Amor, consumo e sexualidade: o que as mulheres querem?

AutorTúlio Cunha Rossi
Páginas59-90
http://dx.doi.org/10.5007/1984-8951.2014v15n106p59
Amor, consumo e sexualidade: o que as mulheres querem?
Love, consumption and sexuality: What Women Want?
Túlio Cunha Rossi
1
Resumo
Apresenta-se uma análise interpretativa da produção cinematográfica “Do que as
mulheres gostam”, tendo por base a metodologia de análise fílmica em Sociologia,
proposta por Pierre Sorlin (1982), que toma o filme como uma construção de sentidos
que evoca discursos e signos, mais ou menos reconhecidos no meio social, tanto de
produção quanto de público pretendido. A partir disso, objetiva-se problematizar a
construção e a reprodução de estereótipos de gênero, explorando possíveis relações
entre consumo, sexualidade e imagens, tanto do masculino quanto do feminino.
Realiza-se, por fim, uma análise de duplo enfoque a partir da narrativa fílmica,
discutindo-se os elementos socioculturais presentes dentro do filme e como eles
expressam questões mais amplas, entrelaçando a construção social da realidade à
construção cinematográfica de valores, signos e relações entre sexos.
Palavras-chave: Gênero. Afetividade. Consumo. Indústria cinematográfica. Construção
social da realidade.
Abstract
It is presented an interpretive analysis of the film What Women Want, based on the
methodology of film analysis in sociology proposed by Pierre Sorlin (1982), taking the
film as a construction that evokes discourses and signs more or less recognized both in
the social context of production and audience. From this, we aim to discuss the
construction and reproduction of gender stereotypes, exploring possible relations among
consumption, sexuality and images, both of masculine and feminine. Finally, it is done
an analysis of double focus on the filmic narrative, discussing the social and cultural
elements present within the film and how these express broader issues, intertwining the
social construction of reality in the cinematography construction of values, signs and
relationships between sexes.
Keywords: Gender. Affectivity. Consumption. Film industry. Social construction of
reality.
Introdução
Este artigo consiste em uma análise sociológica do filme Do que as mulheres
gostam (What Women Want, 2000),
2
com ênfase na reprodução de estereótipos de
1
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós doutorando em Sociologia no Projeto Sem Reservas, na
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: tuliorossi@gmail.com.
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não Adaptada.
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gênero e de ideais de amor romântico hollywoodianos, a partir da metodologia e das
reflexões desenvolvidas na tese Projetando a Subjetividade: A construção social a
partir do cinema (ROSSI, 2013). Analisando a construção da narrativa fílmica,
amparada na reprodução de símbolos e discursos reconhecidos no senso comum,
problematizam-se relações culturalmente estabelecidas na contemporaneidade entre
consumo, gênero e identidades e tomadas como expressões naturais da própria
sexualidade.
A relevância analítica do filme reside em como ele apresenta mudanças de
comportamento e percepção do protagonista quando, inexplicavelmente, ele adquire o
dom de ouvir pensamentos femininos. Em acréscimo, o sucesso de bilheteria, suas
reprises em canais de televisão e o prestígio do ator principal, Mel Gibson, como um
dos símbolos masculinos de maior sucesso do cinema dos anos 1990, indicam se tratar
de um filme bastante conhecido que mobiliza discursos e opiniões, em alguma medida,
aceitos e às vezes partilhados por muitos espectadores. Trata-se então de uma
construção que utiliza referências simbólicas, discursos e imagens amplamente
reconhecidos e compartilhados pelos espectadores, de maneira que o estudo de sua
produção necessariamente conduz a reflexões que extrapolam o universo diegético
para penetrar numa análise do cotidiano e das significações de hábitos de consumo,
distinções de gênero e relacionamentos afetivos influenciadas também pelas mídias
cinematográficas, televisivas e pelas campanhas publicitárias por elas propagadas.
A análise resgata trechos significativos do filme e os discute dentro de seu
encadeamento com o restante da narrativa, de forma a constituir mensagens e
posicionamentos morais que expressam características e percepções tanto do meio no
qual o filme é produzido quanto para o qual é produzido, promovendo um diálogo
constante com abordagens sociológicas das temáticas de gênero, consumo e
sociologia das emoções.
2
O título brasileiro parece suavizar a questão proposta: “O que as mulheres querem”. Gostar tem a ver
com agradar, enquanto o verbo querer é mais enfático; não se trata de algo vago que pode agradar
alguém, mas de uma vontade, objetivo ou desejo, normalmente mais específico. Querer implica
demanda, o que pode facilmente assumir caráter de reinvindicação, particular ou coletiva. Assim, a
versão brasileira parece preservar uma certa banalização do querer feminino para transformá-lo em uma
espécie de capricho, de simples apreciação de gosto.
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1 A (des)construção cinematográfica de relações naturalizadas entre os sexos
A mobilização de signos reconhecidos pelo grande público, no tocante a
questões de gênero, nesse filme já começa pela escolha de seu ator principal. Mel
Gibson, sem dificuldades, pode ser visto como ícone de masculinidade do cinema dos
anos 1980 e 1990, de forma que a escolha do ator para viver essa personagem que se
“feminiliza” potencializa a construção cômica baseada, ao mesmo tempo, na
reafirmação e no rompimento da imagem estabelecida ao longo de sua carreira
precedente. Mel Gibson se consagrara a partir de filmes considerados tipicamente
voltados ao público masculino, com destaque para as franquias Mad Max (1979, 1981,
1984) e Máquina Mortífera (Lethal Weapon, 1987, 1989, 1992, 1998). Nesse sentido,
o ator cumpre a função que Jarvie (1974, p. 298) atribui às estrelas de cinema de:
[...] estabelecer pontos de referência fixos ou de familiaridade para o
espectador. A imagem que este tem de um novo filme é, sem dúvida, bem mais
vaga. Mas se nele figuram estrelas, o campo de suas expectativas poderá se
ampliar consideravelmente, pois, ao menos, ele conhece o aspecto e a voz dos
protagonistas.
Destarte, tem-se um referencial cinematográfico de “masculinidade” bem claro,
com o qual o filme joga para criar suas situações cômicas, ao aproximá-lo de um
universo construído caricatamente como mais “feminino”. Mais do que caracteres
tomados por naturais, tratam-se, na verdade, de construções partilhadas de
masculinidade que levam a presumir comportamentos e modos de “ser”. Conforme
Connell (1995, p. 67),
em seu uso moderno, o termo [masculino] presume que o comportamento de
alguém resulta do tipo de pessoa que se é. Isso quer dizer que, uma pessoa
não masculina se comportaria diferentemente: sendo mais pacífica do que
violenta, conciliatória do que dominadora, pouco hábil para chutar uma bola de
futebol, desinteressada em conquista sexual e assim por diante.
O filme investe então nessa imagem estabelecida de Mel Gibson e a reforça,
apresentando Nick, a princípio, como “o cara”,
3
enquanto homem que encarna, entre
3
“A men’s man”.

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