Para além do emprego: Os caminhos de uma verdadeira reforma do direito do trabalho

AutorAlain Supiot
Páginas17-52
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PARA ALÉM DO EMPREGO: Os caminhos de uma verdadeira reforma
do direito do trabalho1
BEYOND THE EMPLOYMENT: The ways of a real reform of labour law
Alain Supiot2
RESUMO: O presente estudo visa a demonstrar que uma verdadeira reforma do Direito do Trabalho é
necessária, tendo como norte, não as expectativas dos mercados financeiros, mas a implementação em escala
global de um regime de trabalho realmente humano. Tal regime é imprescindível para que haja qualidade dos
produtos, preservação do meio ambiente, liberdade no trabalho e realização do ser humano ao máximo na
execução de tarefas úteis a seus semelhantes. Nesse sentido, criticam-se as reformas do Direito do Trabalho que
vêm sendo implementadas, as quais visam à adaptação dos homens às necessidades do mercado, traduzindo-se
em verdadeira desregulamentação, inspirada na doutrina ultraliberal. Criticam-se, ainda, as políticas da
Comissão Europeia e do Banco Central Europeu e as decisões da Corte de Justiça da União Europeia, que
incorporam a ideologia ultraliberal e preconizam a chamada flexissegurança. Propõe-se a implementação do
chamado “estado profissional da pessoa”, que vai além do emprego e engloba todas as formas de trabalho, desde
a formação inicial até a aposentadoria, tendo como linha de horizonte a humanização do trabalho. A esse estado
profissional, baseado nas noções de liberdade, justiça social e solidariedade, corresponderiam os direitos sociais,
que asseguram aos trabalhadores a continuidade de seu estatuto social, independentemente da diversidade de
tarefas exercidas ao longo da vida profissional.
PALAVRAS-CHAVE: Direito do Trabalho. Reforma. Direitos sociais. Solidariedade. Estado profissional da
pessoa.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A desintegração da Europa social. 3. A “nova Europa”. 4. O defeito do euro. 5. A
finança soberana. 6. A corrida global (global race). 7. O Direito do Trabalho entre transformismo e reformismo.
8. O que significa “reformar”? 9. Os impasses da flexibilização. 10. O esgotamento do modelo industrial de
emprego. 11. O estatuto do trabalho além do emprego. 12. Mercado contra solidariedade. 13. As lições de um
conflito.
ABSTRACT: This paper aims to demonstrate that a real reform of Labour Law is necessary, having as a goal,
not the expectations of financial markets, but the implementation worldwide of a work regime really human.
Such a regime is essential for quality of products, preservation of the environment, freedom in work and
maximum realization of human being in the accomplishment of tasks useful to his fellowmen. In this sense, we
criticize the reforms of Labour Law that have been introduced, which aim to adapt men to the needs of the
market, translating into true deregulation, inspired by ultraliberal doctrine. The policies of the European
Commission and the European Central Bank and the judgements of the Court of Justice of the European Union,
which incorporate ultraliberal ideology and advocate so-called flexicurity, are also criticized. We propose the
implementation of the so-called "professional status of the person", which goes beyond employment and
encompasses all forms of work, from initial training to retirement, with the humanization of work as a goal. To
this professional state, based on the notions of freedom, social justice and solidarity, would social rights
Artigo recebido em: 12/10/2018.
Artigo aprovado em: __/__/__.
1 O presente artigo consiste na apresentação (“Avant-propos”) escrita pelo Professor Doutor Alain Supiot para a
segunda edição do livro “Au-delà de l’emploi. Les voies d’une vraie réforme du droit du travail”, coordenado
pelo referido professor e publicado em 2016 pela Editora Flammarion. A tradução do francês para o português
foi feita pela Prof. Dra. Lorena Vasconcelos Porto, que é Professora Titular do Mestrado em Direito das
Relações Sociais e Trabalhistas do Centro Universitário UDF.
2 Alain Supiot é Professor Titular no “Collège de France”, onde ocupa a cátedra “Estado social e globalização:
análise jurídica das solidariedades” (“État social et mondialisation: analyse juridique des solidarités”).
RDRST, Brasília, Volume IV, n. 03, 2018, p 17-52, Set-Dez/2018
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correspond, which assure to the workers the continuity of their social status, regardless of the diversity of tasks
carried out during the professional life.
KEYWORDS: Labour Law. Reform. Social rights. Solidarity. Professional status of people.
SUMMARY: 1. Introduction. 2. The disintegration of social Europe. 3. The "new Europe". 4. The defect of the
euro. 5. The sovereign finance. 6. The global race. 7. Labor Law between transformism and reformism. 8. What
does "reform" mean? 9. The impasses of flexibility. 10. The exhaustion of the industrial model of employment.
