A evolução socioeconômica e o ambiente do trabalho

AutorMarcelo Rodrigues Prata
Páginas111-134

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3.1. Introdução

Abordaremos as diversas fases relativas à saúde do trabalhador, contextualizado-a na evolução socioeconômica da humanidade, mais precisamente no que se refere ao laborista ocidental do norte. Realçando-se, no entanto, para efeitos didáticos, a evolução da saúde do trabalhador no Brasil, face às peculiaridades de nossa História. A seguir, destacaremos os principais problemas da atualidade concernentes ao meio ambiente do trabalho, sendo que o tópico da globalização, face à sua inerente amplitude, merecerá um capítulo à parte.

3.2. Abordagem histórico-filosófica do trabalho humano

Não é apenas o homem que trabalha, há pássaros, v.g., que constroem ninhos de forma intricada, assim como as abelhas criam as suas formidáveis colmeias. Nada obstante, os animais agem por instinto, ou seja, não é preciso que ninguém os ensine a realizar as tarefas necessárias à sua subsistência. Por sua vez, para o ser humano o trabalho não é uma atividade instintiva, mas cultural, ou seja, ele é ensinado a trabalhar, de geração em geração, sendo que o valor do trabalho é reforçado culturalmente.398

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O mais importante, no entanto, é que o trabalho do homem representa uma forma de expressão da criatividade humana, é uma maneira de se revelar socialmente útil. Além disso, é uma forma de manter-se fixado à realidade.399 Aliás,

Friedrich Nietzsche escreveu: “Uma profissão é a espinha dorsal da vida”.400

Em outras palavras, o trabalho é essencial ao homem, à sua condição humana.

Nada obstante, essa é uma visão contemporânea do trabalho humano. Na Antiguidade (4000 a.C. a 476 d.C.), o trabalho manual era encarado com desdém, ou mesmo como tortura. Uma prova dessa visão está registrada na Bíblia (Gn 3, 16-19), na qual temos que, após cometerem o pecado original, o homem e a mulher foram amaldiçoados com a imposição do trabalho. A Eva foi dito: “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores”. Vale dizer, o “trabalho de parto”, principal função feminina à época, era encarado como uma punição. Enquanto a Adão foi reservado:

Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar.

Noutros termos, aí, o trabalho — especialmente o manual — é associado à culpa, ao castigo.401 Vestígios dessa antiga ideia sobrevivem até hoje...402

Por sinal, a própria palavra trabalho tem origem na expressão latina tripalium, um instrumento de tortura à época da Roma Antiga. A propósito, consoante o professor Cláudio Moreno, o tripalium era “... uma espécie de tripé

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formado por três estacas cravadas no chão, onde eram supliciados os escravos. Reúne o elemento ‘tri’ (três) e ‘palus’ (pau) [...]. Daí derivou-se o verbo tripaliare (ou trepaliare), que significava, inicialmente, torturar alguém no tripalium”. E continua Moreno: “Vão-se os objetos, ficam as palavras: por volta do séc. 12, o termo já tinha ingressado nas línguas românicas — traball, traballo e trabalho (Port.), travail (Fr.), trebajo, trabajo (Esp.), travaglio (It.)”.403

Ora, se o trabalho era encarado como um castigo divino, oriundo de um pecado original, por conseguinte, o trabalhador era visto como um pecador, que purgava sua culpa por intermédio do trabalho. Aliás, na Antiguidade, o trabalho remunerado era exercido por uma minoria de homens livres, a maior parte da atividade laboral era praticada por escravos, geralmente antigos prisioneiros de guerra. Os escravos, ressalte-se, nem mesmo o status de seres humanos possuíam, eram qualificados como coisa (res).

Mais adiante, na Idade Média (476 d.C. a 1453), aqueles que pretendiam a proteção dos grandes senhores de terra abriam mão de sua liberdade e passavam a fazer parte do conjunto de bens da propriedade. Em compensação, os servos da gleba, como eram chamados, tinham o direito de cultivar um pedaço de terra para si, mas, em contrapartida, trabalhavam para o senhor feudal e compunham a reserva de guerreiros destinados a proteger o feudo. Já a partir do século XII, formaram-se as corporações de ofício, nas quais os artesãos trabalhavam numa espécie de cooperativa, dando origem à burguesia, sobre a qual voltaremos a falar mais adiante.

