A amplitude da terceirização instituída pela reforma trabalhista e seu impacto no mundo do trabalho

AutorJosé Affonso Dallegrave Neto
Páginas398-410

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1. Surgimento e involução do fenômeno da terceirização

A terceirização é fenômeno recente no mundo do trabalho. Surgiu a partir da mudança do paradigma fordista, em linha de produção horizontal, para a produção flexível toyotista, de linha vertical. No fordismo, quanto maior for a empresa-mãe, melhor será (the big is beautiful), incentivando às grandes corporações agregarem todos os segmentos e etapas da produção. Nos idos de 1950, os japoneses, que têm sério problema espacial e territorial e, portanto, com dificuldade de estocarem seus produtos em grandes pátios, criaram um sistema de produção de modo a atender seus desafios e necessidades físicas. E assim os carros e demais produtos da fábrica passaram a ser produzidos sob medida (just in time), explorando-se ao máximo o uso da informática e da robótica na linha industrial.

De quebra, os capitalistas orientais chegaram à conclusão de que à empresa-mãe seria melhor centrar suas forças no núcleo duro da produção, relegando às empresas subcontratadas as demais atividades secundárias. Nascia, pois, a terceirização da mão de obra. Uma ideia original-mente boa, porém deformada pela prática gananciosa de boa parte dos empresários. Em vez de deixar a terceirização apenas para a atividade-meio, a empresa a estendeu para os serviços essenciais à consecução de seus objetivos sociais em flagrante fraus legis.

Daniela Muradas observa que “a subcontratação e a terceirização são mecanismos próprios da Empresa enxuta e do Estado mínimo, as quais têm por substrato comum a ideia de eficiência, razão instrumental aplicada à produção e ao serviço público com vistas à maximização dos resultados com minimização de custos de produção ou de gastos públicos”. Para atender aos padrões de eficiência, combinam-se a especialização das atividades patronais e a precarização das condições laborais, por meio da utilização de figuras atípicas, flexíveis e com padrões sociojurídicos inferiores, complementa Muradas2.

A Súmula n. 331, III, do TST, até então vem permitindo o uso da subcontratação em atividade-meio da empresa. Ainda assim a tomadora somente deixará de ser prima-riamente responsabilizada pelos créditos trabalhistas dos terceirizados, caso não haja pessoalidade e subordinação direta entre ela e o trabalhador. O mesmo verbete do TST, em seu inciso IV, prevê a responsabilidade subsidiária da empresa tomadora em relação à inadimplência das obrigações trabalhistas por parte do empregador (Empresa de prestação de serviços).

A terceirização ganhou corpo no Brasil a partir da década de 70. Mesmo assim, observa Mauricio Delgado, tal referência aludia tão somente ao segmento público do mercado de trabalho, à luz do Decreto-Lei n. 200/67 (art. 10)3. Além dele, a Lei n. 5.645/70 delimitou os serviços públicos que poderiam ser objeto de terceirização, quais sejam “as atividades relacionadas com transporte, conservação, custódia, operação de elevadores, limpeza e outras assemelhadas”. Na esfera privada, a primeira e mais importante lei sobre terceirização foi a n. 6.019/74, em vigor até hoje, que regula o trabalho temporário. Posteriormente surgiu a Lei n. 7.102/83 referente à terceirização dos serviços de vigilância bancária, a qual restou ampliada pela Lei n. 8.863/94 que estendeu a relação tripartite (tomadora, empregado, terceirizada) para toda a área de vigilância patrimonial (pública e privada).

A partir dessas inovações legais, ocorridas nos idos de 1970, verificou-se verdadeira sanha da classe patronal que passou a terceirizar outras atividades econômicas não autorizadas por lei, implicando significativo aumento do número de ações trabalhistas sobre a matéria. Esse contexto de desordem fez com que o Tribunal Superior do Trabalho editasse, em 1986, a Súmula n. 256, verbis:

Salvo nos casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previsto nas Leis ns. 6.019 e 7.102, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços.

