Meio Ambiente do Trabalho - Precaução e Prevenção - Princípios Norteadores de um Novo Padrão Normativo

AutorTereza Aparecida Asta Gemignani - Daniel Gemignani
Páginas13-24

Page 13

O ordenamento jurídico da modernidade foi edificado sob o binômio dever ser/sanção. As normas de conduta estabelecem determinados comportamentos. Se violadas, ensejam a aplicação de certa penalidade. O Estado-juiz atua somente quando provocado, em caso de ameaça concreta ou após a ocorrência de lesão.

A intensificação do conflito social, que marcou as últimas décadas, veio demonstrar que isso não era suficiente para que o direito pudesse cumprir seu objetivo de dirimir conflitos e obter a pacificação social com justiça.

Nestes tempos de sociedade líquida, como define o sociólogo Zygmunt Bauman, a estratégia de obsolescência programática, que num primeiro momento foi engendrada para estimular a atividade econômica, chegou a um impasse.

Com efeito, o que se convencionou denominar "obsolescência programada" surgiu como alternativa na primeira metade do século passado, visando estimular a atividade industrial para superar a grande depressão causada pelo crash de 1929. Consistia na prática de reduzir a vida útil dos equipamentos para poder vender mais e, assim, impulsionar a retomada econômica. Com o tempo, consertar o que estava quebrado ficou tão caro que era melhor jogar fora e comprar um novo. Jogar fora o velho produto e comprar a última novidade tecnoló-

Page 14

gica deveria ser estimulado, porque, se as pessoas continuassem a comprar, a atividade econômica permaneceria aquecida e todos teriam emprego.

Entretanto, a intensificação deste processo de troca do velho (embora ainda passível de conserto) pelo novo, também levou ao desperdício de grandes quantidades de matéria-prima, água e energia, não só das utilizadas na produção do que está sendo jogado fora, mas também do que é freneticamente produzido para durar pouco, o que vem causando sérias preocupações quanto ao esgotamento dos bens da natureza, provocando danos ao ecossistema e ao meio ambiente, e comprometendo as condições de vida das próximas gerações.

Neste sentido, o documento intitulado O futuro que queremos, recentemente divulgado pela Organização das Nações Unidas1, chama a atenção para a importância de uma governança ambiental, diretriz que serve de referência também para o ambiente onde o trabalhador passa grande parte de sua vida produtiva.

Mas não é só.

Este modus operandi marcado pela lógica do descarte, calcado na ideia matriz de que tudo tem que ser substituído rapidamente, vem gerando uma mentalidade que passou a ser aplicada também em relação à própria pessoa do trabalhador, sua segurança, saúde, integridade física e mental.

Este artigo se propõe a examinar tais questões, focando a análise em seus desdobramentos no meio ambiente de trabalho e os efeitos que provoca na formação de um novo padrão normativo.

2. A lógica do descarte

O intercâmbio comercial trouxe muitos benefícios para a humanidade. A troca de produtos, serviços e informações sempre se constituiu um importante motor de desenvolvimento.

Entretanto, na contemporanei-dade, a lógica da compra/venda passou a monitorar os demais atos da nossa vida, aniquilando o conceito de valor e substituindo-o pela ideia de preço. Assim, pouco importa o valor, basta saber qual é o preço.

O mais assustador é que essa mentalidade vem sendo aplicada também ao ser humano, destituindo-o da condição de sujeito e transformando-o em objeto passível de troca, cujo "preço" é aferido pela possibilidade "de uso".

Nesta toada, pouca importância se dá às condições de segurança e saúde no meio ambiente de trabalho pois, quando um trabalhador fica incapacitado, é fácil descartá-lo e substituí-lo por um novo.

Se durante todo o século XX lutamos bravamente para impedir que o trabalho fosse reduzido à situação de mercadoria, no início deste novo século nosso desafio é maior ainda: impedir que a própria pessoa do trabalhador seja reduzida à condição de mercadoria, num momento em que a descoberta de novas tecnolo-gias e a exigência de intensificação dos ritmos das tarefas tem precari-zado o meio ambiente de trabalho, aumentando os acidentes e provocando o surgimento de novas doenças2.

Neste contexto, revelam-se cada vez mais insuficientes as singelas respostas até hoje oferecidas, seja a consistente no pagamento de um adicional pela prestação laboral em condições de insalubridade e peri-culosidade, seguida de um rápido "descarte" do ser humano quando perde seu "uso", seja a sedimentação da que se pode denominar "cultura do EPI-Equipamento de Proteção Individual", que transfere ao empregado o ônus de se proteger dos riscos ambientais como algo natural, ao invés da adoção de equipamentos de proteção coletivo, os denominados EPC, ou de modificações na organização do trabalho, de modo que o meio ambiente de trabalho seja adequado ao ser humano, que despende lá importante parte de seu tempo de vida3

3. Repristinação da questão social?

A chamada questão social começou a aflorar com maior intensidade em meados do século XIX, em decorrência das penosas e adversas condições de trabalho que provocavam lesões cuja reparação não encontrava resposta no direito comum.