3.3. Hannah Arendt e a condição humana

Hannah Arendt — em sua obra clássica: A condição humanafaz uma série de considerações filosóficas e políticas sobre a questão do trabalho. Um dos pontos principais de sua argumentação deita raízes na diferenciação histórica entre labor e trabalho. O primeiro seria aquele que nada acrescenta de permanente no mundo, cuja destinação é tão somente a manutenção biológica de quem labuta. É o que ocorre com o agricultor e a empregada doméstica, por exemplo. O labor nunca foi considerado uma atividade nobre — posto que, atualmente, seja revestido de dignidade jurídica por quase todas as Constituições.

Já o trabalho gozava de um status diferenciado. Os gregos varões e proprietários de terras não se dedicavam fisicamente à agricultura, de tal forma que pudessem voltar suas energias à vita activa, ou seja, à atividade política. Essa, sim, considerada um trabalho nobre, por intermédio da qual os destinos da pólis (?????) eram decididos. Essa, por seu turno, era uma comunidade organizada, a cidade-estado, composta por cidadãos (em grego “politikos”),

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ou seja, homens livres e iguais, nascidos no solo da Cidade. Aliás, Hannah Arendt convoca o leitor a retomar a sua participação política no sentido mais nobre que essa atividade possui.

3.4. Evolução socioeconômica brasileira
3.4.1. Introdução

Não se pode discorrer sobre o meio ambiente do trabalho no Brasil sem que se tenha ao menos uma vaga ideia do caminhar de sua História peculiar, na qual o patrimonialismo e a escravidão deixaram marcas muito profundas em todos os aspectos da sociedade brasileira.404

3.4.2. A formação do estado patrimonial

Raymundo Faoro ensina que, enquanto no restante da Europa a queda do Império Romano deu origem ao Feudalismo, que, por sua vez, com o surgimento da burguesia, evoluiu para o capitalismo industrial, em Portugal a evolução histórica se deu de forma diferenciada. Ali a reconquista militar e a independência em relação à Espanha, lideradas pelo rei, centralizaram o poder político e econômico em suas mãos. Noutros termos, a relação entre o rei e os seus súditos era direta, sem a intermediação de nobres proprietários de grandes extensões de terras.

Por outro lado, em outros países da Europa, a burguesia era uma classe oriunda dos pequenos artesãos e das corporações de ofício, que detinham os meios de produção e, aos poucos, suplantaram o poder econômico e político da nobreza e do clero. O advento das tecelagens movidas a vapor veio a acelerar esse processo que culminou no capitalismo industrial.

Já em Portugal a evolução se deu de forma diferente. A sua posição geográfica favoreceu os atos de interposição da troca de mercadorias, tanto no

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Mediterrâneo quanto no norte da Europa. A expansão do comércio marítimo e a descoberta de novas terras deram origem ao capitalismo mercantilista.

Essa intensa atividade comercial, porém, não poderia se dar sem as autorizações reais, sendo que o rei incentivava a atividade comercial por intermédio de empréstimos e da criação de um seguro contra a perda das cargas; por sua vez, ele tirava grande proveito desse comércio por meio da cobrança de impostos. Na prática, a burguesia comercial atuava como agente do rei. Todavia o capitalismo mercantilista desestimulou o desenvolvimento da agricultura e da indústria em Portugal, o que explica o seu atraso em relação aos demais países da Europa, mesmo tendo possuído vastas colônias.

3.4.3. O estamento

O Brasil foi a principal colônia de exploração portuguesa, sendo para cá, infelizmente, transportado o modelo de Estado patrimonial de estamento. A propósito, o estamento é um grupo de pessoas formadas por homens instruídos, que ocupavam funções administrativas no governo e foram o gérmen da burocracia. O estamento não tinha o poder econômico da burguesia comercial, sendo que o poder territorial estava nas mãos do rei. Ele, no entanto, em tudo se assemelhava a uma nova aristocracia, tanto em relação ao seu comportamento refinado quanto na busca por honrarias.

Por sinal, no extremo oposto, o trabalho para os colonizadores europeus que chegaram à América do Norte — para povoá-la e não simplesmente com um objetivo de explorar a terra — era uma forma de louvor a Deus. O labor, a economia e o espírito empreendedor foram de vital importância para a riqueza dos países desenvolvidos. A propósito, Max Weber ensina que a ascese calvinista criou uma “... sanção psicológica através da concepção do trabalho como vocação, como meio excelente, quando não único de atingir a certeza da graça. [...] Também interpretava como ‘vocação’ a atividade do empresário”.405

Por seu turno, ensina Faoro que, enquanto no centro da Europa respiravam-se os ares da Renascença, Portugal ainda estava mergulhado no pensamento...

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