Analise sociojuridica do novo direito do trabalho brasileiro/Social-legal analysis of the new Brazilian labor law.

AutorGuerra, Roberta Freitas
  1. Introdução (1)

    Brasil, 11 de novembro de 2017. Entrava em vigor a reforma trabalhista, promulgada por meio da Lei 13.467, apenas cento e vinte dias após sua publicação oficial, ocorrida em 13 de julho do mesmo ano.

    De par com seu diminuto período de vacatio legis, causaram espécie, de um lado, o curto espaço de tempo de tramitação do processo legislativo de que se originou (2) e, de outro, o fato de ser uma lei alteradora de um número deveras elevado de dispositivos da legislação trabalhista então existente (3)--até por esse motivo, seria conveniente um prazo de vacatio legis mais estendido, para que os intérpretes e aplicadores do novo texto melhor se adaptassem aos padrões normativos por ela inaugurados.

    Mais alarmante que o número elevado de alterações produzidas pela reforma trabalhista é o teor dessas alterações, que, entre outras coisas, subtraíram direitos antes legalmente previstos aos trabalhadores, retirando-lhes, inclusive, o efeito pansalarial de muitas de suas verbas retributivas, introduziram condições e formas de contratação mais precarizadas, fragilizaram a estrutura institucional de entidades sindicais, esmaeceram a importância e o papel das negociações coletivas e dificultaram a judicialização de conflitos trabalhistas na Justiça do Trabalho (4). A consequência de todo esse projeto de liberalização da sociedade e erosão de direitos sociais laborais não poderia ser outra, senão o afastamento do direito do trabalho brasileiro de seu pressuposto original de proteção do trabalhador e, consecutivamente, o rompimento de sua identidade político-jurídica--nutrida, nacional e internacionalmente, desde a assunção do Estado-providência e da relação salarial fordista, após o término da II Guerra Mundial.

    Como compreender tal ruptura paradigmática do direito do trabalho pós-reforma de 2017? Trata-se de um fenômeno especificamente brasileiro, ou, numa demarcação sociológica cosmopolita, pode ser lido como atinente a outros países do capitalismo financeirizado? Ela se manterá como "novo normal" na regulação das relações de trabalho no Brasil? Eis os problemas que o presente estudo buscará responder, lançando mão, para tanto, da teoria sociojurídica de António Casimiro Ferreira e sua peculiar maneira de pensar a relação entre a política, o direito e a sociedade, captando as transformações sociais, políticas e jurídicas a partir do prisma do que ele considera serem as três categorias estruturantes do presente: a crise, a austeridade e a exceção.

    Os principais argumentos aqui expostos estão divididos em quatro seções, além desta introdução e das considerações finais. Na próxima seção, dadas a multiplicidade e a conflitualidade paradigmáticas em que se inspira a sociologia do direito na contemporaneidade, nos ocuparemos de algumas notas sobre o enquadramento teórico e conceitual do presente estudo, no intuito de especificar as nossas opções metodológicas e epistemológicas ao se empreender esta análise acerca do novo direito do trabalho. Na terceira seção, num esforço de análise metateórica, buscaremos realizar uma exposição sistemática--ainda que apertada--do pensamento de António Casimiro Ferreira, com fincas a compreender o mais amplamente possível a teoria em que se conceberam as categorias analíticas da crise, austeridade e exceção. Por fim, na quarta seção, discutiremos sobre as mediações necessárias para a aplicação da referida teoria sociojurídica no contexto da reforma trabalhista brasileira de 2017, assim como analisaremos a nova configuração do direito do trabalho brasileiro com espeque nos pressupostos e categorias de análise sociológica a ele aplicáveis

  2. Notas preliminares sobre o enquadramento teórico, conceituai, epistemológico e metodológico do presente estudo

    Como dissemos na seção introdutória, para compreender o novo direito do trabalho brasileiro a partir das transformações operadas no contexto da promulgação da Lei 13.467/2017, este trabalho lançará mão de uma teoria sociojurídica específica. À partida, antes mesmo de refletirmos sobre a referida teoria e sobre os motivos que nos levaram à sua escolha, é preciso indagar: há alguma relevância em tal afirmação? Em termos de seu enquadramento teórico, conceitual e epistemológico, dizer que o presente estudo se desenvolverá a partir de um referencial das ciências sociais, em especial da sociologia, tem total relevância. É que, assim, sustentamos a sua filiação ao campo do que se convencionou chamar de "sociologia do direito", e não ao da "sociologia jurídica".

    Isto equivale a dizer que, aqui, deixaremos de tecer críticas à perspectiva dogmática do direito do trabalho nascente a partir da reforma, objetivo característico de pesquisas alinhadas à sociologia jurídica (FONTAINHA; OLIVEIRA; VERONESE, 2017, p. 31) --estas comumente produzidas por bacharéis em direito sociologicamente orientados e com base em abordagens teóricas e abstratas mais próximas da filosofia e teoria do direito, ou, de um ponto de vista interdisciplinar, dos Criticai Legal Studies norte-americanos e do Mouvement Critique du Droit francês (FARINAS DULCE, 1994, p. 1016).

    Isto também quer significar que não cuidaremos de abordar problemas estruturais ou de funcionamento internos do sistema justrabalhista da atualidade nem, tampouco, de analisar a validade formal ou as premissas das decisões legais levadas a cabo pela reforma trabalhista brasileira. Embora este seja um esforço cognitivo legítimo para se firmar a compreensão do direito, uma "perspectiva interna do direito" como essa caberia, mais propriamente, a pesquisas conduzidas no campo da ciência jurídica.

    Além disso, estando nós sob o paradigma da sociologia do direito, é necessário asseverar que esta investigação não objetivará estudar a eficácia das normas e das instituições jurídicas nem o comportamento de seus destinatários e das organizações sociais--os chamados "fatos do direito". Atender a aspectos da validade empírica ou da eficácia social do direito seria objeto do que vem sendo denominado de "sociologia do direito dos juristas". A análise sociojurídica que aqui ora se propõe se inscreve numa outra perspectiva de análise possível à sociologia do direito, alinhando-se à denominada "sociologia do direito dos sociólogos", vez que busca refletir o fenômeno jurídico em sua totalidade, ou seja, dentro do contexto social, econômico e político de sua produção, tendo em vista a interação desses diferentes fatores (FERREIRA, 2019b, p. 37).

    Dentro da constelação de compromissos dos que estão sob o referido paradigma, ao menos na vertente que ora exploramos, está o pressuposto do presente trabalho, de que o direito não é neutro nem é autônomo em relação à sociedade, eis que profundamente imerso no social e no político, sendo, ao mesmo tempo, constitutivo da realidade social e produto de uma construção social, política e institucional (FERREIRA, 2019b, p. 37-38). Daí porque, para proceder a uma observação sistemática da realidade social circundante ao novo direito do trabalho brasileiro, nos socorrermos do diálogo com uma teoria sociojurídica que espelha este mesmo pressuposto: a desenvolvida pelo sociólogo português António Casimiro Ferreira e aplicada, por ele e por outros estudiosos conformados nos moldes do seu pensamento, para compreender as reformas laborais promovidas em Portugal a partir de 2011. Esta, aliás, é a razão da opção por essa específica teoria sociológica., a qual nos propomos a examinar, metodologicamente falando, a partir da revisão bibliográfica de alguns dos escritos do referido sociólogo.

    É claro que aqui não se tenciona empreender uma análise comparada entre as reconfigurações jurídicas ocorridas em Portugal e no Brasil por ocasião de suas respectivas reformas laborais. Embora este objetivo possa ser legitimamente perseguido em pesquisas vinculadas à ciência jurídica que apliquem técnicas comparatistas para compreender as estruturas características de diversas ordens jurídicas--geralmente cotejando, de um lado, a pátria e de outro, as alienígenas--, neste estudo, ele será preterido em função de sua filiação, antes mencionada.

    As opções metodológicas e epistemológicas aqui detalhadas conformarão o fio condutor da presente pesquisa. O que não quer dizer que as demais vertentes por nós prescindidas não tenham o seu próprio valor. Em outras palavras, pontuar que não faremos comentários acerca de cada uma das mudanças operadas pela reforma trabalhista de 2017, seja eles em tom crítico ou dogmático, ou mesmo do ponto de vista de sua eficácia social, não põe em menoscabo as perspectivas da "sociologia jurídica", da "sociologia do direito dos juristas" ou das ciências jurídicas propriamente ditas. A opção pelo enquadramento teórico e conceitual específico da chamada "sociologia jurídica dos sociólogos" (5) justifica-se, única e tão-somente, em função de sua maior adequação à busca do principal objetivo do presente escrito, que passa, como já repisado, pela compreensão da realidade social brasileira em que se gestou a reforma trabalhista de 2017 e pela percepção, ao menos em um nível macrossociológico, do impacto das mutações societais em curso em relação ao novo direito do trabalho brasileiro.

  3. O pensamento sociojurídico de António Casimiro Ferreira em torno das três categorias estruturantes do presente--crise, austeridade e exceção

    Como dito na seção introdutória deste texto, a reflexão aqui desenvolvida se enquadra num esforço de análise metateórica, eis que consubstanciada numa tentativa de exposição sistemática da teoria desenvolvida por António Casimiro Ferreira, analisada esta em seus próprios termos, respeitando, portanto, a lógica teórica em que se apoiam os conceitos e as noções edificadas pelo autor. Pretende-se um estudo sistemático, mas não global e longitudinal, já que, em função do fio condutor da presente pesquisa--conforme demonstrado na seção anterior--e tendo em vista os limites deste escrito, optamos por selecionar específicas dimensões teórico-conceituais dos seus...

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