A necessidade de construir um novo direito, que olhasse além das teóricas categorias jurídicas codificadas e prestasse mais atenção à realidade da vida e dos fatos coti-dianos, teve que percorrer um longo caminho até conseguir a edificação de uma nova base axiológica, que lhe desse suporte para a autonomia, tarefa para a qual, na América do Sul, tanto Cesarino Junior4 quanto Américo Plá Rodriguez5 contribuíram de forma significativa, para a consolidação do direito do trabalho como ramo autônomo, regido por conceitos próprios, assim passando a regular o mundo peculiar das relações trabalhistas.

Entretanto, as décadas finais do século XX registraram mudanças significativas, inclusive na maneira de trabalhar e na organização dos núcleos produtivos. A grande fábrica fordista deu lugar a conglomerados autônomos, marcados por atuação interrelacionada e pela intensificação do ritmo de trabalho.

A utilização do telefone celular e do computador transformaram as ferramentas de trabalho, aumentando as horas à disposição do empregador e invadindo os tempos da

Page 15

vida privada, criando de maneira camuflada e sub-reptícia novas formas de servidão.

O estímulo à atividade econômica, mediante a generosa concessão de financiamentos por longo prazo, veio formatar aquilo que o sociólogo Zygmunt Bauman6 define como vida a crédito. Explica que antes, na sociedade dos produtores, o "adiamento da satisfação costumava assegurar a durabilidade do esforço do trabalho", por isso era preciso sacrificar o presente para poder gozar no futuro. Hoje, na sociedade dos consumidores, é preciso garantir a "durabilidade do desejo", gozar acelerada e exaustivamente o presente, vivendo "de crédito", cuja amortização se dará posteriormente, obrigando o ser humano a trabalhar intensamente para poder pagar o extenso rol dos débitos que assumiu na pretensa satisfação de desejos que nunca terminam, gerando novas situações de servidão que vão formar o caldo de cultura para o ressurgimento da questão social.

Embora se apresente com nova roupagem, na verdade o que ocorre é uma repristinação da questão social do século XIX, que volta com força ante a dimensão da lesão que se avizinha, exigindo novas formas de proteção jurídica para evitar que o estado de constante servidão transforme o ser humano num obje-to descartável.

Ao lado de um movimento de ascensão do individualismo, marcado pelo mote nietzschiano7 "devo completar-me de mim mesmo", e de rejeição do solidarismo, que tem reduzido a participação dos trabalhadores na vida sindical, observa-se uma preocupante intensificação das macrolesões, notadamente no meio ambiente de trabalho, trazendo para o foco da discussão a questão dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, colocando em cheque o modelo de acesso àjustiça pela categorização de interesses e direitos.

Por isso Cássio Scarpinella Bueno8 chama atenção para a necessidade de aprimorar, ampliar e otimizar a eficiência do acesso co-letivo à justiça, superando a baliza da categorização. Ressalta que:

"(...) os direitos e interesses difusos, tanto quanto os coletivos e os individuais homogêneos, não são classes ou tipos de direitos preconcebidos ou estanques, não interpenetráveis ou relacionáveis entre si. São - é esta a única forma de entender, para aplicar escor-reitamente, - a classificação feita pela lei brasileira - formas preconcebidas, verdadeiros modelos apriorísticos, que justificam, na visão abstrata do legislador, a necessidade da tutela jurisdicio-nal coletiva. Não devem ser interpretados, contudo, como realidades exclu-dentes umas das outras, mas, bem diferentemente, como complementares."

O meio ambiente de trabalho, pela dimensão e importância que apresenta, congrega direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, cuja análise deve ser feita sob a perspectiva constitucional.

Com efeito, a constitucionali-zação dos direitos trabalhistas é a resposta que vem sendo apresentada pelo sistema normativo à nova questão social surgida na contem-poraneidade, apontando para a edificação de um novo padrão axioló-gico, que a doutrina vem sedimentando na aplicação dos direitos fundamentais também às relações entre particulares, superando o antigo modelo que os restringia às relações do cidadão com o Estado.

Conforme já ressaltamos em outro artigo9, uma "das características mais expressivas da pós-modernidade, que marca a época contemporânea, é a intensificação das relações...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT