Para além das loot boxes: responsabilidade civil e novas práticas abusivas no mercado de games

AutorJosé Luiz de Moura Faleiros Júnior e Roberta Densa
Páginas333-355
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PARA ALÉM DAS LOOT BOXES:
RESPONSABILIDADE CIVIL E NOVAS PRÁTICAS
ABUSIVAS NO MERCADO DE GAMES
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Roberta Densa
Sumário: 1. Introdução. 2. Games e a gamicação das relações de consumo. 3. Para além das
loot boxes: novas práticas abusivas a partir dos nudges. 3.1. As loot boxes os gacha games.
3.2. Framing. 3.3. Anchoring. 3.4. Microtransações. 3.5. Bundling. 4. Notas conclusivas.
Referências.
“O divertimento, assim como o trabalho e o sono, constitui, irrevogavelmente, parte
do processo vital biológico. E a vida biológica constitui sempre, seja trabalhando
ou em repouso, seja empenhada no consumo ou na recepção passiva do diverti-
mento, um metabolismo que se alimenta de coisas devorando-as. As mercadorias
que a indústria de divertimento proporciona não são “coisas”, objetos culturais cuja
excelência é medida por sua capacidade de suportar o processo vital e se tornarem
pertencentes do mundo, e não deveriam ser julgadas em conformidade com tais
padrões; elas tampouco são valores que existem para serem usados e trocados; são
bens de consumo destinados a se consumirem no uso, exatamente como quaisquer
outros bens de consumo. Panis et circenses realmente pertencem a uma mesma
categoria; ambos são necessários à vida, para sua preservação e recuperação, e
tampouco desaparecem no decurso do processo vital.”
Hannah Arendt
1. INTRODUÇÃO
A presença e a importância dos videogames na cultura contemporânea é algo que
não se pode negar. Não apenas o contexto tecnológico sofre mutações constantes a partir
dos algoritmos – mais sof‌isticados e adaptados à evolução dos microprocessadores e das
técnicas de edição e programação –, mas também as práticas direcionadas ao mercado
explorado pelos participantes da cadeia de consumo de jogos eletrônicos.
Nesse ambiente, o direito do consumidor deve estar em constante aprimoramento,
se tornando apto a tutelar as diversas novas estratégias de marketing que, embora so-
f‌isticadas, não podem se tornar abusivas e, muito menos, passar ao largo do regime de
proteção instaurado a partir do Código de Defesa do Consumidor.
Entretanto, a Internet apresenta peculiaridades que a distinguem das habituais e
antigas relações de consumo dos jogos eletrônicos e já se caminha para a instituciona-
lização de um modelo de negócio dos ‘games’ como serviços, tal como já ocorre com
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serviços de streaming de músicas, f‌ilmes e séries, e, se não há mais a compra e venda da
tradicional mídia física, largo campo se inaugura para a exploração comercial com alto
potencial lucrativo.
O início desse fenômeno é fruto das chamadas loot boxes, ou ‘caixas de recompensa’,
que, tal e qual ocorre nos videogames, indica a oferta de itens virtuais consumíveis que
podem ser resgatados para que o usuário receba uma seleção aleatória de outros itens
virtuais, que vão desde simples opções de personalização para o avatar ou personagem
de um jogador, até equipamentos que mudam o jogo.
Esse modelo de negócio, também chamado no Japão de gacha gaming, baseado em
nudges1, tem o potencial de literalmente viciar o jogador, haja vista a sequência crescente
e estruturada a partir de algoritmos que estimulam o consumo por meio de pagamentos
que tornam a rotina insaciável, especialmente para crianças e adolescentes.
E, pensando nisso, a presente pesquisa se debruçará sobre esta e algumas outras
práticas abusivas já existentes e até recorrentes no mercado de jogos eletrônicos, a saber:
framing, anchoring, microtransações e bundling.
As peculiaridades são muitas, mas, o que se procurará estabelecer é a necessidade
de atualização constante dos critérios de proteção às relações de consumo e aos consu-
midores, mediante análise dedutiva e contextual, lastreada em pesquisa bibliográf‌ica.
2. GAMES E A GAMIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO
Falar em gamif‌icação já se tornou uma tendência inescapável: até o ensino vem
sendo repensado a partir de modelos ‘gamif‌icados’2, que exploram a atenção e o desejo
humano pela superação de desaf‌ios para promover motivação, interesse e despertar
curiosidade e memorização.
Na perspectiva do homo ludens, o jogo é, na linha do que sempre af‌irmou Johan
Huizinga, uma força atávica def‌inidora da própria cultura, o que o torna um fenômeno
metamórf‌ico, transformador e transdisciplinar3, afetando, por esse exato motivo, as
relações jurídicas.
O mesmo autor af‌irmou que o jogo é mais antigo que o seu desenvolvimento
pela cultura, explicando que os jogos estão presentes entre os animais, identif‌icados
1. Nudge é uma palavra da língua inglesa que signif‌ica empurrar ou cutucar alguém levemente com o intuito de
chamar sua atenção. Signif‌ica, portanto, persuadir ou encorajar de forma sutil. Richard H. Thaler e Cass Sustein
def‌inem o termo como uma intervenção que preserva a liberdade de escolha, ainda que possa inf‌luenciar a tomada
de decisão. Em outras palavras, a ideia por trás dos nudges não é coagir, mas induzir.
2. O tema é profundamente explorado em obra de referência sobre o assunto, de autoria de Karl Kapp, que explora
técnicas de treinamento e ensino a partir da gamif‌icação: KAPP, Karl M. The gamif‌ication of learning and instruction:
game-based methods and strategies for training and education. São Francisco: Pfeiffer, 2012. Ademais, analisando
as possíveis aplicações desta tendência no ensino brasileiro, com análise casuística, conf‌ira-se: LEMES, David de
Oliveira; SANCHES, Murilo Henrique Barbosa. Gamif‌icação e educação: estudo de caso. In: SANTAELLA, Lucia;
NESTERIUK, Sérgio; FAVA, Fabrício (Orgs.). Gamif‌icação em debate. São Paulo: Blucher, 2018, p. 187-198. ARAÚJO,
Inês; CARVALHO, Ana Amélia. Gamif‌icação no ensino: casos bem sucedidos. Revista Observatório, Palmas, v. 4,
n. 4, p. 246-283, jul./set. 2018.
3. HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Tradução de João Paulo Monteiro. 8. ed. São
Paulo: Perspectiva, 2014, p. 6-7.

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