Amianto e a divisão internacional do risco: a falácia do uso controlado

AutorFernanda Giannasi
Páginas71-91

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Fernanda Giannasi **

O brasil e a geopolítica do amianto

O Brasil é atualmente o terceiro maior produtor mundial de amianto atrás da Rússia e da China; o terceiro maior exportador depois da Rússia e Cazaquistão; o quarto maior consumidor após a Rússia, China e Índia1. Faz coro, no comércio global dos tóxicos, dentro da lógica da divisão internacional do trabalho e dos riscos, com países sem tradição democrática, onde graça forte repressão aos movimentos sociais, que possam enfrentar de igual para igual os poderosos lobbies industriais, confirmando a tese de que estes tipos de tecnologias sujas, perigosas, desacreditadas, cancerígenas, como é o caso do amianto, só se sustentam em nações pobres, vulneráveis social e ambientalmente.

Os números em toneladas de 20152 confirmam a importância do Brasil na geopolítica do amianto, respondendo por 15,3% do total produzido mundialmente (2.026.200 ton.), sendo 34,3% da produção nacional exportada, principalmente, para os países asiáticos, como Índia, Indonésia, Sri Lanka, Tailândia, os latino-americanos, Colômbia, Bolívia e México, bem como Estados Unidos e Alemanha, especialmente para a indústria automotiva americana e as de cloro-soda em ambos os países. No ano de 2013, estas exportações foram da ordem de US$ 6.508.782,00 (aproximadamente 20 milhões de reais)3.

Brasil: Produção, exportação e utilização do amianto em 2015

Produção: 311.000 t

Exportação: 106.784 t

Consumo aparente: 204.216 t

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As estratégias industriais

A indústria do amianto no Brasil4, desde os seus primórdios, foi explorada principalmente por duas empresas multinacionais: o grupo francês Saint-Gobain do Brasil Produtos Industriais e para Construção Ltda. — Divisão Brasilit5, que sucedeu a Compagnie-Pont-à-Mousson, e a filial do conglomerado suíço-belga, denominada ETERNIT6 DO BRASIL CIMENTO AMIANTO S.A. (atualmente Eternit S. A.).

A Brasilit foi a primeira a se instalar no país, logo que obteve autorização para explorar a jazida da fazenda de São Félix do Amianto em Bom Jesus da Serra (anteriormente distrito de Poções, no Estado da Bahia), no final dos anos 30 do século passado, constituindo a empresa SAMA7. Ali permaneceu até 1967, quando, em sociedade com a ETERNIT, deu início à exploração da mina de Cana Brava no Município de Minaçu, Estado de Goiás, com composição societária de 55% da Brasilit e 45% da Eternit. Esta parceria durou até 1997, quando a Eternit S. A. assumiu o controle total das atividades de produção do amianto no Brasil e também do passivo ambiental da antiga mina da Bahia (sucessora em interesse).

Atualmente, a SAMA é a única mineradora de amianto crisotila ou do chamado “amianto branco” em atividade no país e uma das maiores do mundo (a terceira em produção).

Em total colaboração, os dois grupos industriais dividiram os lucros provenientes da mineração (1967-1997) e também das fábricas de cimento-amianto (1993-2004), por meio da fusão na joint-venture ETERBRAS Tecnologia Industrial Ltda. (55%-Brasilit e 45%-ETERNIT), fundada em 1991, após o anúncio oficial e mundial do afastamento de

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Stephan Schmidheiny8, herdeiro do grupo Eternit, nos negócios que envolviam a produção e manufatura do amianto. Esta fusão, que passou a controlar 55% do mercado nacional de materiais de construção civil para coberturas, foi de pronto rejeitada pelo CADE — Conselho Administrativo de Defesa Econômica com base na lei antitruste, a qual foi “bypassada” com a constituição da nova empresa ETERNIT S/A.

Tanto a Brasilit como a Eternit contaram sempre com o apoio irrestrito da maioria dos seus sindicatos de trabalhadores “cordatos” aos seus interesses, conforme iremos debater adiante, organizados na CNTA-Comissão Nacional dos Trabalhadores do Amianto9 e vinculados à CNTI-Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria, que serviram de escudo para estas empresas tanto no tocante às mais simples reivindicações e direitos trabalhistas, como nos debates calorosos travados no país pela proibição do amianto, nos últimos 30 anos. Mais recentemente, protagonizaram no STF — Supremo Tribunal Federal (corte suprema constitucional do país) a deplorável tentativa de revogar as leis de banimento do amianto dos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Pernambuco e do município de São Paulo, questionando as suas inconstitucionalidades, baseados na Lei Federal n. 9.055/9510, que regulamenta o “uso controlado do amianto crisotila no Brasil”. As ações propostas (ADI — Ação Direta de Inconstitucionalidade e ADPF — Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), em curso no STF, questionam se houve a invasão de competência dos estados e município em matéria regulamentada por lei federal.

