romano-germânica, BARRA, Rodolfo Carlos. Los derechos del por nascer en
el ordenamiento jurídico argentino. Buenos Aires: Editorial Ábaco de Rodolfo Depalma, 1997; CATALANO, Pie-
rangelo. Os nascituros entre o direito romano e o direito latino-americano. Revista de Direito Civil, n. 45, ano 7,
jul./set., 1988; TORCO, Jose Maldonado y Fernandez. La condicion jurídica del “nasciturus” en el derecho español.
Madrid: [s.n.], 1946. Sobre o tema no sistema anglo-saxão, v. WELLMAN, Carl. The concept of fetal rigthts. Law
and Philosophy, 21, Kluwer Academic Publishers, 2002. p. 65-93.
5. Ver, por todos, MONTORO, André Franco; FARIA, Anacleto de Oliveira. Condição jurídica do nascituro no direito
brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1953; ALMEIDA, Silmara Juny Chinelato e. Tutela civil do nascituro. São Paulo:
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