Alternativa crítica do direito administrativo brasileiro e a desconstrução do paradigma ideal do interesse público como possibilidade de emancipação concreta: crítica à factibilidade concreta da teoria do interesse geral a partir da perspectiva de classe social

AutorLuasses Gonçalves dos Santos
Páginas109-235
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Capítulo II
ALTERNATIVA CRÍTICA DO DIREITO
ADMINISTRATIVO BRASILEIRO E A
DESCONSTRUÇÃO DO PARADIGMA
IDEAL DO INTERESSE PÚBLICO COMO
POSSIBILIDADE DE EMANCIPAÇÃO
CONCRETA: CRÍTICA À FACTIBILIDADE
CONCRETA DA TEORIA DO INTERESSE
GERAL A PARTIR DA PERSPECTIVA DE
CLASSE SOCIAL
2.1 TOTALIDADE E DIALÉTICA COMO CATEGORIAS
FUNDAMENTAIS DA NOÇÃO DE INTERESSE
UNIVERSAL
Uma análise crítica precisa partir da origem do seu objeto de análise,
pautando a origem histórica e estrutural de determinado fenômeno ou
instituto teórico. À guisa de identificação das fragilidades e inconsistências
presentes na conceituação e uso do conceito de interesse público pela dou-
trina do Direito Administrativo, mostra-se necessário chegar à origem da
possibilidade crítica, o que remete, na presente hipótese, delimitar o primei-
ro ponto de contraposição, ou seja, a vestibular contribuição teórica que
permite lançar questionamentos sobre a clássica noção de interesse público.
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LUASSES GONÇALVES DOS SANTOS
Consignou-se no capítulo antecedente que o conceito de inte-
resse público que se pretende analisar está envolvido em um contexto
de construção teórica de matriz kelseniana, cuja orientação é de delimi-
tação e desenvolvimento de um campo científico próprio do Direito
Administrativo, no qual os elementos políticos, econômicos, sociais e
culturais são extirpados da construção das teses e conceitos jurídicos, na
perspectiva de dotar os institutos jurídicos de cientificidade suficiente
para que sejam neutros e imparciais.
Considerando que o objetivo deste livro diz respeito à adoção de
uma linha de teoria crítica, com o intuito de desmitificar o conceito de
interesse público, revelando seu caráter carregado inexoravelmente de
ideologia e de política, constituindo-se em elemento central para a re-
produção das estruturas do capital, principalmente as vinculadas ao
aparato estatal, volta-se ao que se considera a primeira linha possível de
análise crítica à noção posta de interesse público. Delimita-se de que
maneira não estão presentes os fundamentos da totalidade e da dialética,
revelando de plano, em termos de teoria crítica, a limitação e fragilida-
de teórica da noção dominante e vigente de interesse público.
Para a realização de tal missão, faz-se necessário resgatar algumas
lições e teorias da densa e complexa filosofia de Hegel, sobretudo acerca
das suas ideias sobre a constituição do interesse universal e a centralidade
da razão na figura histórica do Estado moderno,183 tendo como
fundamentos essenciais as categorias filosóficas da totalidade e da dialética.
183 Sobre a centralidade da razão no Estado em Hegel, Norberto Bobbio bem introduz:
“A partir do ensaio sobre direito natural, a tensão entre direito e eticidade se torna um
dos motivos constantes do pensamento de Hegel: neste contraste, o direito representa
sempre o momento da abstração; a eticidade, a concretude viva. A partir deste contraste
básico se seguem outros, infinitos: entre mecanicismo e organicismo, entre agregado
de indivíduos e povo, entre relação formal e nexo substancial, entre relação recíproca
e solidariedade. Mas Hegel não é um romântico. Hegel toma posição contra as últimas
manifestações do jusnaturalismo não para destruí-lo, mas para torna-lo real, para recuperar
sua exigência mais profunda, que é aquela da racionalidade do Estado, e portanto – se
é verdade que o traço constante do jusnaturalismo moderno é a racionalização da vida
social através do Estado – para conduzi-lo às últimas consequências. Com a diferença de
que a racionalidade que Hegel busca não é o cálculo hobbesiano, mas a razão objetiva
que se revela nas instituições históricas e que, como tal, não está acima e sim dentro da
história”. BOBBIO, Norberto. Estudos sobre Hegel: direito, sociedade civil, Estado. 2ª
ed. São Paulo: Unesp; Brasiliense, 1995, pp. 72/73.
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CAPÍTULO II - ALTERNATIVA CRÍTICA DO DIREITO...
2.1.1 A construção de uma filosofia do Estado: a dialética
constituição do interesse universal
O conjunto da obra filosófica de Hegel é tão vasto quanto com-
plexo. E, de alguma maneira, iniciar a análise sobre qualquer um dos
termos trabalhados por esse filósofo alemão demanda um certo pragma-
tismo e uma certa dose de autoritarismo acadêmico, no sentido de co-
meçar “por algum lugar”. Aqui, resolve-se partir de sua obra talvez mais
introdutória em relação a toda construção teórica que viria na sequência;
é dizer, em Introdução à História da Filosofia, a filosofia hegeliana concede
algumas indicações sobre em que se constitui o interesse universal e sua
relação com a racionalidade, mostrando-se como um bom início para
impulsionar a difícil, porém importantíssima, verificação da presença da
totalidade e da dialética enquanto categorias filosóficas, as quais serão fun-
damentais para o desenvolvimento do restante deste trabalho, especial-
mente no sentido de identificar os traços históricos e filosóficos ainda
presentes na categoria jurídica e política do conceito de interesse público.
O início da perspectiva hegeliana de construção e centralidade da
categoria do interesse universal está pautado principalmente em relação
ao surgimento de uma filosofia. Para que ocorra a ruptura que faz emer-
gir a filosofia no seio de um povo, deve ocorrer a preocupação com as
necessidades da vida, o temor das paixões deve ter desaparecido; deve-se
ter ocorrido a extinção do simples interesse finito do sujeito, e a cons-
ciência ter se desenvolvido muito, a fim de demonstrar interesse em
objetivos universais. A filosofia só surge em um povo quando este hou-
ver abandonado a tendência unilateral provocada pelas necessidades e
interesses pelo particular; as paixões já devem ter-se tornado indiferen-
tes ou esclarecidas. A primeira forma de existência de um povo é a
moral simples, a religião singela, a vida em particularidade. Mas a ele-
vação do espírito ocorre de maneira posterior em relação à imediata
individualidade.184
Hegel ainda não se atém ao Estado especificamente, mas, referin-
do-se ao surgimento de uma filosofia, fica claro que as subjetividades
184 HEGEL. G. W. F. Introdução à História da Filosofia. São Paulo: Hemus, 1976, p. 88.

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