Os alemães no Brasil: expedições científicas, colonização e herança intelectual

AutorRogerio F. Guerra
CargoProfessor Titular do Departamento de Psicologia/UFSC e Editor da Revista de Ciências Humanas
Páginas9-82
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, Volume 46, Número 1, p. 9-82, Abril de 2012
Os alemães no Brasil: expedições científicas,
colonização e herança intelectual
Rogerio F. Guerra1
Universidade Federal de Santa Catarina
Introdução
Os efeitos dos movimentos migratórios são complexos e variados, tanto
para as nações que fornecem os imigrantes quanto para aquelas que aco-
lhem os contingentes. Os motivos que levam as pessoas a migrarem são varia-
dos, mas comumente eles decorrem da pobreza ou são os produtos de guerras,
perseguições políticas e intolerância religiosa. Em muitos casos, essas forças
se somam e famílias ou vilarejos inteiros buscam melhores condições de vida
em outros cantos. Algumas nações do Novo Mundo se beneficiaram enorme-
mente do fluxo migratório, entre as quais a Argentina, Brasil e EUA, mas os
países cedentes sofreram despovoamento e perda da capacidade econômica.
Atualmente notamos uma inversão do fluxo migratório – são as nações mais
ricas e do Velho Mundo que atraem os jovens imigrantes (brain drain).
O fluxo migratório ocasiona efeitos significativos, tanto para as nações que
cedem seus habitantes quanto para aquelas que os acolhem. Os imigrantes tra-
zem novos costumes, crenças religiosas e conhecimentos técnicos, os quais inter-
ferem no modo de vida local e resultam num caldeirão cultural (melting pot).
De modo geral, os imigrantes exibem características especiais, levando em
conta a motivação e a coragem para o enfrentamento de situações adversas;
uns se integraram perfeitamente ao novo local, mas outras comunidades per-
maneceram isoladas e perdemos gradativamente seus vestígios. O fluxo mi-
gratório alemão não foi volumoso, em termos relativos, mas deixou marcas
visíveis nos estados do Sul. O espírito empreendedor do colono alemão impulsio-
nou a atividade agropastoril e fez surgir indústrias variadas (tecelagem, cerâmica,
metalurgia, construção civil e processamento de alimento).
Uma curiosidade: o fluxo migratório alemão não foi contínuo e tampouco
o mais volumoso, pois os contingentes italianos, por exemplo, foram maiores e,
dentre as nações do Novo Mundo, os EUA e Canadá acolheram volumes mais
expressivos de colonos alemães. A germanização do Brasil teve início por volta
de 1820, mas os EUA já vinham recebendo esses colonos antes de sua inde-
pendência (1775). Estima-se que ¾ dos alemães se instalaram na Filadélfia;
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1 Professor Titular do Departamento de Psicologia/UFSC e Editor da Revista de Ciências Humanas
(rfguerra@cfh.ufsc.br).
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nos anos 1720, três veleiros desembarcaram 600 alemães na região e, nos anos
1750, 20 navios deixaram 5.600 imigrantes na Filadélfia (TAYLOR, 2003). Entre
1820 e 1860, os EUA acolheram cerca de 5 milhões de imigrantes, 90% com-
posto por ingleses, irlandeses e alemães. O fluxo migratório foi ocasionado pela
pobreza e, interessantemente, o decréscimo demográfico beneficiou a popula-
ção que permaneceu nas regiões de origem (SCHLEMPER, 2007).
Entre todas as nações, os EUA foram os que mais se beneficiaram com o
fluxo migratório em larga escala (50 milhões, desde a descoberta da América)
e algumas nacionalidades se destacaram nesse processo, com exceção dos
escravos (imigrantes forçados). Os alemães eram considerados imigrantes pre-
ferenciais, ao lado dos ingleses e irlandeses; eles foram beneficiados com ter-
ras férteis e baratas, tolerância religiosa, inexistência de serviço militar compul-
sório e liberdade civil. Os colonos alemães mantinham um eficiente serviço de
acolhimento dos compatriotas, o que proporcionou segurança e forte estímulo
ao fluxo migratório. Após a II Guerra Mundial, os EUA receberam um expres-
sivo número de cientistas e engenheiros alemães (HUNT, 1991; JUDT &
CIESLA, 1996; GUERRA, 2007).
