Almas sem Abrigo': o laboratório de fisiologia dos irmãos Ozório e os debates sobre ciência e educação na Primeira República

AutorLetícia Pumar
Páginas304-339
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2018v17n38p304/
304 304 – 339
Almas sem Abrigo”: o laboratório
de f‌isiologia dos irmãos Ozório e os
debates sobre ciência e educação
na Primeira República1
Letícia Pumar2
Resumo
O artigo apresenta o ambiente intelectual de criação e funcionamento do laboratório de f‌isiologia
experimental dos irmãos Ozório, visto como um dos pontos de encontros da elite intelectual
carioca na primeira metade do século XX. Os irmãos Ozório (Álvaro, Miguel e Branca) estive-
ram engajados, no contexto nacional, nos debates sobre a valorização da pesquisa científ‌ica
levantados pela Academia Brasileira de Ciências e pela Associação Brasileira de Educação. Além
disso, estabeleceram contatos estreitos com cientistas de outros países e procuraram assegurar
o reconhecimento da produção científ‌ica realizada nos laboratórios brasileiros por seus pares no
exterior. Neste artigo, é analisado o percurso dos irmãos Ozório em busca da institucionalização
das pesquisas f‌isiológicas no Rio de Janeiro, além de seus primeiros esforços para difundir suas
pesquisas internacionalmente com o estabelecimento de trocas intelectuais com o meio acadê-
mico francês na década de 1920.
Palavras-chave: História das ciências no Brasil. Academia Brasileira de Ciências. Associação
Brasileira de Educação. Fisiologia experimental.
1 Esse artigo foi desenvolvido a partir do primeiro capítulo da minha tese de doutorado defendida na Casa de
Oswaldo Cruz/FIOCRUZ em 2015: SOUZA, Letícia Pumar Alves de. A ciência e seus f‌ins: internacionalismo,
universalismo e autonomia na trajetória do f‌isiologista Miguel Ozório de Almeida (1890–1953). Tese (Douto-
rado em História das Ciências e da Saúde). Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2015.
2 Letícia Pumar realiza pesquisa de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Possui graduação em História, pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), mestrado e doutorado em História das Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em História
das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz (com período de estágio na École des hautes
études en sciences sociales – Paris). E-mail: leticiapumar@gmail.com
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 38 - Jan./Abr. de 2018
305304 – 339
Introdução
Na década de 1930, o siologista brasileiro Miguel Ozório de Almeida
publicava pela Editora Ariel seu primeiro e único romance intitulado
Almas sem abrigo (ALMEIDA, 1933). O livro acompanhava os percalços
da trajetória de dois jovens cariocas, um aspirante a escritor e o outro aspi-
rante a cientista, apresentando de forma crítica o ambiente intelectual da
Primeira República por não ter um sistema educacional e cientíco sólido
que pudesse “abrigar” os jovens com interesses na chamada “alta cultura”.
No presente artigo, Miguel Ozório de Almeida e seus irmãos Álvaro e
Branca Ozório de Almeida (posteriormente Branca Fialho) tornam-se um
desses personagens que procuram achar “abrigos” para sua prática como
intelectuais e cientistas no País. Vale lembrar que nem mesmo essa prática
nem os abrigos para ela estavam denidos de forma tão clara como aparece
no romance do cientista. Tanto a prática cientíca, quanto as formas e os
locais para se levar a cabo essa atividade eram questões em aberto, a serem
denidas e redenidas ao longo do período. A própria prática de produção
de conhecimento e seu papel na sociedade estavam em debate no contexto
nacional e internacional. O laboratório de siologia experimental que os
irmãos montaram na residência de seus pais foi considerado um dos mais
importantes pontos de encontros da elite intelectual carioca na primeira
metade do século XX. Além de compartilharem o dia a dia do trabalho
de laboratório, os três irmãos partilhavam preocupações e ideias sobre os
obstáculos ao desenvolvimento da vida intelectual no País e estiveram
engajados em sociedades que foram centrais no processo de prossio-
nalização dos cientistas e de valorização do trabalho intelectual, como a
Academia Brasileira de Ciências (ABC) (Miguel e Álvaro), a Associação
Brasileira de Educação (ABC) – (Branca), e, posteriormente, o CNPq
(Álvaro) e a SBPC (Miguel e Álvaro). Além disso, estabeleceram contatos
estreitos com cientistas de outros países e procuraram assegurar o reco-
nhecimento da produção cientíca realizada nos laboratórios brasileiros
por seus pares no exterior.
Formação e abrigos
Em 1939, os siologistas brasileiros Álvaro e Miguel Ozório de Al-
meida receberam uma homenagem de seus discípulos, colegas e amigos,
“Almas sem Abrigo”: o laboratório de f‌isiologia dos irmãos Ozório e os debates sobre ciência e educação na Primeira República |
Letícia Pumar
306 304 – 339
organizada por Haity Moussatché e Mário Vianna Dias, e nanciada pelo
mecenas Guilherme Guinle.3 Numa reunião na Academia Brasileira de Le-
tras (da qual Miguel era membro), foi entregue aos irmãos um Livro de
Homenagem com textos sobre a carreira dos dois siologistas e artigos
cientícos de pesquisadores nacionais e estrangeiros. Carlos Chagas Filho,
pesquisador de uma geração posterior à dos irmãos, apresentou em seu
texto a seguinte imagem dos mestres:
Há na obra cientif‌ica dos Professores Alvaro e Miguel Ozorio de Almeida um traço co-
mum a ambos, que é um dos aspetos mais caracteristicos da mesma: é a profunda com-
preensão da coisa biologica, do fenomeno biológico “per se”. [...] Os irmãos Ozorio de
Almeida são um exemplo a ser seguido pelos que se iniciam nas ciencias biologicas, tor-
nadas aridas pelos que crendo que o conhecimento humano se faz por simples evolução
continua, tiraram da biologia todas as suas teorias, e a tornaram um conjunto de adapta-
ções d’outras ciencias. (CHAGAS FILHO, 1939, p. 38).
Essas enfáticas armações demonstram disputas metodológicas e
conceituais nas ciências biológicas no início do século XX, num mo-
mento de crescente especialização da área. No entanto, como Carlos
Chagas frisava, os irmãos Ozório viam certa unidade nas questões bioló-
gicas dentro da disciplina siologia, que para eles, não perdia seu lugar,
com o processo de especialização. Ao descrever os irmãos Ozório dessa
forma, Carlos Chagas Filho também apresenta o posicionamento deles
em relação a essas disputas:
O pensamento cientif‌ico atravessa grave crise no momento atual. Todos perguntam qual o
papel que a ciencia poderá desempenhar na restauração dos valores morais do mundo, e se
ela será capaz de supri-los. Álvaro e Miguel Ozorio aqui aparecem como as sombras recon-
fortadoras dos desertos caminhos. Formam na legião dos que serão capazes de regenerar o
pensamento humano, porque crêem profundamente na verdade experimental e na liberdade
de pensamento, simbolo da dignidade humana, e nunca se limitaram ao racionalismo ma-
terialista que “Tentou dogmatizar a natureza, e por presunção ou arrogancia causou grande
dano á f‌ilosof‌ia e ao conhecimento humano”. (CHAGAS FILHO, 1939, p. 40).
3 Guilherme Guinle (1882–1960) fazia parte de uma família que era proprietária da concessão da Companhia
Docas de Santos, primeira sociedade aberta do País, criada para operar o maior porto brasileiro. Guinle
formou-se na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, em 1905, e dedicou-se durante sua vida tanto às atividades
empresariais quanto às atividades f‌ilantrópicas. (SANGLARD, 2008).

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT