Análise econômica da situação (personalidade jurídica, função da autonomia patrimonial e função da limitação da responsabilidade patrimonial dos sócios)

AutorFernando Schwarz Gaggini
Ocupação do AutorAdvogado e professor universitário. Pós-graduado/especialista em Direito Mobiliário (Mercado de Capitais) e Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Páginas101-123

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A atividade empresarial pode ser exercida de forma individual ou coletiva, ficando a critério do empreendedor, em regra51, escolher a forma que mais lhe parece adequada ao exercício da atividade a que se propõe.

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O exercício individual se mostraria, a princípio, mais simples, por integrar em uma só pessoa o poder de comando da atividade, sendo ele centro absoluto de decisões e fonte do patrimônio.

Entretanto, inúmeras atividades mostram-se complexas e, por tal razão, demandam aspectos como a conjugação de esforços e recursos de diversos indivíduos. O direito, ciente da importância de tais elementos, reconhece nessa sociedade uma individualidade e a ela oferece equiparação à pessoa humana, no sentido de lhe atribuir capacidade própria de ação e distinção organizacional e patrimonial. Caracteriza-se assim a figura da pessoa jurídica52.

Dada a relevância do tema "pessoa jurídica" no contexto desse trabalho, bem como os impactos econômicos que dela decorrem, façamos breve análise de tal instituto.

A pessoa jurídica representa entidade que assume existência própria, como pessoa que é, distinta da existência das pessoas que a criaram, mediante a devida previsão legal para sua constituição e reconhecimento.

Essas entidades abstratas são dotadas pelo ordenamento jurídico de personalidade e capacidade para o exercício de funções que justificam sua criação, na medida em que sua permissão de existência está diretamente ligada à persecução de alguma finalidade socialmente desejável.

No contexto do direito brasileiro, as pessoas jurídicas podem ser classificadas, inicialmente, em pessoas jurídica de direito público (divididas em direito público interno e externo) e de direito privado. As primeiras são entidades que exercem finalidades de interesse imediato da coletividade53, sendo elas, no direito interno, a União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal, os territórios, as autarquias, inclusive as associações públicas e demais entidades

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de caráter público criadas por lei. As de direito público externo são os Estados estrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público.

As pessoas jurídicas de direito privado, por sua vez, representam entidades decorrentes da vontade individual de seus instituidores, que se destinam a realizar funções de natureza particular, voltadas ao interesse dos próprios instituidores, ou para determinada ou indeterminada parcela da sociedade54. Estas são divididas, nos termos do artigo 44 do Código Civil, em associações, sociedades, fundações, organizações religiosas, partidos políticos e as EIRELI.

As associações e as sociedades têm, em comum, o fato de serem agrupamentos de pessoas que criam uma unidade individualizada e personificada, capaz e autônoma, mas que se distinguem no sentido de que as primeiras não possuem fins econômicos, enquanto as sociedades têm por característica tal finalidade. As fundações, por sua vez, representam um patrimônio, destinado a um determinado fim altruístico por seu instituidor, patrimônio este ao qual o ordenamento reconhece personalidade. Essas três espécies compunham o quadro inicial de pessoas jurídicas de direito privado, quando da criação do Código Civil de 2002. Posteriormente, por força da Lei n. 10.825 de 2003, foram também incluídos nesse rol os partidos políticos e as organizações religiosas. Mais recentemente, a Lei n. 12.441, de 2011, incluiu também no rol a EIRELI - empresa individual de responsabilidade limitada.

Dentre as diferentes espécies de pessoas jurídicas, o foco de interesse deste trabalho recai, especificamente, sobre as de direito privado, dentre elas, as sociedades. A classificação das sociedades, no ordenamento brasileiro, pode se dar, inicialmente, entre as personificadas e as sem personalidade. Não possuem personalidade jurídica a "sociedade em comum" e a "sociedade em conta de participação", previstas no Código Civil entre os artigos 986 e 996. Dentre

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as personificadas, destacam-se dois grupos, as "sociedades empresárias", que tem por finalidade o exercício da atividade empresarial, nos termos do artigo 966 do Código Civil (exercício profissional da atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços), e as "sociedades simples" que, embora tenham em comum a propensão ao lucro, não exercem atividade empresarial, nos termos do artigo 982 do Código Civil. No contexto deste trabalho, o interesse restringe-se, em específico, sobre as sociedades empresárias personificadas que, como visto, são admitidas pelo Código Civil em cinco espécies: a sociedade em nome coletivo, a sociedade em comandita simples, a sociedade limitada, a sociedade anônima e a sociedade em comandita por ações.

Diferentes teorias buscam explicar a natureza das pessoas jurídicas. Em breve síntese, se destacam a teoria da ficção, a teoria da realidade, a teoria institucional e a teoria do patrimônio de afetação, dentre outras elaborações existentes.