Em 8.5.2001, dez anos após a constituição da ETERBRAS, o então presidente Élio Martins, da Eternit S/A, em depoimento à Comissão Especial da Câmara Federal dos Deputados, que apreciava o Projeto de Lei n. 2.186/96 sobre “a substituição progressiva da produção e comercialização de produtos que contenham amianto no Brasil”, assim explicou a composição acionária do grupo à época: “A Eternit é uma empresa nacional de capital aberto, com ações na bolsa de valores, não possuindo acionista controlador, sendo seus principais acionistas DINAMO — Fundo de Investimentos em Ações (25,17%); Fundo de Pensão do Banco Central — Previdência Privada — CENTRUS (17,49%); Saint-Gobain (Brasilit) com 9,11%; Fundo de Participação Social do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) (8,41%); AMINDUS HOLDING AG (6,81%) e Empreendimentos e Participações HOLPAR (4,31%).”11

É interessante observar nesta composição societária, mais de 10 anos após o anúncio oficial do encerramento das atividades da utilização do amianto no Brasil, pelo grupo suíço-belga ETERNIT, que a empresa AMINDUS HOLDING AG, pertencente ao conglomerado do magnata Stephan Schmidheiny, ainda figurasse como acionista da Eternit S/A. Questionado o vértice empresarial helvético sobre a contradição entre discurso e prática empresarial, o porta-voz de Schmidheiny, Peter Schuermann, assim respondeu ao editor de “SonntagsBlick” em mensagem de 30.12.2004:

É certo que Stephan Schmidheiny vendeu as ações da Eternit no Brasil em 1988; nem ele nem ninguém de suas holdings teve ou tem qualquer ação da empresa desde então. Ao longo de décadas houve várias empresas com o nome Amindus. No documento que me foi apresentado não há evidência que seja a Amindus Holding de Glarus que você está pensando, pois há apenas menção à Amindus Holding e Amindus Holding AG.12

Em 2004, o grupo Saint-Gobain encerra definitivamente suas atividades com o amianto no Brasil, pondo fim à parceria na ETERBRAS. Desde 1999, a Saint-Gobain vinha desenvolvendo uma nova tecnologia, para substituir o

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amianto, na fabricação de telhas e caixas d’água, inicialmente utilizando o PVA (poli-vinil álcool) e celulose, ambos importados. Em 2003, optou por substituir a fibra de PVA pelo polipropileno (PP), produzido nacionalmente, tendo para isto construído uma fábrica para a produção do fio sintético na cidade de Jacareí.

Portanto, a decisão de parar a utilização do amianto no processo de fabricação do fibrocimento no Brasil, como já tinha sido adotada, mais de uma década antes, pelo herdeiro suíço Stephan Schmidheiny, e de se livrar das ações da ETERNIT, teve como fator principal a proibição do mineral ocorrida em seu país de origem, a partir de 1º de janeiro de 1997, associado à pressão exercida pela mídia e opinião pública francesas sobre os acionistas da holding Saint-Gobain, que deixaram os dirigentes da corporação numa situação delicada, acusados de promover o chamado “duplo padrão ou dupla moral”, que é uma prática condenada de se manter standards diferentes entre a matriz e as empresas afiliadas em países, geralmente, mais vulneráveis social e ambientalmente. É também conhecida como racismo ou injustiça ambiental. Nenhuma empresa moderna, que segue normas internacionais e compliances, quer ser acusada de tal prática.

Em função destas estratégias do mercado global, a ETERNIT S.A., 100% nacionalizada, passou a controlar os preços dos produtos de fibrocimento por deter a exploração da fibra mineral, por meio de sua subsidiária SAMA, sua distribuição e o custo da mão de obra pela “parceria” com sindicatos colaborativos e sócios no agressivo lobby de defesa do amianto. Por conseguinte, é a atual líder do mercado de coberturas onduladas, chapas e painéis lisos, embora também produza linhas de materiais asbestos-free (ou sem amianto) denominadas ETERFLEX e ETERPLAC. Este setor de materiais de construção, em especial as coberturas de fibrocimento com amianto, sempre foi cartelizado.

A ABRA-Associação Brasileira do Amianto, fundada e mantida, principalmente pela Brasilit, foi a principal porta-voz até final da década de 90 da defesa do mineral cancerígeno. A ABRA teve um papel central na criação do Comitê de Estudos do Amianto (CEA) no Brasil nos moldes do CPA francês (Comité Permanent Amiante), de composição tripartite, que incentivou a política governamental e a ação sindical para a adoção da tese do “uso controlado do amianto” e na ratificação e promulgação da Convenção n. 16213 da OIT — Organização Internacional do Trabalho14 e sua regulamentação15 num prazo celérrimo, não usual em nosso país16.

O CEA foi, por nós, extinto em 1991, por...

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