Alternativa material crítica e pragmática à superação do conceito de interesse público como fundamento das decisões administrativas

AutorLuasses Gonçalves dos Santos
Páginas321-376
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Capítulo IV
ALTERNATIVA MATERIAL CRÍTICA E
PRAGMÁTICA À SUPERAÇÃO DO
CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO
COMO FUNDAMENTO DAS DECISÕES
ADMINISTRATIVAS
É fundamental o trabalho intelectual de recomposição de uma
massa de pensamento crítico, de extensão do número de formadores
de opinião que começam a pensar diferente. Hoje, aos intelectuais
de esquerda compete uma função fundamental de crítica, de
desvelamento da lógica, das contradições e dos limites da estratégia
liberal e do processo real que estamos vivendo. Devem lutar sem
medo de parecerem antigos contra o pensamento único,
começando por rejeitar as suas premissas. Enquanto os intelectuais
de esquerda ou progressistas seguirem submetidos exclusivamente
aos supostos requerimentos universais de uma economia
globalizada, estarão condenados a seguir repetindo os seus
adversários, ou participando de uma disputa inócua sobre o melhor
lugar das vírgulas. Já partem derrotados por falta de coragem para
pensar com autonomia, perseguidos pelo receio acadêmico de não
serem respeitados pelo mainstream, e quando assim se comportam
e pensam que estão sendo respeitados como interlocutores sérios
não percebem que estão apenas fazendo o papel de bobo da corte.660
660 FIORI, José Luís. “O capitalismo e suas vias de desenvolvimento”. In: HADDAD,
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LUASSES GONÇALVES DOS SANTOS
4.1 O INTERESSE PÚBLICO DESVELADO: O QUE FAZER
DIANTE DO DESNUDAMENTO CONSERVADOR DE
UM CONCEITO?
O Direito Administrativo no Brasil carecia (e ainda carece) de uma
verticalização crítica, com o objetivo de questionar seus pressupostos teó-
ricos e os resultados que são obtidos por meio de teorias impregnadas de
conceitos passíveis de severas restrições e desconstruções, sobretudo no
plano epistemológico.
A origem e a demanda sistêmica de reprodução das relações ca-
pitalistas explicam o conceito de interesse público e a sua importância
como véu que encobre o funcionamento dos aparelhos estatais em be-
nefício preponderante de uma classe dirigente, ainda que ocorram pon-
tuais usos progressistas do aparato do Estado em benefício das classes não
dominantes. Descortina-se o viés ideológico e estrutural do conceito de
interesse público, o qual se constitui, não raro, como planificador fictício
dos conflitos sociais, constituindo-se em verdadeiro “óleo” que possibi-
lita às engrenagens políticas e jurídicas de reprodução do capitalismo o
movimento uniforme e sem “fricções” que poder ia travar ou romper
com o funcionamento de todo o sistema.661
Diante de toda filtragem crítica realizada, com a opção epistemo-
lógica pelo materialismo histórico e algumas de suas derivações no
Fernando (Coord.). Desorganizando o consenso: nove entrevistas com intelectuais à
esquerda. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 85.
661 “Nesse contexto, é possível perceber qual o trabalho específico do discurso ideológico:
realizar a lógica do poder fazendo com que as divisões e as diferenças apareçam como
simples diversidade das condições de vida de cada um, e a multiplicidade das instituições,
longe de ser percebida como pluralidade conflituosa, apareça como um conjunto de
esferas identificadas umas às outras, harmoniosa e funcionalmente entrelaçadas, condição
para que um poder unitário se exerça sobre a totalidade social e apareça, portanto,
dotado de aura de universalidade, que não teria se fosse obrigado a admitir realmente
a divisão efetiva da sociedade em classes. Se tal divisão fosse reconhecida, teria de
assumir-se a si mesmo como representante de uma das classes da sociedade. Para ser posto
como o representante da sociedade no seu todo, o discurso do poder já precisa ser um
discurso ideológico, na medida em que este se caracteriza, justamente, pelo ocultamento
da divisão, da diferença e da contradição”. CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o
discurso competente e outras falas. 13ª ed. São Paulo: Cortez, 2011, pp. 31/32.
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CAPÍTULO IV - ALTERNATIVA MATERIAL CRÍTICA E PRAGMÁTICA...
plano filosófico, sociológico e jurídico críticos, resta muito pouco (ou
nada) do conceito de interesse público tal qual defendido pela escola
administrativista liderada por Celso Antônio Bandeira de Mello. Tratan-
do-se de conceito de notória matriz liberal, cuja importância histórica
e estrutural revelam seu caráter ideológico e político, resta a inevitável
constatação de que o interesse público se concretiza como conceito
jurídico de origem classista, indispensável na constituição e reprodução
das relações capitalistas na medida em que torna opaca a luta de classes.
É dizer, se se compreende que a sociedade moderna é estratificada em
classes sociais, cujas bases materiais de sobrevivência são antagônicas
(possuidores x despossuídos) e os interesses colidentes, a equalização
fictícia desse fenômeno social e histórico, por meio desse conceito jurí-
dico, tor na-se insustentável.
A partir da linha crítica traçada, a pretensão de desconstrução do
conceito de interesse público foi completada, se não exaustivamente, en-
tende-se que ao menos alguns pontos centrais foram levantados e tratados
dentro dos limites de densidade e de capacidade impostas a este trabalho.
Mas, ao cabo, surge um dos grandes dilemas de uma proposta de
teoria crítica, em especial na seara do Direito. Revelado o caráter ideo-
lógico do conceito de interesse público, do qual pouco se aproveita em
termos de conclusão e proposição crítica, fica pendente a pergunta: O
que fazer? Como não se iludir com um mero estudo “denuncista”? Há
opções no plano da ação imediata?
A crítica do Direito, com fundamento no método materialista his-
tórico, e a sua importância de mostrar as etapas, instâncias e aparelhos de
reprodução do capital que se apresentam de forma universal e neutra, não
podem conduzir, por outro lado, a uma rasa concepção economicista ou
voluntarista do Direito. Deve-se evitar uma análise e proposta que condu-
za a encarar o Direito como simples epifenômeno ou reflexo da infraestru-
tura, apenas um efeito ilusório e fantasmagórico, como alerta Clèmerson
Merlin Clève, cujo objetivo é tão somente ocultar a realidade concreta.662
662 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Para uma dogmática constitucional emancipatória. Belo
Horizonte: Fórum, 2012, p. 57.

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