A teoria da ficção, normalmente associada à Savigny, defende que somente o homem pode ser considerado pessoa, de modo que as pessoas jurídicas nada mais são que criações ficcionistas da lei, uma invenção do legislador55. Seria a pessoa jurídica, portanto, uma criação artificial, em que "a lei abstrai-se dos membros componentes, e, fingindo que o seu conjunto é, em si mesmo, uma pessoa diferentes deles, atribui-lhes a aparência de sujeito de direito"56.

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A teoria da realidade (também denominada de realista ou da personalidade real), em contraposição, afirma que não só o homem é sujeito de direito, mas também as pessoas jurídicas, entidades reais, detentoras de vontade própria e capacidade de ação, distintas das de seus instituidores, às quais o ordenamento reconhece personalidade por serem entidades reais. Normalmente associada a Gierke, essa teoria reconhece a pessoa jurídica como um ser real, sendo que a personificação, em lei, seria mero reconhecimento, pelo Estado, de uma constatação fática de existência dessas entidades.

A teoria institucional (ou da organização), associada à Hauriou, compreende a pessoa jurídica como uma instituição, ou seja, uma organização que se destina a preencher um fim socialmente desejável.

A teoria do patrimônio de afetação, por seu turno, encara a pessoa jurídica como nada mais que um determinado patrimônio destinado a uma finalidade específica, um patrimônio destinado a um fim ao qual o homem decidiu por atribuir personalidade jurídica.

A par da questão da natureza, centremos nosso foco específico às sociedades e as suas repercussões econômicas. Dentro da figura da pessoa jurídica, o elemento que se destaca, com especial destinação econômica, é a figura da autonomia patrimonial.

É certo que a questão da atribuição de personalidade jurídica apresenta evidente caráter econômico. Nesse sentido, devemos reconhecer que a atribuição de personalidade, a uma sociedade, acarreta na concentração de diversas relações, sócios e órgãos, em uma nova entidade, novo sujeito de direito, ao qual se atribuem direitos e deveres, viabilizando, assim, a criação de uma unidade com auto-nomia, que apresenta relevantes reflexos no campo da economia. Com tal engrenagem, concentram-se nesse novo centro os direitos, os deveres e os poderes, em unidade atribuída pelo Estado como

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privilégio destinado ao alcance de objetivos defendidos pelo interesse comum. A partir da personificação obtém-se a característica da segregação patrimonial, que é o reflexo maior da personalidade jurídica no campo econômico.

De fato, diversos autores atestam que a função primordial da personificação é econômica, no sentido de viabilizar uma autonomia patrimonial entre os sócios e a sociedade por eles constituída. Nesse contexto, afirmou Fábio Konder Comparato que "a pessoa jurídica nada mais é que uma técnica da separação de patrimônios"57.

Rachel Sztajn observou que:

"a pessoa jurídica serve para unificar conjuntos - de pessoas ou de bens - esta a visão tradicional do instituto. Porém, ao definir um novo sujeito de direito também promove a separação de riscos econômicos que recaem sobre pessoas no exercício de atividades econômicas (...) Se a personificação de grupos, de pessoas ou conjuntos de bens, organizados para deter-minadas finalidades, tem função socialmente desejável, essa função está na segregação de riscos que são indissociáveis da atividade empresarial."58Essa constatação é feita, no direito comparado, por Henry Hansmann e Reinier Kraakman, ao mencionar que:

"the core element of legal personality (...) is what the civil law refers to as "separate patrimony". This is the ability of the firm to own assets that are distinct from the property of other persons, such as the firm´s investors, and that the firm is free not only to use and sell but - most importantly - pledge to creditors."59A sociedade, pessoa jurídica autônoma, presta-se, então, como estrutura apta a unificar um conjunto de pessoas e bens destinados a uma atividade específica, viabilizando, desta forma, uma separa-

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ção de riscos. Essa, portanto, é a função econômica que recai sobre a personalidade, identificada na figura da autonomia patrimonial.

Assim, a criação dessa célula individualizada, estanque em relação aos patrimônios dos sócios, facilita o acompanhamento pelos credores da sociedade, implicando em impactos nos custos de financiamento, dada a nítida distinção patrimonial. Viabiliza, também, a redução de custos de transação pelos sócios. Os custos de transação representam, no contexto econômico, os custos decorrentes de uma operação econômica que oneram a operação, como aqueles envolvidos com obtenção de informações, execução de contratos, monitoramento, supervisão das atividades etc. Nesse contexto, a organização pelos sócios de uma sociedade pode viabilizar uma redução nos custos de transação incidentes no negócio desejado, o que representa efeito econômico positivo, apto a estimular a atividade empresarial.

Essa...

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