Análise comparativa das exposições de motivos dos códigos de processo civil brasileiros

AutorJoão Pereira Monteiro Neto
Páginas337-372
ANÁLISE COMPARATIVA
DAS EXPOSIÇÕES DE MOTIVOS DOS
CÓDIGOS DE PROCESSO CIVIL BRASILEIROS
João Pereira Monteiro Neto
Doutorando e Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (USP). Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense
de Direito Público (IDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).
Advogado.
Sumário: 1. Introdução – 2. Código de Processo Civil de 1939; 2.1. Breve escorço histórico;
2.2. Exposição de Motivos: características, justicativas e objetivos; 2.3. Alterações centrais –
3. Código de Processo Civil de 1973; 3.1. Breve escorço histórico; 3.2. Exposição de Motivos:
características, justicativas e objetivos; 3.3. Alterações centrais (originais); 3.4. Segunda
fase (reformas posteriores) – 4. Código de Processo Civil de 2015; 4.1. Exposição de Motivos:
características, justicativas e objetivos; 4.2. Alterações centrais – 5. Considerações nais – 6.
Referências bibliográcas – Anexo: quadro comparativo?
1. INTRODUÇÃO
O conhecimento milenar védico, como na versão ocidental reportada em poesia
por John Godfrey Saxe1 ou em f‌ilosof‌ia por Blaise Pascal,2 ensina que a visão isolada
das parcialidades não permite a compreensão do todo. Também a visão do presente
depende de um olhar sobre o passado para viabilizar uma análise em perspectiva, sem
a qual informação pode substituir-se a formação. A construção do conhecimento em
contexto e globalidade permite focar o que é efetivamente pertinente em um mundo vol-
tado para “realidades ou problemas cada vez mais multidisciplinares, transversais”.3
O estudo panorâmico dos fenômenos processuais não desmente a atualidade
nem a pertinência de soluções técnicas outrora empregadas, mas permite que seu
manejo seja expurgado de problemas já identif‌icados, evitando assim o retrocesso. É
necessário “pensar o passado para compreender o presente e preparar o futuro”, como
expunha Heródoto, ao propor a possibilidade de separação entre fatos e mitos segundo
1. SAXE, John Godfrey. The blind men and the elephant. In The poetical works. Household Edition. p. 111-2.
Cambridge: The Riverside Press, 1889.
2. Ao tratar da [in]suf‌iciência do argumento de autoridade na construção do pensamento f‌ilosóf‌ico, Pascal
considera que o acúmulo de conhecimento científ‌ico advém da complementariedade entre gerações, o que
por si não basta se as experiências precedentes forem descontextualizadas pela apreensão subsequente –
PASCAL, Blaise. Pensées. t. I. Paris: Ledentu libraire, 1820, p. 41-51.
3. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação no futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne
Sawaya. Rev. Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000, p. 35-6.
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o exame comparativo das respectivas fontes.4 A desconstrução de inúmeros dogmas
na ciência processual também tem sido possível em razão de método semelhante, e
talvez o exemplo mais óbvio seja o desfazimento do mito da celeridade processual.5
Há eminente índole comparativa em todo “regime de historicidade”, que se
pode def‌inir como modelo de articulação da tríade temporal (passado, presente e
futuro) em determinados contextos e circunstâncias sociais; não basta a análise das
fontes, mas a compreensão e o dimensionamento dos variados resultados dentro dos
respectivos âmbitos de signif‌icação, iluminando a compreensão não apenas sobre “a
totalidade do tempo, mas principalmente [sobre os] momentos de crise do tempo,
aqui e lá, quando vêm justamente perder sua evidência as articulações do passado,
do presente e do futuro”.6
O presente estudo visa justamente a oferecer, em linhas breves e de relevo expo-
sitivo, elementos que permitam avivar o modo de articulação do Código de Processo
Civil brasileiro em seus três episódios ou versões (1939, 1973 e 2015), mediante
exame voltado aos respectivos textos justif‌icadores.
A proposta consiste, basicamente, na análise das características, das justif‌ica-
tivas e dos objetivos gerais apresentados nas Exposições de Motivos dos códigos
brasileiros para as normas de processo civil, com o escopo específ‌ico de formular, à
guisa de conclusão, um quadro comparativo didático, parametrizado por aqueles três
elementos, acrescidos de rol ilustrativo das alterações centrais que acompanharam
cada uma das versões codif‌icadas.
Em um cenário de adensamento de teorias – traço típico da pós-modernidade
–, como no campo do processo civil contemporâneo, a busca acentuada de soluções
fecunda terreno propício ao presentismo, marcado pelo açodamento das respostas e
pela centralidade do presente:7 a ansiedade que permeou as inúmeras reformas no
4. “Ao escrever a sua História, Heródoto de Halicarnasso expõe suas investigações para impedir que o que
f‌izeram os homens, com o tempo, não se apague da memória e que os grandes e maravilhosos feitos, conclu-
ídos tanto pelos bárbaros quanto pelos gregos, não sejam esquecidos; em particular, a causa com que gregos
e bárbaros entraram em guerra uns contra os outros” – HERÓDOTO. Histórias – Livro I. Introdução geral
de Maria Helena da Rocha Pereira. Introdução ao Livro I, versão do grego e notas de José Ribeiro Ferreira e
Maria de Fátima Silva. Lisboa: Edições 70, 1994, p. 1.