Os ingleses foram os colonizadores majoritários e, o que é natural, deixa-
ram marcas mais visíveis na história dos EUA. Por outro lado, os irlandeses
sofreram discriminação, não contavam com o suporte logístico dos compatrio-
tas; as terras eram baratas, mas eles não tinham recursos para adquirir os lotes
e a fervorosa devoção católica era algo minoritário entre os colonos ingleses e
alemães2. A legislação do império austro-húngaro era bastante avançada no
que diz respeito à educação, o que significava baixo índice de analfabetismo na
população – em certas regiões, era apenas 2% entre os indivíduos do sexo
masculino, 3% entre os do sexo feminino (GROSSELLI, 2009).
A Alemanha contava com universidades de prestígio e muitos intelectuais
alemães se destacavam nas ciências naturais, filosofia e nas artes. As nações
do Novo Mundo buscavam sistematicamente os imigrantes e, com efeito, e
exibiam claro interesse pelos contingentes teutônicos, entre os quais os EUA,
Canadá e Austrália; o governo imperial brasileiro também seguiu essa tendên-
cia. Diversas nacionalidades contribuíram para o desenvolvimento da poderosa
nação da América do Norte, mas os colonos ingleses e alemães foram os que
mais prosperaram na nação do Novo Mundo. Outra curiosidade: no Brasil, a
colonização alemã teve início no município de Caravelas/BA, mas ela deixou
marcas mais visíveis e duradouras na região Sul do Brasil. Outros grupos ante-
cederam ou os contingentes eram numericamente superiores aos alemães, mas
estes influenciaram de modo especial a cultura sulista.
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2 The New Encyclopædia Britannica – Macropædia. United States of America (Volume 29, pp. 153-
475). Chicago: Encyclopædia Britannica, Inc., 1986, e Webster’s New Universal Encyclopedia.
Nova York: Barnes & Noble Books, 1997.
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A presença germânica em solo brasileiro influenciou a arquitetura, a culi-
nária e a industrialização do país; os alemães também trouxeram o Luteranis-
mo e a prática diferenciada do Catolicismo, a qual envolvia o culto a novos
santos e os corais de igreja. As ciências naturais foram impulsionadas graças
às expedições científicas e ao empenho de um personagem pouco mencionado
nas obras especializadas, a austríaca D. Leopoldina. A inovação tecnológica
veio com o uso racional do solo e os engenhos movidos a água. A produção de
farinha de mandioca e de açúcar era antiquada; os engenhos eram usados há
muito tempo e a produção era de baixa qualidade – não havia engenhos, mas
engenhocas movidas por parelha de bois com antolhos ou até mesmo por es-
cravos (chama-rita).
O povo alemão é conhecido por seu relacionamento especial com nature-
za e apego à terra (“alemão batata”, forma depreciativa utilizada pelos brasilei-
ros para designá-los), fatores que explicam a competência na produção agro-
pecuária e os movimentos em prol da preservação do meio-ambiente. Alguns
colonos que se instalaram na região Sul do país eram aventureiros e outros,
mais habituados aos ofícios urbanos, mas a maioria era composta por agriculto-
res habituados à exploração de pequenas propriedades. É comum os morado-
res cultivarem suas hortaliças e praticamente não existe uma moradia que não
seja cercada por árvores frutíferas ou que não ostente à frente um florido
jardim. No Brasil, os colonos alemães ganharam a posse de terras amplas e
férteis; a eficiência agrícola trouxe bem-estar, alimentando os estômagos e os
sentimentos de liberdade – o “alemão-batata” era dono de si mesmo.
Os relatórios dos naturalistas
Vários exploradores alemães visitaram o Brasil e descreveram suas im-
pressões acerca de nossas riquezas e costumes dos nativos. O aventureiro
Hans Staden (1557) descreveu os conflitos entre portugueses e franceses; ele
permaneceu 9 meses como prisioneiro dos índios tupinambás, informando que
se tratava de um “período de engorda” para o ritual antropofágico. Suas descri-
ções impressionaram os cronistas que vieram a seguir e simplesmente foram
copiadas, daí surgiu o mito da “antropofagia pandêmica”. O país recebeu a
visita de missionários jesuítas, os quais enriqueceram a lista de exageros e
invencionices. Diziam alguns que as índias transportavam os filhos às costas, o
que é correto e lançavam as mamas sobre os ombros para amamentar os fi-
lhos, sem interromper os afazeres; acreditava-se que elas facilmente ultrapas-
savam os 150 anos de idade e exibiam capacidade reprodutiva aos 80 anos!
Alguns naturalistas ficaram espantados com a enorme quantidade de es-
cravos nas fazendas, bem como o modo como eles eram tratados pelos senhores.

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