11. The status of work beyond employment. 12. Market against solidarity. 13. The lessons of a conflict.
1 INTRODUÇÃO
Quando há vinte anos a Comissão Europeia me pediu para presidir a elaboração de um
relatório dedicado às “transformações do trabalho e ao futuro do direito do trabalho”, a União
Europeia estava ainda rica da promessa de um futuro melhor. Certamente, a instalação de um
desemprego massivo e o crescimento da precarização assinalavam já os perigos daquilo que
os espíritos lúcidos denominavam então na França de “fratura social” 3 e nos Estados Unidos
de “a revolta das elites e a traição da democracia” 4. Mas a implosão recente do império
soviético tinha acabado de mostrar que a opressão das pessoas não tinha nada de inevitável,
ao mesmo tempo que ela possibilitava à construção europeia perspectivas e responsabilidade
novas.
Foi nesse contexto que a Direção de Assuntos Sociais da Comissão Europeia tomou a
iniciativa de uma reflexão prospectiva sobre o Direito do Trabalho e constituiu para esse fim
um grupo de pesquisa transnacional e multidisciplinar. Foi-nos pedido para traçar os
caminhos de uma reforma do Direito do Trabalho que ao mesmo tempo leve em consideração
as mudanças profundas na organização econômica e social e vá no sentido de uma Europa
mais “social”.
A União Europeia possuía à época apenas quinze membros e a perspectiva de sua
ampliação próxima aos antigos países comunistas oferecia uma ocasião histórica de refunda-
la com base na solidariedade entre as pessoas e de conferir, assim, um novo estímulo a seu
modelo social. Não era, portanto, totalmente absurdo se esperar que ela se dotasse enfim de
bases democráticas sólidas e de uma cabeça política pensante, e pudesse se tornar o
laboratório de primeira grandeza de uma solidariedade nova entre países “ricos” e países
3 Criada por Marcel Gauchet, (Peurs et valeurs. Les mauvaises surprises d’une oubliée: la lutte des classes,
Le Débat, n. 60, maio-agosto 1990, p. 257-266), esta expressão foi retomada em 1995 por Jacques Chirac como
tema de sua campanha eleitoral para a presidência da República.
4 LASCH, C. The Revolt of the Elites and the Betrayal of Democracy. New York: Norton & Co, 1995. Esta
obra foi traduzida para o francês como La Révolte des élites et la trahison de la démocratie. Climats, 1996.
Nas páginas 269 e 58 dessa obra, Lasch diagnosticava “a fr atura profunda e que vai aumentando entre o mundo
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“pobres” e de uma melhoria geral das condições de vida e de trabalho. O que pressuponha, em
verdade, uma reforma profunda de suas instituições, bem como um projeto de sociedade
suscetível de restaurar a sua legitimidade junto à massa crescente de perdedores da
“concorrência livre e não falseada. Nosso relatório é uma contribuição para a elaboração
desse projeto. Nós o republicamos atualmente em sua versão original, pois ele (infelizmente)
não perdeu nada de sua atualidade e pode esclarecer o debate atual travado na França sobre a
reforma do Direito do Trabalho.
2 A DESINTEGRAÇÃO DA EUROPA SOCIAL
Como se sabe, as oportunidades que pareciam ainda se abrirem à Europa na virada do
século não obtiveram êxito. A União Europeia continuou a se centrar em sua corrente
descendente mais forte: a de uma “integração negativa” 5, capaz de desmantelar as
solidariedades nacionais em nome das liberdades econômicas, mas incapaz, por outro lado, de
edificar um projeto político e social comum, que federalizasse as pessoas em torno de novas
solidariedades. Durante estes últimos vinte anos, três fatores se conjugaram no sentido dessa
desintegração da Europa social: a ampliação aos antigos países comunistas, a implementação
do euro e a crise financeira internacional.
3 A “NOVA EUROPA”
Sem ter sido concebida como uma verdadeira reunificação, a ampliação da União
Europeia aos países pós-comunistas serviu para atiçar a corrida social ladeira abaixo e a trair a
promessa “da equalização no progresso” das condições de vida e de trabalho, embora contida
no Tratado de Roma6. No final dos anos 1990, quando nosso relatório foi elaborado, a Europa
se pretendia ainda “social” e a posição ultraliberal inglesa era minoritária em seu âmbito. Essa
ambição desapareceu com a entrada na União de países saídos da dominação soviética. Sem
político e os membros mais humildes da sociedade”, aos olhos dos quais “uma Europa governada da Bruxelas
será cada vez menos sensível ao controle das pessoas”.
5 Esta noção se deve a SCHARPF, Fritz. Gouverner l’Europe. Paris: Presses de Sciences Po, 2000. p. 58 e ss.
6 Atribuído aos Estados-membros pelo artigo 117 do Tratado de Roma, esse objetivo consta ainda no artigo 151
do atual Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

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