Passados sete anos, ante a inércia do legislador em relação à edição de uma lei geral e reguladora da terceirização, o TST se viu na obrigação de editar verbete mais amplo sobre o tema. E assim o fez ao publicar a Súmula n. 331:

I — A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário. (Lei n. 6.019, de
3.1.1974).

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II — A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional. (art. 37, II, da CF/1988).

III — Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102, de 20.6.1983), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.

IV — O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei n. 8.666, de 21.6.1993).

Posteriormente, por força do julgamento da ADC n. 16, o STF examinou a questão da responsabilidade dos entes da Administração Pública, fato que motivou o Tribunal Superior do Trabalho, em maio de 2011, a modificar a redação da Súmula n. 331, alterando o inciso IV, e inserindo outros dois incisos:

IV — O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.

V — Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n. 8.666, de 21.6.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.

VI — A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.

Esse era o quadro normativo e jurisprudencial consolidado acerca das possibilidades legais de terceirização do trabalho até a edição da Lei n. 13.429/17. Pode-se dizer que durante quatro décadas, desde a edição original da Lei n. 6.019/74, vigoraram duas normas inexoráveis:

— possibilidade de terceirização apenas da atividade-meio, sendo ilícita a contratação de empregados por empresa interposta para atender atividade-fim da empresa;

— isonomia de direitos ao empregado de empresa terceirizada, assegurando as mesmas verbas trabalhistas legais e normativas dos colegas da empresa tomadora que exerçam a mesma função.

Além da previsão expressa do art. 12, a, da Lei n.
6.019/74, essas duas regras encontram-se amparadas pelos princípios constitucionais da Isonomia (art. 5º) e da valorização do trabalho (art. 193). Some-se a eles, o fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), sendo, pois, indigno legitimar a criação de empregados de primeira e segunda classes, que exerçam funções idênticas para um mesmo tomador, em flagrante discriminação e estigma ao trabalhador terceirizado. Vale dizer, os trabalhadores efetivos da tomadora situados em posição proeminente em relação aos terceirizados. Aos empregados da administração pública se estende essa regra isonômica, conforme se depreende de Orientação Jurisprudencial da SDI-1 do TST, verbis:

OJ N. 383. TERCEIRIZAÇÃO. EMPREGADOS DA EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇOS E DA TOMADORA. ISONOMIA. ART. 12, A, DA LEI N. 6.019, DE 3.1.1974. A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com ente da Administração Pública, não afastando, contudo, pelo princípio da isonomia, o direito dos empregados terceirizados às mesmas verbas trabalhistas legais e normativas asseguradas àqueles contratados pelo tomador dos serviços, desde que presente a igualdade de funções. Aplicação analógica do art. 12, a, da Lei n. 6.019, de 3.1.1974.

Com base nesses valores jurídicos, a Súmula n. 331 do TST sistematizou e sacramentou o tema para distinguir a terceirização lícita da ilícita, dispondo sobre os casos especiais em que é possível a contratação por meio de empresa interposta, além de declarar a proibição de terceirização da atividade-fim da empresa. Mauricio Godinho Delgado assim resume o quadro normativo vigente:

Excluídas as quatro situações-tipo que ensejam a terceirização lícita no Direito brasileiro, quais sejam, a) contratação de trabalho temporário; b) atividades de vigilância; c) atividades de conservação e limpeza; d) serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, não há na ordem jurídica do país preceito legal a dar validade trabalhista a contratos mediante os quais uma pessoa física preste serviços não even-tuais, onerosos, pessoais e subordinados a outrem (arts. 2º, caput e 3º, caput, CLT) sem que esse tomador responda juridicamente, pela relação laboral estabelecida.4

Quanto à caracterização da atividade-fim da empresa, ela ocorre, prima facie, pela análise do contrato social...

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