5. Cf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O futuro da justiça: alguns mitos. In Revista de Processo. v. 102, p.
228-37. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001; O problema da duração dos processos: premissas para uma
discussão séria. In Temas de Direito Processual: nona série. p. 367-77. São Paulo: Saraiva, 2007.
6. HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Trad. Andréa Souza de
Menezes et al. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 37.
7. Cf. NICOLAZZI, Fernando. A história entre tempos: François Hartog e a conjuntura historiográf‌ica contemporâ-
nea. In História: Questões & Debates. n. 53, p. 229-57. Curitiba: Editora Universidade Federal do Paraná, 2010,
p. 236-43. “É o problema universal de todo cidadão do novo milênio: como ter acesso às informações sobre
o mundo e como ter a possibilidade de articulá-las e organizá-las? Como perceber e conceber o Contexto, o
Global (a relação todo/partes), o Multidimensional, o Complexo? Para articular e organizar conhecimentos
e assim reconhecer os problemas do mundo, é necessária a reforma do pensamento. Entretanto, esta reforma
é paradigmática [...] é a questão fundamental da educação, já que se refere à nossa aptidão para organizar
o conhecimento” – MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação no futuro... p. 35.
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CPC/1973 ocorridas nas últimas décadas, muitas vezes desacompanhadas de estudos
empíricos em suporte às alterações assimiladas, ilustram bem essa situação.8
A tendência histórica de alteração das normas processuais ainda antes de seu
período de maturação prática (verif‌icação de resultados consistentes) – positivos ou
negativos – revela traços de inequívoca f‌luidez presentista (v.g., Leis n. 5.925/1973 e
13.256/2016). Se a construção de um modelo processual adequado às premências
da contemporaneidade reclama soluções criativas, não se pode, por outro lado, des-
prezar o olhar em perspectiva, que inclua as experiências do passado na construção
das soluções do presente-futuro; ilustra a assertiva o fato de o problema da tutela
jurisdicional possível no cenário de massif‌icação social constar dos três discursos de
justif‌icação analisados, a par de a necessidade de combate à morosidade processual
acompanhar também todas as Exposições de Motivos.
A adequada visão do processo depende de uma perspectiva global compatível
com a própria multidimensionalidade da sociedade a que se pretende oferecer mo-
dos operosos e efetivos em prol da garantia constitucional do acesso à justiça; do
contrário, produzirá resultados opostos a seus desideratos; não apenas pode deixar
de “compor adequadamente”, como pode, sim, exponenciar “conf‌litos” ou, ainda
mais grave, cercear liberdades e garantias fundamentais.9
Por f‌im, o interesse em oferecer um estudo específ‌ico à luz das Exposições de
Motivos também reside nas peculiaridades dos discursos que geralmente acompa-
nham o gênero preambular.10 Não raramente as razões justif‌icadoras estão muito
aquém ou muito além dos resultados efetivamente identif‌icados nos respectivos
corpos normativos, ainda que inexistam mudanças relevantes, por ocasião da tra-
mitação e dos debates legislativos, a justif‌icar tal contraste entre o programa inicial
e a fórmula f‌inal.11
8. MESQUITA, José Ignacio Botelho de. As novas tendências do direito processual: uma contribuição para o seu
reexame. In Teses, Estudos e Pareceres de Processo Civil. v. 1, p. 263-307. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 306-7.
9. Cf. TUCCI, José Rogério Cruz e. Contra o processo autoritário. In O novo Código de Processo Civil. p. 267-82.
Org. Carlos Alberto Carmona. São Paulo: Atlas, 2015.
10. “Ainda que não faça parte integrante do texto legal, a exposição de motivos cumpre importante papel para
situar o Código em seu contexto histórico-político-social. A análise da exposição de motivos permite não
apenas resgatar as razões explícitas da elaboração do novo Código, mas também o contexto ideológico de
sua elaboração. Permite, ainda, identif‌icar quais os elementos teóricos que embasaram a elaboração téc-
nica do anteprojeto; as correntes doutrinárias adotadas pelos elaboradores do anteprojeto; os problemas
do sistema processual civil anterior que se pretendia ver resolvidos; as promessas de melhoras no sistema
processual; as inovações nos institutos processuais já existentes e quais os novos institutos que foram cria-
dos” – MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati; MOREIRA, Glauco Roberto Marques. Comentários críticos à
Exposição de Motivos do Novo Código de Processo Civil (CPC): notas sobre o Novo CPC e sua ideologia, a partir
da análise de sua Exposição de Motivos. In Processo, jurisdição e efetividade da justiça II. p. 444-74. Coords.
André Cordeiro Leal, Maria dos Remédios Fontes Silva e Valesca Raizer Borges Moschen. Florianópolis:
CONPEDI, 2015, p. 456.
11. Por exemplo, no caso de 1939, a primeira Exposição a ser examinada, o discurso é de tal modo ufanista
que o leitor desavisado descartaria a possibilidade de constarem dezenas de procedimentos especiais,
minuciosamente regulados ao longo de centenas de dispositivos, em um Código anunciado, porém, como
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